13 Março 2019
“Uma exclusão das mulheres dos ministérios da Igreja com base apenas na diferença de gênero não é mais concebível neste ponto da cultura, da antropologia e da história.”
A opinião é de Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado em Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 14-03-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Não agradou a todas as mulheres a apologia da mulher feita pelo Papa Francisco durante o encontro “Sobre a proteção dos menores na Igreja”, quando, intervindo de surpresa, disse que, ao escutar uma mulher falar – a subsecretária do dicastério dos leigos e da família –, ouvira a Igreja falar de si mesma, das suas feridas, porque a mulher é a imagem da Igreja, que é mulher, é esposa, é mãe, e a própria Igreja deve ser pensada com as categorias da mulher. De fato, sem a mulher, sem o gênio feminino, ela talvez seria um sindicato, não um povo.
O desapontamento é que, também nessas palavras, voltou à tona a idealização “da” mulher, que as mulheres sofreram muito, sendo, depois, desconsideradas como pessoas.
A teóloga Marinella Perroni nos escreveu depois do nosso artigo de 26 de fevereiro, em que falávamos disso:
“Concordo plenamente – como sempre, aliás – com as reflexões propostas. Porém, permito-me uma consideração crítica, embora não tenha muita confiança de poder ser, senão compreendida, pelo menos ouvida. O discurso que o Papa Francisco fez de improviso após a fala de Linda Ghisoni evidenciou, para além das suas melhores intenções, o quanto ele permanece totalmente prisioneiro de lugares-comuns que, embora com retóricas diferentes, impedem há séculos a Igreja a incluir as mulheres (veja-se, por exemplo, a nota de Antonio Autiero no blog Il Regno dele Donne [disponível aqui, em italiano]). A exaltação sempre foi a outra face da exclusão.
“Era um discurso impregnado de paternalismo patriarcal e, portanto, totalmente em consonância com aquele clericalismo que ele diz querer derrotar. Enquanto não se escutar o pensamento que as mulheres elaboraram nos últimos dois séculos, a cultura das mulheres, as demandas das mulheres, e se continuar falando ‘sobre’ a mulher, não será possível libertar a Igreja do clericalismo, que é uma das mais tristes manifestações do sexismo.
“Um dia, talvez, os homens da Igreja, clérigos ou leigos, pouco importa, aceitarão não falar delas, mas sim escutá-las e, talvez, entenderão que Carlo Maria Martini tinha razão quando dizia que eles ficaram 200 anos para trás.”
Assim escreve a nossa teóloga (“nossa” por afeto e por estima). Mas também no Facebook acendeu-se uma discussão sobre o nosso artigo, provando como a questão é sofrida.
Por exemplo, Franca Morigi escreveu:
“Posso me mostrar perplexa e um pouco perturbada pela mulher mãe-esposa figura ou espelho da Igreja? Muito mais significativas são as expressões ‘princípio feminino, pensar com as categorias de uma mulher’ e ‘direito de Antígona, do mais humilde, vinculado aos nutrimentos terrestres, à piedade’. Piedade contra Majestade.”
Também foi citada uma poesia de “Anônima”:
“Eu sou aquela de que cantam os poetas... Eu sou falada, mas não falo, sou escrita, mas não escrevo, sou pintada, retratada, esculpida, o pincel e o cinzel me são estranhos. Ninguém ouve os meus gritos silenciosos... Eu sou aquela que não tem linguagem, não tem rosto, não existe... A mulher...”.
Quanto ao blog Il Regno dele Donne, publicado “em colaboração com a Coordenação das Teólogas Italianas”, citado por Marinella Perroni, ele se pergunta se ainda se pode pensar “no sujeito eclesial de acordo com uma linha de distinção entre masculino e feminino”.
Não, não se pode, não se pode mais. Uma exclusão das mulheres dos ministérios da Igreja com base apenas na diferença de gênero não é mais concebível neste ponto da cultura, da antropologia e da história. Assim foi durante séculos, até agora, até a carta apostólica de João Paulo II “sobre a ordenação sacerdotal reservada somente aos homens”, que dava por decidida a questão “de modo definitivo” (mas sem qualquer selo de autoridade infalível) com o argumento de que assim o próprio Cristo teria estabelecido “chamando só homens como seus apóstolos” e agindo “de maneira totalmente livre e soberana”, que era como dizer que, humanamente, não se pode lhe dar razão, algo por si só incompatível com toda a pedagogia de Jesus.
Na realidade, os teólogos, para fazer com que a doutrina fique de pé, tentaram dar-lhe razão, cada um com a cultura do seu tempo (sempre, aliás, desfavorável às mulheres), até o argumento do século XX de que Jesus era homem, o sacerdote é ele, e assim devem ser todos os outros. Mas, antes disso, eles ensinaram durante séculos – como nos lembrou Giovanni Cereti, o animador da “Fraternidade dos Anawim” – que as mulheres não podiam ser ordenadas padres “ratione servitutis”, por causa da condição de servidão. Ou seja, elas não eram livres; e eram três as categorias excluídas do sacerdócio por esse motivo: os escravos, os índios e as mulheres. A razão era de que eles não tinham o “dominium sui”, isto é, a propriedade de si mesmos e das próprias ações, na qual, propriamente, segundo os escolásticos, consistia a liberdade.
Hoje, ninguém mais diz que os escravos não podem se tornar padres, porque a escravidão, felizmente (pelo menos em termos de direito), está abolida; de padres e bispos indígenas, há tantos quantos se queira; mas apenas para as mulheres, e somente “por serem mulheres”, a discriminação permaneceu. E, se não são donas de si mesmas, isso significa que são de algum outro dono.
Também não se pode usar o subterfúgio da retomada das mulheres diáconas, em função do padre ou para compensar a falta de clero. A discussão sobre o diaconato feminino nada mais é do que uma estratégia de distração que não pode durar. O verdadeiro problema são os ministérios na Igreja, incluindo o sacerdócio para as mulheres, e não como imitação do homem, mas como capacidade original divinamente fundada.
Mas há duas boas razões para defender a externação do papa, que tornam uma joia aquela sua breve intervenção no encontro romano.
A primeira é que, mesmo se quiséssemos introduzir essa novidade na Igreja, a sua escolha é de mudar a Igreja não por decreto, mas com a Palavra. E a palavra na Igreja é performativa, opera aquilo que diz, se não permanecer isolada e for semeada no terreno fecundo da colegialidade.
A segunda é que o papa é um homem, e as mulheres devem se resignar a serem pensadas não apenas como elas pensam a si mesmas, mas também como são pensadas pelos homens. Não, naturalmente, por aqueles que as matam e querem ser seus donos, mas por aqueles que as amam, o que não é uma questão de sentimento, mas uma antropologia.
E, pelo menos até agora, no imaginário masculino, “a mulher”, até mesmo aquela mais vinculada à terra, “aos nutrimentos terrestres”, tem um poder próprio, um fascínio ideal, como o divino, que é muito narrado, mas também apofático, que não pode ser dito.
Como disse o Papa Francisco, falando um dia sobre o Gênesis, Adão, antes de ver a mulher, “sonhou-a”, diferente de todo o restante. Aliás, isso não deveria ser apenas em relação à mulher, mas a todos os seres humanos, porque, em todos os seres humanos, seria preciso saber ver o divino, reconhecer o arcano que há neles, entender o que significa para todos ser “filho e filha de Deus”.
Mas, talvez, isso ocorra melhor para os homens ao pensar as mulheres, como dizem os mitos e as culturas que, na mulher, vislumbraram o divino, de Vênus à mulher bíblica destinada a esmagar a cabeça da serpente, da bela Sulamita do Cântico dos Cânticos, cujo amor é a “chama de Javé”, à “Celeste Aida, forma divina”, que cantamos despreocupadamente nos nossos teatros.
Nada de“ratione servitutisI"! Ou é apenas poesia? Há um poder das mulheres que, talvez, nem mesmo o feminismo conseguiu pensar totalmente até agora. Mas é claro que aqui é a história que deve ser desvendada.
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Francisco e as mulheres: ''ratione servitutis''? Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU