22 Fevereiro 2019
Existem mais de 4 mil pessoas físicas e jurídicas proprietárias de terras com dívidas acima de R$ 50 milhões, entre elas devedores individuais de mais de R$ 1 bilhão. É mais fácil essas dívidas serem perdoadas do que as terras destinadas a trabalhadores rurais, escreve Gustavo Noronha, economista do INCRA, em artigo publicado por Brasil Debate, 21-02-2019.
Se no debate público o tema da reforma agrária surge e ressurge no Brasil pelo menos desde José Bonifácio, passando por Joaquim Nabuco, entre outros pensadores brasileiros, sua implementação efetiva como política pública foi muito circunscrita. De tanto se falar em reforma agrária no Brasil, sem nunca avançar na sua concretização, entendemos como caracterização adequada a este processo no Brasil como a reforma agrária perene. Não necessariamente perene em sua execução, mas como uma agenda que sempre esteve colocada (embora nunca implementada).
O governo do presidente João Goulart, num contexto de muitos conflitos no campo com destaque à atuação das Ligas Camponesas lideradas por Francisco Julião, foi o primeiro a tentar destravar esse processo e foi derrubado pouco depois de anunciar a proposta de reforma agrária mais avançada que o Brasil já viu (mesmo se comparada aos governos pós-redemocratização).
O golpe de 1964 interrompeu o processo, mas a pauta estava de tal maneira colocada na sociedade que o governo militar deixou como legado o Estatuto da Terra. Uma lei que classifica a reforma agrária como “o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade” e falava abertamente em função social da propriedade. A legislação, em realidade, é explícita: “A reforma agrária visa a estabelecer um sistema de relações entre o homem, a propriedade rural e o uso da terra, capaz de promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do país, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio”.
Apesar da letra da lei, as tensões no campo foram aliviadas com ações em duas frentes e em nenhuma delas estava a reforma agrária. A primeira estratégia foi a colonização da Amazônia, sintetizada no slogan do governo Médici “Uma terra sem homens para homens sem terra”. Deste modo deslocava a tensão e os conflitos pela terra do Sul, Sudeste e Nordeste e ainda trazia uma forte intervenção estatal em projetos fundiários. Em outra frente, reorganizou o sistema previdenciário rural, o Funrural (criado em 1963), de maneira que servisse como uma maneira de controle social das tensões no campo[i].
A redemocratização trouxe o primeiro plano nacional de reforma agrária com o Decreto nº 97.766 de 1985. Um acidente aéreo com a alta cúpula do INCRA em 1987 interrompeu qualquer expectativa de que fosse atendida a ousada meta de destinar 43 milhões de hectares para o assentamento de 1,4 milhão de famílias até 1989. Em seguida, no governo do presidente Fernando Collor, o INCRA chegou a ser extinto.
A retomada da agenda da reforma agrária se deu no governo Fernando Henrique Cardoso pressionado pelo massacre de Eldorado de Carajás em 17 de abril de 1996, enquanto no primeiro governo Lula foi apresentado o segundo plano nacional de reforma agrária. O primeiro mandatário petista chegaria ao fim de seu segundo governo tendo assentado cerca de 600 mil famílias de um total de quase um milhão de beneficiários da reforma agrária. No governo da presidenta Dilma o ritmo de novos assentamentos diminuiu consideravelmente, sendo praticamente paralisado no governo Temer.
Cumpre ainda destacar que a gestão de Lula fez muitos assentamentos em terras públicas na Amazônia Legal e ocupou lotes vagos em assentamentos existentes. Estes processos seriam mais bem caracterizados como regularização fundiária e limitada democratização do acesso à terra do que como reforma agrária. Em realidade, o índice de Gini da concentração fundiária no país esteve sempre acima de 0,8 desde 1940, tendo piorado no período mais recente.
No Brasil, uma área inferior a um módulo fiscal é considerada um minifúndio. A legislação brasileira também prevê a fração mínima de parcelamento de área mínima que um imóvel pode ter. Tanto o módulo fiscal quanto a fração mínima de parcelamento são definidos por município, os menores valores para estas medidas no país são respectivamente cinco e dois hectares. Os resultados preliminares do Censo Agropecuário de 2017 mostram um cenário em que a população ocupada no campo caiu de 23.394.919 em 1985 para 15.036.978 em 2017. O agronegócio modernizou o rural, o número de tratores saltou de 665.280 para 1.228.634 no mesmo período, mas isso não eliminou a necessidade de uma radical democratização do acesso à terra.
De acordo com os mesmos resultados preliminares do Censo, considerando apenas as áreas abaixo da menor fração mínima de parcelamento e os produtores sem área, há um público potencial a ser atendido pela democratização do acesso à terra no Brasil de mais de 1,15 milhão de famílias. Incluindo todos os minifúndios na conta, as áreas abaixo do menor módulo fiscal (cinco hectares), com mais 817.425 microproprietários, a demanda por reforma agrária seria de aproximadamente dois milhões de famílias.
É neste contexto que o governo Bolsonaro nomeia o general João Carlos Jesus Corrêa para a presidência do INCRA e o Coronel João Miguel Souza Aguiar Maia de Sousa como Ouvidor Agrário Nacional. Antes já havia nomeado Luiz Antônio Nabhan Garcia, presidente licenciado da União Democrática Ruralista (UDR), como secretário de assuntos fundiários do Ministério da Agricultura. Nabhan é um fervoroso defensor da criminalização dos movimentos sociais e a nomeação de um oficial da inteligência do Exército como ouvidor sugere que esse caminho será perseguido com afinco pelo atual governo.
Alguém pode ter esperanças de que a democratização do acesso à terra avance uma vez que o novo presidente do INCRA em entrevistas ressaltou a importância da reforma agrária. Entretanto, o quadro orçamentário do INCRA não prevê um orçamento para obtenção de terras que justifique tais esperanças. Aliás, a EC nº 95 tem sido cruel com as políticas para a reforma agrária e sem sua revogação qualquer defesa de uma distribuição de ativos fundiários é meramente retórica.
Ademais, não há por parte do governo discussões obre desapropriações de terras que não cumpram sua função social sob os aspectos ambientais, trabalhistas e de bem-estar. A perspectiva da regulamentação da expropriação de terras com trabalhadores em condições análogas à escravidão está cada vez mais distante. E certamente a revisão dos índices de produtividade está fora de cogitação.
Há mais de 4 mil pessoas físicas e jurídicas proprietárias de terras com dívidas acima de R$ 50 milhões e entre os 50 maiores devedores existem pelo menos 11 ligados ao setor agropecuário com dívidas individuais superiores a R$ 1,48 bilhão. Todavia, tem sido veiculado como mais provável o perdão destas dívidas que a destinação destas terras para assentamento de trabalhadores rurais.
A Lava Jato, que poderia destinar terras para a reforma agrária, não indica que irá além do seu papel de ter levado ao poder os atuais ocupantes do governo federal (como exemplo, os donos da Carioca Engenharia são também proprietários de uma agropecuária que detém diversas áreas, uma delas com quase sete mil hectares no estado do Rio de Janeiro. Por que será que estas propriedades rurais não foram arrestadas e destinadas aos assentamentos de famílias?).
Soma-se a este cenário as possíveis mudanças na previdência rural [ii]. Entre os possíveis desdobramentos, destacamos o empobrecimento e a perda de autonomia dos trabalhadores rurais e dos municípios onde está inserida a agricultura familiar. Por um lado, os trabalhadores rurais abandonarão sua própria produção e perderão renda, por outro, aqueles que optarem por seguir com a produção própria acabarão por abrir mão da aposentadoria.
Outrossim, eventual êxodo rural e a diminuição da população no campo e, em médio prazo, dos beneficiários da aposentadoria rural deve impactar na renda dos pequenos municípios cuja economia depende fortemente do consumo dos aposentados rurais e seus subsequentes efeitos multiplicadores. Para além disso, a renda gerada pelas cadeias produtivas da agricultura familiar e da reforma agrária deverá diminuir nos locais onde estas têm importante peso econômico. A tendência, portanto, é de um cenário que aponta para um possível colapso econômico de diversos municípios pelo Brasil.
Um desdobramento adicional está num possível impacto na oferta de alimentos, pois são as cadeias produtivas da agricultura familiar que garantem boa parte da alimentação básica consumida pela população brasileira. Sua desarticulação no médio prazo em decorrência da reforma da previdência poderá provocar uma quebra estrutural na oferta de alimentos, afetando a segurança alimentar do povo brasileiro e provocando uma inflação de alimentos.
Aliás, a pauta para o campo do atual governo parece querer afetar não apenas os pequenos produtores. O chamado agronegócio moderno também deve ser prejudicado por ações como a transferência da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém que já provocou retaliações da Arábia Saudita mesmo antes de efetivada ou ainda os retrocessos na agenda ambiental que podem levar a adoção de barreiras não tarifárias pela União Europeia. Isto se o tabuleiro geopolítico não levar grandes mercados como Rússia e China a inventarem barreiras, como, por exemplo, a reclamação dos russos com o excesso de agrotóxicos na nossa soja (não que isso não seja verdade, mas isso nunca foi um problema pros russos).
Enfim, tudo indica que não haverá espaço para a reforma agrária no governo Bolsonaro, talvez nem mesmo para o chamado agronegócio moderno. A hegemonia do campo nos próximos anos será a dos velhos coronéis. Não se trata apenas da criminalização dos movimentos sociais (que provavelmente serão classificados como terroristas), mas do ataque ao meio ambiente e da superexploração do trabalho.
A flexibilização das regras para armas de fogo e o empoderamento dos latifundiários sugerem ainda o recrudescimento dos conflitos no campo com mais ameaças e mortes. Fica a esperança de que na próxima vez em que a esquerda chegar ao poder abandone esse papo de reforma agrária perene e promova uma radical mudança na estrutura fundiária deste país.
Notas
[i] Ver Ferrante, Vera Lucia Silveira Botta 1976 “O estatuto do trabalhador rural e o Funrural: ideologia e realidade” em Perspectivas: Revista de Ciências Sociais (São Paulo) Vol. 1. em <http://seer.fclar.unesp.br/perspectivas/article/view/1490/1194>.
[ii] Os argumentos sobre as mudanças na previdência rural foram desenvolvidos no artigo Por que as mudanças na previdência rural preocupam, disponível em <http://brasildebate.com.br/por-que-as-mudancas-na-previdencia-rural-preocupam/>.
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Há espaço para a reforma agrária no governo Bolsonaro? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU