13 Julho 2018
Édi Almeida é filho de agrônomo. Foi natural que seguisse o caminho do pai, trabalhando na fiscalização de agrotóxicos no campo na região do Vale do São Francisco, um dos principais pólos produtores de frutas para exportação do país.
(Foto: Reprodução The Intercept)
A reportagem é de Tatiana Dias Fonte, publicada por The Intercept Brasil, 11-07-2018.
A proximidade com o tema – ele também estudou na universidade sobre os riscos do consumo irregular de agrotóxicos –, no entanto, não o livrou de sentir na pele os efeitos devastantes dos produtos. Desde o ano passado, Almeida se recupera de uma polineuropatia crônica, problema de saúde que o fez sentir paralisia nas pernas; depois, os nervos dos braços foram afetados, obrigando-o a passar por duas cirurgias.
Almeida conta que não foi o único a sofrer com o manuseio dos produtos, mesmo seguindo todas as recomendações dos fabricantes. Outro colega, que trabalha com o mesmo tipo de agrotóxico que ele – um inseticida do grupo dos organofosforados, em grande parte proibidos nos EUA e na Europa – teve o mesmo problema. Alguns inseticidas desse grupo já foram banidos pela Anvisa, mas outros seguem no mercado expondo pessoas a casos clínicos de fadiga mental, transtornos mentais, suicídios e predisposição ao câncer.
Almeida conhecia bem os riscos dos produtos, e usava todos os recursos para a sua proteção. Ainda assim, está convencido de que foi afetado. Ele contou sua história ao The Intercept Brasil.
Meu pai é agrônomo. E filho de peixe, né? Entrei em Agronomia em 2006. Eu fiz um concurso para trabalhar perto do meu pai e passei. Fiz especialização em perícia ambiental em 2015. E, ano passado, finalizei o mestrado em agronomia na área de inseticidas botânicos. Meu objetivo era pesquisar ferramentas alternativas para o controle da mosca das frutas. Eu trabalho com fiscalização de agrotóxicos em campo.
Em setembro do ano passado eu tive uma paralisia parcial no pé. Os dedos paralisaram. O médico disse que poderia ser coluna, pressão no nervo, ou problema neurológico. Fizemos exames na coluna, não deu nada. O problema era na perna esquerda, mas o médico pediu exame nas duas. A direita estava alterada também. Tudo comprometido. Os exames acusaram uma polineuropatia crônica e uma mononeuropatia.
“Muitos médicos não querem cravar que foi agrotóxico. É uma coisa silenciosa.”
Quando voltei ao médico, ele me encaminhou para o neuro e me pediu um exame completo. Meus braços também tinham sido afetados. E o médico disse: ‘você está com uma polineuropatia séria’. Esse problema pode ser causado por vários fatores, desde diabetes até alcoolismo em último estágio. Eu fiz mais de 20 exames, sangue, doenças degenerativas, tudo negativo. Fiz o teste de colinesterase, que é o que detecta intoxicação por agrotóxicos. Deu baixo. Aí o médico me passou um remédio para dor e para o nervo voltar ao normal.
Ele disse que o meu problema foi causado por agrotóxicos. Não tem diagnóstico laboratorial. É clínico. Ele me pediu para me afastar do campo e ficar só no escritório.
A neuropatia é tipo uma inflamação nos nervos. Dificulta a atividade neurológica. Quando você força um nervo, ele incha. E como eu fiquei muito no escritório, acabei desenvolvendo uma lesão por esforço repetitivo nas duas mãos.
Cicatriz de uma das cirurgias (Foto: Arquivo Pessoal)
O ortopedista disse que nunca tinha visto um caso desse. Perdi quase 100% de massa muscular em uma das mãos. Fiz duas cirurgias de túnel de carpo, uma em cada pulso. Quando fiz a primeira, ele viu que tava muito comprometida. Se eu demorasse mais, perderia o movimento.
O médico mencionou a possibilidade de intoxicação. Ele perguntou: “você trabalha com o que?”. Eu falei que trabalho com fiscalização de agrotóxicos. “Então é isso”, ele disse. “Rapaz, isso é muito sério”. “O que causa isso é justamente inseticida. Porque o modo de ação desse tipo de agrotóxico é no sistema nervoso dos insetos”.
Eu e os meus colegas temos contato indireto. Por mais que a gente use equipamento, máscara, luva, o vapor do produto é absorvido pela pele.
Todas as outras possíveis causas deram negativo nos exames. A intoxicação por agrotóxico é difícil de comprovar laboratorialmente. É um quadro clínico, há uma série de indícios. E muitos médicos muitas vezes não querem cravar que foi por agrotóxico. É uma coisa silenciosa. Muita gente pode ter o problema e não sabe. O meu caso era crônico, foi uma intoxicação lenta. Mas conheço gente que teve intoxicação aguda e também teve neuropatia, igual a mim.
Nós usamos equipamento de proteção, temos tudo. Mas o produto é absorvido pela pele. Sabemos que é um produto tóxico. Mas é muito complicado.
Na nossa região tem muita gente que usa agrotóxicos de forma irregular. A gente fiscaliza. São muitos pequenos produtores, muitos até analfabetos. São pessoas que não têm noção. Eles sabem do efeito rápido: se causa alguma coisa na hora, sabem que é ruim. Mas quando é crônico, a longo prazo, eles não percebem. A gente orienta, pune, multa. Mas precisamos trabalhar na orientação. É uma questão cultural.
Eu trabalho desde 2011 com isso e posso dizer que melhorou muito. Hoje os produtores aplicam na hora certa, com proteção. Antes eles simplesmente aplicavam de shorts, chinelo. Tem alguns produtos que demoram mais para fazer efeito e o produtor aplicava mais e mais veneno até matar a lagarta. Hoje mudou. Mas a gente tem a percepção que piorou porque estamos tendo contato com problemas que começaram há 10 anos. Eu estou na área e acho que zerar o uso de agrotóxicos no Brasil é impossível. No nosso atual modelo de produção, impossível. Acho que lutar pelo uso correto já seria bom.
E, mesmo que você siga as regras e minimize os riscos, eles sempre existem. A aplicação aérea de agrotóxicos, por exemplo, faz com que a maior parte do produto não atinja o alvo. É um método que é um crime. Trabalhos mostram que que contamina água de escolas. Contamina leite materno. Pode aplicar? Pode. Estava dentro das regras? Estava. Mas contaminou. Por mais que você respeite as regras, ainda há o risco.
Eu coordeno um programa em que de 60% a 80% do controle de pragas é alternativo. O meu mestrado foi nessa área. Para acabar com as moscas, basta tirar os frutos maduros da área. Mas o pessoal quer aplicar produto químico, porque não acreditam. E não tô falando de analfabeto. Tô falando de agrônomo.
O projeto de lei acho um crime. Se a gente tem a Anvisa contra, o Ibama contra, pesquisas que mostram os riscos para saúde… O meu discurso é parecido com os antibióticos. O consumo exagerado cria superbactérias. Se os antibióticos fossem usados da forma correta, não teria essa resistência das bactérias. Com agrotóxicos é a mesma coisa. Se a gente usasse do jeito certo e buscasse métodos alternativos, não teríamos problema. Mas o lobby das empresas de agrotóxicos é muito grande.
Já entrei em palestras que eram quase lavagem cerebral. Tenho ex-colegas de faculdade, que eram chamados de verdinhos, ativistas ambientais, que foram trabalhar para empresas de agrotóxicos. Eu sou mais político. Acho que a gente só conseguiria zerar o uso com uma revolução muito grande, uma guerra. Eu acho que é preciso ir aos poucos.
“A indústria já fez lavagem cerebral em quem tem graduação, mestrado, doutorado. Imagina em quem não tem estudo.”
Às vezes a indústria diz “não tem alternativa, só tem esse produto”. E no grupo de colegas formados a gente ouve absurdos. É um crime. A indústria já fez lavagem cerebral em quem tem graduação, mestrado, doutorado. Imagina em quem não tem estudo. E a gente tem um modelo econômico que força o uso. Se a gente produzisse alimento para consumo interno, teríamos mais cuidado.
Em termos de produção agrícola, o Brasil é uma colônia. A gente não produz comida, produz commodity e manda para fora. Se a gente produzisse alimentos, hortaliças etc, a população estaria mais atenta. Precisa conscientizar os produtores e os consumidores. Mesmo que a gente não consuma aqui, o ambiente está sendo contaminado. Precisamos conscientizar a sociedade para que ela também atue como fiscal. E temos que investir em alternativas.
Em 2016 comecei um curso de administração. Eu queria trabalhar na área de controladoria e auditoria. Depois que eu tive esse problema, me disseram que eu sou um exemplo vivo da área de sustentabilidade. E eu estou estudando para mostrar que o nosso modelo é insustentável.
Eu acho que temos de tirar proveito positivo desse tipo de experiência. Eu tenho um relacionamento bom com meus colegas e me orgulho da função que eu exerço. Quando uma pessoa diz pra mim “agrotóxicos não fazem mal”, eu digo: “eu tenho uma marca nas mãos que mostra que fazem”. É um instrumento a mais para o meu trabalho. Se fez mal para mim, que tenho consciência, imagina para quem não tem e está no campo.
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‘Quando alguém me diz que agrotóxicos não fazem mal, eu mostro minhas mãos’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU