03 Outubro 2018
“É triste. A caverna era como uma escola para nossos filhos, é onde ensinamos a história [do nosso povo], cantamos músicas e fazemos alguns rituais”, diz o indígena Pirathá Waurá à BBC News Brasil sobre a depredação sofrida na caverna Kamukuwaká, em Paranatinga (MT), às margens do rio Tamitatoala, no Alto Xingu.
A reportagem é de Lígia Mesquita, publicada por BBC News Brasil, 28-09-2018.
O local, sagrado para 11 etnias do Xingu e tombado pelo patrimônio histórico desde 2016, teve parte de suas gravuras apagadas no que a Polícia Militar do Mato Grosso identificou inicialmente como um ato intencional – as figuras estavam gravadas nas rochas da gruta.
Segundo a perícia feita pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em conjunto com policiais, há indícios de que tenha sido usado algum tipo de ferramenta para apagar as gravuras que, em sua maioria, representavam animais. Nem as autoridades, nem os índios waurá sabem dizer quando houve a ação de vandalismo, porque já fazia algum tempo que ninguém visitava o local.
O Iphan já encaminhou ao Ministério Público Federal e à Polícia Federal um pedido de investigação. Por se tratar de gravura em rocha, não há como precisar a data exata delas, mas pesquisadores, arqueólogos e o Iphan dizem que elas podem ter centenas de anos. Para alguns arqueólogos, os desenhos tinham semelhança com tipos de arte rupestre.
“A caverna é muito importante para o nosso povo. É de lá que nascem nossas tradições, como a música de furar a orelha que usamos quando alguém vira líder, nossas danças, nossas pinturas”, diz Pirathá, que é professor na escola municipal de sua aldeia. Ele explicou à BBC News Brasil o mito do guerreiro Kamukuwaká, que teria existido antes da criação do mundo.
A Fundação Nacional do Índio (Funai) também encaminhou às autoridades pedido de investigação. “O que aconteceu é muito grave. É um patrimônio cultural, uma herança da população indígena. É uma perda principalmente para os Waurá”, diz Kumaré Txicão, coordenador regional da Funai no Xingu.
O incidente foi revelado há dez dias por membros da comunidade Waurá durante uma visita à caverna com uma equipe voluntária de assessoria arqueológica e por membros das fundações inglesas sem fins lucrativos Factum e People’s Palace Projects. Na sequência, o Iphan visitou o local e também constatou os danos.
Alguns dos integrantes dessa expedição disseram à BBC News Brasil, sob condição de anonimato, que acreditam haver motivação econômica no ato de vandalismo, já que a caverna fica numa área de interesses agrícolas e ameaça a expansão de uma ferrovia e de uma rodovia. Como ela é tombada, não se pode mexer no local.
Segundo a mitologia dos Waurá, a caverna era o lar do guerreiro Kamukuwaká, por isso ela é sagrada.
De acordo com a tradição indígena Waurá, o guerreiro teria defendido seu povo dos ataques do inimigo Kamo (o Sol), que invejava a beleza de Kamukuwaká. Com a ajuda de pássaros que abriram um buraco no teto da sua casa transformada em pedra por Kamo, Kamukuwaká e sua família escaparam para o céu, segundo a lenda.
“Na história, o Kamakuwaká é o jovem líder do seu povo. Para ser um grande líder, ele tem que furar orelha junto com seus colegas e pode seguir todas todas as etapas de processos de rituais. Até hoje esses rituais que o Kamukuwaká criou para o povo Waurá e de mais outros povos como Kamayurá, Kuikuro, Mehinako, Aweti, Kalapalo, Yawalapiti, Matipu e Nafukuwá, são seguidos. Para um jovem ser líder de algum povo do Alto Xingu, vai seguir as regras de furação de orelha que o Kamukuwaká criou, as danças, as pinturas, as músicas, por isso que esse local é tão importante para o nosso povo”, diz Pirathá Waurá.
A antropológa Patricia Rodrigues, que acompanhou durante quatro anos os Waurá e atualmente faz doutorado na Universidade Notre Dame, nos Estados Unidos, diz que o local também era visitado pela tribo para pedir abundância de peixes no rio, por exemplo.
“É um local de narração de histórias sagradas para eles. Eles fazem uma espécie de reanimação das entidades sagradas e das gravuras. A visita ao local faz parte de um ciclo cosmogônico de renovação”, diz ela.
A pesquisadora também diz que a caverna é considerada um local sagrado de entidades míticas também para os povos Aweti, Bakairi, Kalapalo, Kamaiurá, Kuikuro, Matipu, Mehinako, Nahukuá, Naruvotu, Trumai e Yawalapiti.
A caverna fica dentro de uma propriedade privada e está fora da área de demarcação de território indígena. Para visitar o local, os Waurá precisam fazer viagens de barco que duram de duas a quatro horas, a depender de como está o rio. Por isso, não conseguem ir com muita frequência, diz Pirathá.
Perto do local, há cachoeiras que são visitadas frequentemente e é comum também ver pescadores. “Existe essa visitação comum no entorno da caverna, mas até então nunca havia sido identificado um impacto dessa maneira. Como ainda não fizemos análise técnica específica, não sabemos se foi uma ação propositada ou decorrente de turismo, de vandalismo.”, diz Flavio Rizzi Claippo, diretor do Centro Nacional de Arqueologia do Iphan.
Calippo diz que algumas gravuras foram preservadas porque estavam encobertas por areia. Segundo ele, agora é preciso esperar um novo relatório técnico para saber quais providências serão tomadas.
A expedição que as entidades britânicas realizaram na caverna Kamukuwaká no início de setembro faz parte de um projeto para ajudar na preservação do local.
Esse projeto irá reproduzir com imagens em tecnologia 3D a caverna e as gravuras que foram destruídas. A obra será instalada na próxima Bienal de artes de Veneza, em 2019.
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Ato de vandalismo destrói gravuras históricas sobre mito indígena em caverna do Xingu - Instituto Humanitas Unisinos - IHU