07 Agosto 2018
O pesadelo de María começou quando membros de gangues exigiram que o marido pagasse um "imposto de guerra" — eufemismo para extorsão — de seu caminhão de carga. Ele sempre pagou as 6.000 lempiras (US$250), mas os bandidos o mataram mesmo assim, quando invadiram sua casa em San Pedro Sula há dois anos e tiraram de lá a força. Ele foi encontrado morto pouco depois, com sinais de tortura e seis tiros na cabeça.
A reportagem é de David Agre, publicada por Global Sisters Reporter, 02-08-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
María, aos 29 anos, fugiu com os três filhos, todos com menos de 10 anos, para outra região em Honduras. Alguns meses depois, o irmão dela — que havia sido deportado dos Estados Unidos 18 meses antes — também foi morto por gangues. Supondo que poderia ser a próxima, María fugiu do país com outro irmão.
"Saímos no dia seguinte, com 2.000 lempiras [US$ 84]... praticamente nada," contou ela, durante uma entrevista na sede do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, em Tegucigalpa, capital de Honduras.
Ela deixou os filhos com a avó, por receio de que eles sofressem muito na viagem, e foi para os EUA. María chegou até o estado de Tabasco, no sul do México, onde foi detida e deportada por funcionários do serviço de fronteiras mexicano. Seu irmão, que, segundo ela, "correu mais rápido", conseguiu escapar e foi para os EUA.
María, pseudônimo usado para proteger sua identidade, está entre as milhares de pessoas da América Central que tentam escapar da violência e da pobreza, mas acabam sendo deportadas de volta para o país e para as condições de que fugiram. Os países do Triângulo Norte - Guatemala, El Salvador e Honduras - estão entre os países com mais mortes no mundo, com uma taxa de homicídio que por vezes supera 80 mortes a cada 100.000 pessoas.
Mesmo com políticas de imigração mais rígidas nos EUA e uma rota pelo México cheia de riscos, como sequestro, roubo e estupro, são fortes as motivações para sair do país, dizem observadores da América Central. Eles citam três grandes razões para a emigração: violência, pobreza e planos de reagrupamento familiar, embora os três países tenham dinâmicas diferentes.
A violência força muitos a fugir, disse a irmã Scalabriniana Lidia Mara Souza da Silva, diretora do Ministério de Mobilidade Humana dos bispos hondurenhos humanos, que atende migrantes saindo e retornando ao país, voluntariamente ou não.
"O maior problema é a extorsão. Todos pagamos esse preço", disse. A extorsão também é a prática do bairro onde vivem as Irmãs Scalabrinianas, mencionou. "A extorsão já está incluída nos pagamentos para empresas de segurança privada, e eles têm que pagar as gangues, ou seja, todos pagamos."
Houve mais mulheres fugindo de Honduras nos últimos anos, observou, muitas vezes para proteger seus filhos, que se tornam presas ou são colocados nas gangues à força na adolescência. Os meninos viram soldados, e as meninas são obrigadas a namorar os bandidos contra a vontade.
"É para salvar as crianças das gangues", contou. "A questão é a violência, porque essas mulheres não apenas trabalham para alimentar a família, mas têm que pagar a extorsão — enquanto seus filhos estão em risco."
Quem busca abrigo enfrenta inúmeros obstáculos. As famílias são obrigadas a voltar antes de conseguir chegar à fronteira para pedir asilo. Os filhos de quem consegue atravessar a fronteira dos EUA está em risco pela política de "tolerância zero" anunciada pelo governo Trump em abril que separou mais de 2.300 crianças dos pais. A política provocou indignação e acabou sendo anulada depois que um juiz federal decidiu que as crianças deveriam voltar a ficar com os pais. Agora sob políticas mais duras dos EUA, a violência doméstica ou imposta pelas gangues já não é o suficiente para pedir asilo.
É nesse clima de violência que muitas pessoas que foram deportadas estão chegando a Honduras. O Observatorio Consular y Migratorio de Honduras já contabilizou que 39.585 imigrantes retornaram entre 1º de janeiro e 15 de julho (quase todos dos Estados Unidos e do México) — 44.7% mais do que o mesmo período de 2017, de acordo com o jornal hondurenho El Heraldo.
As três Irmãs Scalabrinianas brasileiras coordenam dois Centros de Atenção ao Migrante Retornado nos aeroportos de Tegucigalpa e San Pedro Sula. Os centros recebem muitos imigrantes várias vezes por semana e ajudam repatriados a reemitir documentos de identificação, encontrar transporte ou com ajuda médica e psicológica.
Porém, o principal serviço das irmãs é oferecer uma recepção calorosa, servir aos imigrantes café e baleadas — prato típico hondurenho de tortilhas de farinha e feijão vermelho — e um pouco de dignidade para as pessoas que chegam com seus sonhos frustrados e "devastados", afirmou Silva.
"Algo que para mim é pastoralmente fundamental quando falamos de imigrantes, refugiados e pessoas deslocadas é olhar nos olhos, para que sintam que são importantes, que têm dignidade, que sintam que são importantes", relatou.
Muitas vezes, os que foram deportados não podem retornar a seus antigos bairros porque as ameaças de que fugiram permanecem. Ir para outra região é arriscado, porque as gangues olham para os recém-chegados com desconfiança; os que já viviam em regiões dominadas por rivais são considerados inimigos.
Desde que voltou para Honduras, às vezes María trabalha processando café. Ela tentou iniciar uma pequena loja com capital semente proveniente de um grupo não governamental, mas outros grupos de extorsão a obrigaram a abandonar os planos antes mesmo de começarem.
María conta que ainda recebe ameaças por telefone relacionadas aos negócios do falecido marido. "As gangues sempre têm alguém profundamente ligado à polícia", disse. É por isso que a família nunca informou a morte do marido, apesar de ele ser médico. É por isso também que muitos hondurenhos não confiam nas autoridades.
"Esses grupos criminosos são capazes de encontrar qualquer um", disse Jaime Flores, coordenador do Observatório dos Direitos da Criança e do Adolescente de Honduras e a Casa Aliança. "Eles têm uma rede que consegue encontrar a pessoa onde quer que esteja".
Essa é uma das preocupações de Ingrid Álvarado. Ela fugiu do norte de Honduras em fevereiro, após a gangue Mara Salvatrucha MS-13 — que disputa o controle dos bairros com a rival Calle 18 — exigiu que seu sobrinho de 14 anos entrasse no grupo. "Eles disseram que se meu sobrinho [que morava em sua casa] não entrasse, eu pagaria com a própria vida e meus filhos também."
Ela e o sobrinho entraram nos EUA pelo México, onde ela conta que escapou de ser estuprada duas vezes, viajando em pequenos ônibus até a fronteira, em El Paso, Texas, onde pediram asilo.
Ingrid Álvarado, 26 anos, diz que o pedido de asilo do sobrinho ainda está sendo processado. Ela abandonou o pedido após três meses na prisão, além das preocupações com os dois filhos, de 4 e 7 anos, que ficaram com os avós: "Eu não aguentava mais". Ela retornou a Honduras em maio e mudou-se para outro bairro, controlado pela Calle 18. O simples fato de ter morado numa região dominada pela MS-13 faz dela alguém suspeito para eles, revelou.
Avisos de funcionários dos Estados Unidos, mais recentemente do vice-presidente Mike Pence, tentam dissuadir a migração. A primeira-dama de Honduras, Ana García, recentemente tuitou fotos conversando com famílias que foram separadas no Texas, com a advertência: "Não corram o risco de tomar o caminho dos imigrantes". Funcionários de Honduras incentivam o investimento financeiro em pequenas empresas mesmo com a banalização das extorsões e a falta de proteção policial. (O Ministro do Exterior não respondeu ao convite para dar uma entrevista. A segurança do Centro de Atenção ao Migrante Retornado não permitiu o acesso de visitantes.)
Os centro-americanos conhecem os riscos. O ministério das Irmãs Scalabrinianas às famílias dos imigrantes mortos no México por grupos de tráfico de drogas e aos que perderam membros depois de cair embaixo dos "Bestia", trens de carga em que pegam carona até o norte do México.
"O que acontece no caminho até a fronteira dos EUA seria menos grave do que o que vivem aqui", disse Flores, em relação ao pensamento dos imigrantes.
Houve uma onda de repressão e agitação política logo após um golpe, em 2009, que depôs o então presidente Manuel Zelaya. O presidente Juan Orlando Hernández venceu a eleição de 2013 em meio a acusações de que sua campanha tinha sido financiada por desvios do sistema de segurança social estatal. Outra onda de violência eclodiu após sua disputada reeleição, no final do ano passado. Estima-se que esse clima de instabilidade tenha aumentado a imigração em 30% no início de 2018, relata Silva.
Fatores sociais e econômicos também incentivam as pessoas a deixarem o país. Concessões a mineração e outros megaprojetos estão deslocando as populações em algumas regiões de Honduras. A desigualdade aumentou: Honduras é o país mais desigual da América Latina e o sexto país com maior desigualdade do mundo, segundo o Banco Mundial.
As elites de Honduras desfrutam de benefícios fiscais, como em lucros de restaurantes de fast-food, à custa de pessoas de classes econômicas inferiores, disse Ismael Zepeda, economista do Fórum Social de Dívida Externa e Desenvolvimento de Honduras (FOSDEH), uma organização sem fins lucrativos de políticas públicas. As contas de luz aumentaram, e o imposto de vendas subiu de 12 para 15%.
A chegada massiva de imigrantes é responsável por grande parte da "estabilidade macroeconômica" do país, e muitos hondurenhos trabalham na economia informal, onde "estudos mostram que a maioria das pessoas ganha menos do que um salário mínimo", disse Zepeda.
"São os pobres que financiam os pobres", afirmou. "Os 3 pontos percentuais [de imposto sobre vendas] a mais financiam o principal programa de combate à pobreza."
Nenhum país do Triângulo Norte tem um excelente desempenho ao atender pessoas que vivem na pobreza ou imigrantes retornando ao país de origem, diz Elizabeth Kennedy, pesquisadora de ciências sociais em Tegucigalpa. Mas, em Honduras, "isso é quase um estado corporativo. Eles não oferecem serviços aos cidadãos e chegam a falar - com muito orgulho - sobre relegar os serviços a terceiros."
O último estudo de Elizabeth Kennedy sobre crianças que fugiram de El Salvador, publicado em 2014, mostrou que a violência era um fator importante na maioria dos casos de migração.
"A violência nestes três países [da América Central] é direcionada. Não é generalizada", observou. "Setenta a 80% dos homicídios são de alguém que é baleado a caminho do trabalho, no carro, em casa, dormindo na própria cama... fica claro que essa pessoa era o alvo."
As gangues controlam bairros inteiros e impõem suas próprias regras sobre a população, disse.
"Para as gangues, é vantajoso que uma pessoa de cada casa [do bairro] esteja envolvida com elas de alguma forma... o que diminui a probabilidade de serem denunciados", relata Kennedy. "Elas acreditam que estão protegendo a família com benevolência, então claro que se paga uma pequena quantia [ou extorsão] em troca.”
Além disso, "tudo que está no bairro pertence à gangue", relata ela em relação aos líderes. "Eles sentem que as meninas e mulheres do bairro são propriedade deles e que têm o direito de usá-las. 'Você pertence a nós. Você mora aqui. Deve fazer parte do nosso grupo'... é por isso que [os meninos] podem ser recrutados à força."
Também se sente o fluxo emigratório nas áreas rurais. Nos morros do departamento (estado) de Copán, em Honduras, grande parte da população local cultiva cana-de-açúcar e café em pequenas propriedades de terra, mas se deparam com preços pouco atraentes e custos cada vez mais altos. Vinte pessoas saíram da aldeia de Zapote em 2018, num total de apenas 200 famílias, segundo agricultores de café da região.
"Se o preço do café aumentar, essas pessoas que estão nos Estados Unidos vão voltar", disse Moises García, plantador de café que já trabalhou colhendo cenouras no Canadá em um programa de trabalho temporário e conseguiu expandir suas propriedades de terra em Honduras com seus ganhos.
As atividades dos cartéis de drogas são comuns na região, que fica na rota que vai da América do Sul para o México. Por mais que as pessoas que estão saindo do país aleguem que é por razões econômicas (muitas não querem dizer que os cartéis de drogas são a verdadeira razão), os moradores da região falam com calma sobre as pessoas que estão saindo por causa das ameaças.
O padre Germán Navarro, pastor de Copán, disse que o número de intenções na missa para pessoas na rota para os EUA aumentou em 2018. Alguns vêm pedir bênçãos, mas muitos simplesmente vão embora e enviam mensagens do México pedindo orações, já em situações difíceis.
Roberto, 24 anos, estava entre os que se encaminhavam para o norte. Ele perdeu grande parte de sua terra depois da morte de um familiar e deixou dívidas para as quais a família era fiadora. Nos Estados Unidos, ele poderia ganhar o dinheiro de que precisava para recuperar a terra. No início deste ano, ele pagou US$ 7.000 para um "coiote" levá-lo a Houston, assim como um primo e seis amigos.
Eles andaram por toda extensão do México em um trailer e, ao chegar à fronteira com os EUA, esperaram numa casa segura por duas semanas. Roberto, que manteve o nome em sigilo por segurança, suspeita que os contrabandistas faziam parte do cartel de drogas. Eles estavam aguardando uma transferência ilegal, disse, e "nos usou como isca" enquanto levavam as drogas de um lado do Rio Grande até os Estados Unidos.
Roberto foi preso e deportado para Honduras em maio, enfrentando dívidas ainda maiores resultantes da tentativa de ir embora. Mas uma pessoa no grupo conseguiu, fato que Roberto atribui à "sorte".
Agora, sem chance de escapar, por ter poucas terras e pelos baixos preços da cana de açúcar, ele pondera sobre seu destino.
"Foi destruído", disse, a respeito de seu retorno. "Sabendo como as coisas aconteceram, sabendo todo o dinheiro que devo, penso: 'como?'", disse, com a voz trêmula.
Quanto a María, por enquanto seus filhos a mantém em Honduras. Mas ela confessa uma tentação de ir embora novamente — "quando fico desesperada".
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Buscando refúgio: para hondurenhos, ficar em casa é mais perigoso do que tomar o caminho da imigração - Instituto Humanitas Unisinos - IHU