28 Junho 2018
O país chegou a ser a quinta economia do mundo nos anos noventa, mas o euro frustrou o milagre – e assim os extremismos acabaram chegando ao poder.
O artigo é de Alexander Stille, professor da Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia e autor de ‘The Sack of Rome’ e ‘Excellente Cadavers: The Mafia and the Death of the First Italian Republic’, publicado por El País, 24-06-2018.
Há cerca de 30 anos, um banqueiro alemão disse a um amigo meu italiano: “Que sorte você tem de viver num país sem um Governo eficaz”. O que o banqueiro queria dizer, meio em tom de piada, era que a ausência de um Governo forte dava aos italianos uma margem de manobra inexistente na Alemanha, onde havia todo tipo de normas e regulações que, em geral, eram aplicadas com absoluto rigor. Naquela época, a Itália era uma espécie de milagre. Durante o meio século posterior à Segunda Guerra Mundial, o país foi, juntamente com a Alemanha, uma das economias que mais cresciam no mundo, apesar de um elevado nível de corrupção, das crises de Governo que ocorriam todo ano, do grande volume de sua dívida nacional, de ter uma infraestrutura medíocre e de contar com serviços públicos com frequência ineficientes. Apesar de tudo isso, nos anos noventa o PIB da Itália ultrapassou por um breve período o do Reino Unido, o que a transformou na quinta economia do mundo.
Hoje, o panorama da Itália não é tão bom. Seu PIB caiu para o oitavo posto mundial e é 36% menor que o do Reino Unido, um sintoma de quanto terreno o país perdeu. Sua economia está 10% abaixo de onde se encontrava antes da recessão do de 2007-2008. O desemprego entre os jovens ainda supera os 30%. E cerca de dois milhões de pessoas, em sua maioria jovens formados e qualificados, foram embora do país para tentar a sorte em outros lugares. Muitos italianos viram seus descendentes emigrarem porque têm pouco futuro em casa, enquanto ao litoral do país chegam barcos cheios de estrangeiros desesperados – 127.000 no ano passado – em busca de asilo. Embora essas duas migrações não tenham relação direta, para muitos italianos elas encarnam, junto com a perda do nível de vida, a sensação de que seu país caminha na direção errada. Nesse contexto, não surpreende que os eleitores, em março, tenham rejeitado nas urnas os partidos tradicionais, que dirigiram o país nos últimos 25 anos, e optado por dois movimentos pouco convencionais: a Liga Norte, com uma firme postura anti-imigração, e o Movimento Cinco Estrelas (M5S), com uma posição antissistema, que foi fundado pelo comediante Beppe Grillo.
O que deu errado na Itália? Por quê, de repente, deixou de funcionar um sistema com Governos fracos e relativamente ineficazes mas que havia produzido quase 50 anos de prosperidade crescente? Um dos motivos é que, quando entrou para a zona do euro, o Governo italiano perdeu grande parte de seu poder de manobra no campo econômico. Em 1993, quando a Itália sofreu uma recessão preocupante, o Gabinete de Giuliano Amato desvalorizou a lira em quase 80%. Da noite para o dia, as empresas italianas tiveram muito menos dificuldade de vender seus produtos no exterior, pois seus preços haviam caído. Assim, o país pôde aumentar a produção e superar a recessão.
Outro segredo inconfessável do estilo italiano de governar, segundo me explicou o economista Luigi Spaventa no início dos anos noventa, foi a inflação. A Itália tinha um índice de inflação vários pontos acima da maioria dos países industrializados. Essa inflação mantinha baixa a cotação da lira, o que permitia que as exportações continuassem baratas. Mas além disso, explicou-me Spaventa, a inflação era uma forma sutil e discretamente progressista de redistribuir a renda. Significava transferir o dinheiro dos cidadãos mais ricos, cuja poupança valia um pouco menos a cada ano, aos assalariados, cujos ordenados eram reajustados em função do aumento de preços. Essa estratégia contrariava todos os princípios elementares da economia: de fato, a inflação fez com que os ricos tirassem o dinheiro do país, e a Itália precisou transformar em crime a exportação de capital. Mas os italianos continuaram entre os maiores poupadores do mundo, e essa estratégia tão heterodoxa não impediu que sua economia continuasse crescendo, ao mesmo tempo em que reduzia as desigualdades.
Com a entrada na eurozona, a Itália perdeu a faculdade de desvalorizar a moeda e se viu obrigada a viver com um limite de déficit público de 3%. Isso limitou muito sua capacidade de estimular a economia.
Seria injusto atribuir todos os problemas italianos ao euro. Mas a rigorosa disciplina do sistema monetário da União Europeia (UE) desnudou os problemas estruturais profundos do país e a falta de vontade ou a incapacidade de seus Governos para abordá-los. A relação entre a dívida e o PIB da Itália, que estava abaixo dos 100% nos anos oitenta, é hoje de mais de 130%, o que diminui enormemente sua capacidade de enfrentar muitos problemas. A Itália continuou gastando mais do que arrecadava, mas já não podia desvalorizar sua dívida como havia feito tantas vezes. Os partidos políticos no poder não sabiam ou não queriam corrigir as ineficiências tradicionais do sistema italiano: um mercado de trabalho excessivamente rígido, o escasso investimento em pesquisa e desenvolvimento, o subdesenvolvimento crônico do sul do país, os altos níveis de corrupção e evasão fiscal e uma burocracia estatal que, em vez de fomentar a atividade empresarial, a asfixiava.
Parecia que a operação anticorrupção iniciada em 1992, a chamada Operação Mãos Limpas (que já foi comprada à Operação Lava Jato), podia oferecer a possibilidade de limpar o sistema e ajudá-lo a funcionar numa nova Europa. Mas a ascensão do magnata da comunicação Silvio Berlusconi, em 1994, interrompeu esse processo. É certo que o Partido Democrata, de centro-esquerda, alternou-se com Berlusconi no poder. Mas, embora tenham feito as coisas um pouco melhor, os democratas tampouco souberam ou quiseram resolver esses problemas estruturais. Os italianos buscaram em seus Governos uma saída para suas mazelas, mas esses Governos já não dispõem das ferramentas habituais (desvalorização e gasto público) para estimular o crescimento e reduzir o desemprego. Isso gerou um estancamento prolongado, uma elevada taxa de desemprego e uma escalada de indignação cada vez maior contra esses Executivos incapazes de deter a queda.
O resultado é um Governo que é eurocético ou antieuropeu. Até agora, o novo Executivo teve o cuidado de não violar as normas europeias, adiando o corte fiscal prometido. Ao mesmo tempo, contudo, não parece provável que vá fazer as dolorosas reformas estruturais que os defensores da austeridade na UE gostariam.
Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de Economia, prevê que o novo Governo italiano poderia tentar implementar uma moeda paralela ao euro, para recuperar parte do controle de sua divisa, o que provocaria uma crise na eurozona. Essa crise, segundo Stiglitz, poderia ser evitada se a Alemanha e outros países europeus mostrassem “mais humanidade e mais flexibilidade”, mas ele não se diz otimista quanto a esse panorama.
Até agora, a UE contemplou o sofrimento dos países membros do sul da Europa com um desdém quase total. Em setembro de 2015, perguntei a Frans Timmermans, vice-presidente da Comissão Europeia, se não havia chegado o momento de realizar um debate sério sobre se o euro funciona para os países como a Itália. Ele me respondeu que a pergunta era tão estúpida que não sabia como responder, e insistiu que qualquer problema da Itália era culpa de seus irresponsáveis Governos. A vitória do Brexit (a saída do Reino Unido da UE) no referendo de 2016 não estimulou um processo de introspecção sério em Bruxelas e Berlim, mas é possível que a nova situação italiana o torne inevitável.
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O que deu errado na Itália - Instituto Humanitas Unisinos - IHU