13 Novembro 2018
“Este artigo não é anticlerical. Ele é contra o clericalismo, que necessita dos padres e dos leigos, duas categorias que não existem uma sem a outra.”
A opinião é do teólogo francês Bernard Paillot, professor do Centro de Teologia Universitária de Rouen, na França, em artigo publicado por Baptises.fr, 28-10-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Nem todos morriam, mas todos eram atingidos” (“Os animais doentes de peste”, La Fontaine)
Não se trata de voltar à invectiva de Gambetta (“Le cléricalisme, voilà l’ennemi”, discurso de 4 de maio de 1877), mas de avançar com o nosso papa quando ele escreve: “O clericalismo, favorecido tanto pelos próprios sacerdotes quanto pelos leigos, gera uma divisão no corpo eclesial que beneficia e ajuda a perpetuar muitos dos males que hoje denunciamos”. Três cartas recentes do nosso papa, uma das quais destinada “ao povo de Deus”, levaram-me a redigir este texto [1].
Tento propor aqui uma reflexão teológica evocando alguns desvios nos quais se baseia o clericalismo.
Duas considerações preliminares:
- Este artigo não é anticlerical. Ele é contra o clericalismo, que necessita dos padres e dos leigos, duas categorias que não existem uma sem a outra. O denominador comum de todas as facetas do clericalismo é uma relação desigual entre padres e leigos, sendo os padres e os leigos corresponsáveis quando aceitam livremente essas relações insalubres (evidentemente, não se trata de condenar as vítimas, que, ao contrário, sofrem a relação!);
- também não se trata, aqui, de focar nos abusos sexuais, embora a revelação desse escândalo mundial tenha sido a ocasião das recentes cartas de Francisco. Muitos já se ocupam disso. Reconhecemos, com o nosso papa, que o clericalismo foi uma das condições da sua existência, da sua difusão e da sua impunidade até tempos recentes. Mas o clericalismo tem outros efeitos bem diferentes sobre as inteligências e as consciências. “Ele não só anula a personalidade dos cristãos, mas também tem uma tendência a diminuir e desvalorizar a graça batismal que o Espírito Santo pôs no coração do nosso povo”, escreve Francisco.
Eu escreverei sucessivamente sobre:
- o desvio de sentido de certas expressões;
- certos erros relativos ao sacramento da ordem;
- certas deformações do ministério presbiteral.
Uma dessas expressões é “alter Christus” e “in persona Christi” ou a sua variante “in persona Christi capitis” que, não traduzidas, são facilmente percebidas por alguns com uma aura de mistério, como uma espécie de “transfiguração” que contribui, erroneamente, para sacralizar o padre.
De acordo com a origem etimológica, em referência ao teatro grego antigo, devemos compreender “persona” como “papel”. Trata-se do papel desempenhado pelo padre nos sacramentos.
Assim, nas assembleias eucarísticas, o padre faz, “in persona Christi”, o relato da Última Ceia e pronuncia as palavras de Jesus, mas é Cristo que age através do padre, e não o padre que faz Cristo “aparecer”. Essa representação não se aplica aos atos e palavras não sacramentais do padre. Na vida religiosa atual e para as atividades profanas, o pároco não encarna Cristo na sua paróquia, nem o bispo na sua diocese.
A associação entre a ordenação e um grau superior de santidade
A associação entre a ordenação e um grau superior de santidade está em muitas mentes há muito tempo. Não era incomum ouvir: “Ele se tornou padre para salvar a sua alma”!
No decreto do Vaticano II sobre o ministério e a vida dos padres, lemos um enunciado (Presbyterorum ordinis §12) que pode parecer ambíguo, porque, mesmo que o artigo comece recordando que certos padres “já pela consagração do Batismo receberam com os restantes fiéis o sinal e o dom de tão insigne vocação e graça para que, mesmo na fraqueza humana, possam e devam alcançar a perfeição”, acrescenta: “Fazendo todo o sacerdote, a seu modo, as vezes da própria pessoa de Cristo, de igual forma é enriquecido de graça especial para que, servindo todo o Povo de Deus e a porção que lhe foi confiada, possa alcançar de maneira conveniente a perfeição d’Aquele de quem faz as vezes”. Mas a graça do sacramento da ordem é uma graça para os outros.
A ordenação não é um superbatismo, que constitui uma classe de supercristãos. Os Padres do Concílio Vaticano II expressam firmemente: “Comum é a dignidade dos membros (do povo de Deus), pela regeneração em Cristo; comum a graça de filhos, comum a vocação à perfeição; uma só salvação, uma só esperança e uma caridade indivisa. Nenhuma desigualdade, portanto, em Cristo e na Igreja” (Constituição sobre a Igreja, Lumen gentium, LG § 32).
Afirmamos muito claramente que a santidade não depende do estado de cada um – celibatário, casado, viúva, padre –, mas da sua resposta pessoal à graça que é concedida a todos, porque Deus quer que todas as pessoas sejam salvas.
A ordenação e seus limites
O batismo é a única fonte de toda a vida cristã. Os sacramentos posteriores à iniciação cristã conferem uma “qualificação” própria. A ordem, assim como o matrimônio, consagra caminhos diferentes da vida batismal comum e confere àqueles que recebem o sacramento uma atitude nova e um lugar determinado na comunidade. Trata-se de uma modificação do modo de ser-para-os-outros, mas não de uma modificação da essência. Novamente, não existem super-humanos!
Francisco recorda isso em sua carta ao cardeal Ouellet: “Nossa primeira e fundamental consagração afunda suas raízes em nosso batismo. Ninguém foi batizado padre nem bispo”.
No entanto, Pio X, na sua encíclica Vehementer nos (1906), descreveu a Igreja como uma “sociedade de essência desigual que compreende duas categorias de pessoas”. E continuava: “Essas categorias são tão claramente distintas entre si que só no corpo pastoral residem o direito e autoridade necessários para promover e dirigir todos os membros rumo às finalidades sociais; e que a multidão não tem outro dever senão o de se deixar guiar e de seguir, como um dócil rebanho, os seus Pastores”, imagem ainda impressa em muitas mentes.
Se os Padres do Concílio Vaticano II escreveram: “O sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial ou hierárquico se diferenciam essencialmente” (LG § 10), eles também enunciaram firmemente a igual dignidade de todos os batizados (§ 12). São os sacerdócios que diferem essencialmente, não os filhos de Deus!
Francisco insiste: “Mas [...] essa afirmação da igual dignidade no seio da Igreja pode provocar e justificar [...] sentimentos de indignação quando essa dignidade, afirmada em linha de princípio, não parece honrada pela instituição, pelo seu discurso, pelas suas regras, pelas suas tradições, pela sua casuística etc., em relação às aspirações que emergem legitimamente nas consciências e nas comunidades”.
É desde o seminário que os desvios ocorrem. Os seminários têm o efeito de integrar no espírito dos seminaristas um ordo, uma ordem constituída, que segue o espírito de Pio X e que não pode deixar de recordar o Ancien Régime e as suas três ordens. E esse estado de espírito se desdobra facilmente em uma monarquia clerical que ignora que muitas questões devem ser tratadas segundo a subsidiariedade e a colegialidade (incluindo os leigos).
Por que alguns bispos mandam seus postulantes para uma instituição fora da sua diocese, embora uma parte dos estudos seja dispensada em sua própria diocese e permita que os leigos obtenham diplomas canônicos?
São inúmeros os pontos da vida das paróquias e das dioceses que deveriam envolver todos os batizados, os quais deveriam poder exercer responsabilidades de acordo com suas competências, mas são impedidos pelo espírito de poder que predomina sobre o do serviço junto a certos padres e leigos “clericalizados”!
Pelo contrário, vale a pena se debruçar sobre a iniciativa significativa e exemplar do Papa Francisco na preparação dos sínodos dos bispos sobre a família e depois no sínodo sobre os jovens e a fé cristã: ao contrário do costume relativo ao clericalismo, ele pediu a participação de todos os batizados na preparação do documento de trabalho dos Padres sinodais! Uma preparação de baixo para cima! Algo jamais visto antes!
A mediação do padre não é absolutamente necessária. Ela é subordinada (à de Cristo), útil (se procede da misericórdia do Pai), mas não indispensável ao Espírito (que sopra onde quer).
Nos Evangelhos, os apelos de Jesus (palavras e atos) ao serviço e à caridade são numerosos demais para serem lembrados aqui. Mas talvez possamos meditar sobre a interrogação que surge depois de lavar os pés dos discípulos: “Vocês compreenderam o que acabei de fazer?” (Jo 13, 12b). Podemos ler tanto um convite à reflexão quanto uma consternação diante das resistências humanas.
Francisco escreve: “Somos chamados a servir os leigos, não a nos servirmos deles”.
A propósito de desvios do serviço em poder, vejamos a realidade dos direitos dos fiéis na Igreja. Evocarei apenas dois aspectos, a título de exemplo.
a) O direito de expressão
É um direito explicitado no Direito Canônico (formulado com o estilo que convém): “Os fiéis, segundo a ciência, a competência e a proeminência de que desfrutam, têm o direito e mesmo por vezes o dever, de manifestar aos sagrados Pastores a sua opinião acerca das coisas atinentes ao bem da Igreja, e de a exporem aos restantes fiéis, salva a integridade da fé e dos costumes, a reverência devida aos Pastores, e tendo em conta a utilidade comum e a dignidade das pessoas” (c. 212 § 3). E o cânone 221 § 1 afirma que “aos fiéis compete o direito de reivindicar legitimamente os direitos de que gozam na Igreja, e de os defender no foro eclesiástico competente segundo as normas do direito”.
Ad intra, a expressão do cristão leva a evocar o sensus fidei. Este pode ser considerado, em nível pessoal, como uma capacidade de perceber a verdade da fé, recebida do Espírito Santo que “nos introduz a toda a verdade”. Em nível comunitário, embora o sensus fidei e a opinião pública não sejam da mesma natureza, eles estão intimamente ligados, mas não entraremos nessa distinção aqui. Deixaremos a questão em aberto: vox populi vox Dei?
Se o direito de expressão dos fiéis na Igreja é reconhecido, individualmente ou em associação, onde ele pode ser exercido? Existem lugares de expressão e de debate na Igreja? Infelizmente, na prática, muito frequentemente, constatamos que se escutam aqueles que se optou por escutar, e se ouvem aqueles que se tem a vontade de ouvir! É o que pode acontecer nos sínodos diocesanos, que muitas vezes parecem ser lugares de reflexão e de diálogo para os fiéis. Mas eles são convocados, como conselhos, pelo bispo sobre um assunto que ele define e é ele, no fim, quem redige e promulga os decretos do sínodo e os transmite a Roma.
Assim, não é raro que os participantes nas assembleias sinodais fiquem, ao mesmo tempo, entusiasmados com a iniciativa e frustrados com a impossibilidade de discutir certas questões ou a sua omissão no documento final.
Ad extra, e apesar de padres e bispos não serem os porta-vozes dos fiéis, que absolutamente não participaram da sua nomeação, a mídia busca principalmente a palavra da hierarquia clerical do que a dos fiéis que, em sua grande parte, estão acostumados e resignados com esse fato. Assim, as declarações públicas dos leigos que tentam expressar suas diferenças são facilmente marginalizadas. Restam as redes sociais, em que, como em outros âmbitos, há de tudo, para o bem e para o mal.
b) Direitos trabalhistas
A Igreja expressou-se amplamente sobre o assunto com uma rica e abundante “doutrina social”, concernente ao mundo do trabalho, aos seus papéis, às suas regras... E na prática, dentro das instituições, organizações e comunidades eclesiais? Cada vez mais, os leigos exercem – na maioria dos casos voluntariamente, mas às vezes também sob formas de emprego assalariadas – funções diversas nas instituições eclesiais. Aí frequentemente também reina o clericalismo, porque as responsabilidades importantes raramente são confiadas aos leigos, e estes, muito frequentemente, ainda permanecem em uma situação de subordinação ao clero, seja qual for o nível das suas competências e/ou da natureza religiosa ou profana da tarefa.
Inversamente, também é verdade que alguns leigos se apropriam de certas funções e não aceitam que estas sejam questionadas ou possam ter um fim.
Mais gravemente, em nome do “serviço à Igreja”, muitos abusos se perpetuam às custas dos fiéis leigos e/ou de religiosos: superação dos horários de trabalho combinados, salários muitas vezes baixos ou até inexistentes. Aliás, foi somente a partir de 1997 que os bispos franceses adotaram um “estatuto do pessoal leigo da Igreja da França”, que foi seguido, há nove anos, pela implementação das primeiras convenções coletivas em 2016 que levaram à constituição de um acordo setorial entre os representantes dos empregadores e dos sindicatos.
E, nesse mesmo ano, um artigo publicado no dia 1º de março no L’Osservatore Romano lançava um alerta sobre o trabalho “(quase) gratuito” das freiras a serviço de bispos e de cardeais. Esses fatos certamente não são uma exclusividade romana. Eles também fazem parte do clericalismo em favor de seus autores e/ou beneficiários, já que o abuso de autoridade gera uma exploração que pode se tornar sórdida.
Não podemos senão aderir em pensamento, palavras e ações às injunções do nosso papa que escreve: “Tudo o que for feito para erradicar a cultura de abuso das nossas comunidades, sem uma participação ativa de todos os membros da Igreja, não conseguirá gerar as dinâmicas necessárias para uma saudável e realista transformação”; “É impossível imaginar uma conversão do agir eclesial sem a participação ativa de todos os integrantes do povo de Deus”, e ainda: “É a hora dos leigos, mas parece que o relógio parou!”.
A Igreja “é como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (LG 1). A Igreja não é somente o meio, mas também a própria mensagem.
E, como escreveu Francisco: “A visibilidade e a sacramentalidade da Igreja pertencem a todo o povo de Deus (cf. LG 9-14), e não apenas a uns poucos eleitos e iluminados”.
Francisco nos chama a uma conversão radical e a uma “revolução” das práticas para todos os católicos, porque nós somos todos, mais ou menos, atingidos pela peste do clericalismo. Cinco séculos depois da Reforma Protestante, uma nova Reforma é necessária para pessoas e instituições. Ela só será possível através de Igrejas e comunidades locais das quais se deve reconhecer a diversidade sem desconhecer a universalidade na comunhão. Francisco expressa isso de uma maneira lapidar: “Não se podem dar diretrizes gerais para uma organização do povo de Deus dentro de sua vida pública”.
Essa nova Reforma, não só espiritual, mas também funcional e institucional, sine qua non, deverá se basear na promoção da dignidade dos batizados, na sua formação, na sua colaboração responsável. O sacerdócio ministerial, em todos os níveis da hierarquia clerical, cumprirá então a sua missão junto aos fiéis leigos pelo serviço essencial da comunhão e da unidade na diversidade.
Se a Igreja de Cristo realmente “subsiste” na Igreja Católica (cf. LG 8), ela deverá mostrá-la nos fatos e na reforma de suas instituições. Caso contrário, essa Igreja Católica Romana, cada vez mais desacreditada, será cada vez mais desertada pelos fiéis de Cristo; seu anúncio e sua participação no advento do Reino não serão mais audíveis e correrão fortemente o risco de passar ainda mais por outros canais.
Nota:
[1] As recentes cartas a que o autor se refere são a “Carta do Papa Francisco ao Cardeal Marc Ouellet”, 19-03-2016, a “Carta del Santo Padre Francisco al Pueblo de Dios que peregrina en Chile” , 31-05-2018, e a “Carta do Papa Francisco ao Povo de Deus”, 20-08-2018.
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Clericalismo, esse é o inimigo! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU