04 Mai 2018
“Eu não luto pela igualdade: é um ideal utópico demais. É uma fantasia”, lança Adèle, estudante de Administração Econômica e Social, à margem de um protesto universitário em frente à emblemática Sorbonne, no Quartier Latin parisiense. “Prefiro combater pela equidade – esse, sim, é um sonho que podemos, um dia, alcançar.”
A reportagem é de Lúcia Müzell, publicada por Radio France Internationale, 04-05-2018.
No alto dos seus 19 anos, a jovem de classe média nascida em Versailles não perdeu suas ilusões, mas demonstra uma sensatez que a distancia de seus colegas manifestantes contra a reforma educacional de Emmanuel Macron. O movimento vem bloqueando universidades francesas às vésperas do aniversário de 50 anos de Maio de 68, o ano em que tudo mudou para os estudantes como ela.
Espremida entre Capucine, que vê com “simpatia” o recurso à violência e ao vandalismo por uma parcela dos manifestantes – “acho que, às vezes, é a única maneira de o governo e a imprensa verem que a gente existe” – e Téo, que se opõe ao movimento e está mais preocupado com a perda das aulas – “eu vou entender se a polícia perder a paciência e vier nos expulsar daqui” -, Adèle constata que a revolução, hoje, é uma batalha muito mais social do que solidária.
“Hoje, fazemos a guerra nas redes sociais. Não abandonamos a rua, afinal ela nos pertence e aqui estamos nós. Mas a maneira de reivindicar pode ser tão ou mais eficaz por outras formas, que não existiam há 50 anos”, avalia a jovem.
Capucine, porém, vê com uma certa decepção aquela que se tornou a maneira mais comum de protestar em 2018: do conforto do sofá de casa. “Eu até entendo que nos chamem de uma geração de individualistas. Com as redes sociais, cada um fica cada vez mais no seu mundinho, com medo de se molhar”, critica a estudante de Direito e História da Arte.
“Pode até ser mais confortável, mas pelo nosso telefone, somos capazes de ficar horas metralhando um político, uma empresa ou um tipo de comportamento, e isso não nos torna menos militantes. Veja os resultados de campanhas como #MeToo”, responde Adèle, em referência às denúncias de assédio sexual que invadiram a internet.
“Em 68, o contexto era totalmente diferente. Todos os jovens estavam juntos por uma causa e era mais fácil nos juntarmos para reivindicar alguma coisa. Hoje, há uma dispersão completa de interesses e aspirações”, pondera Téo, que cursa o primeiro ano de Direito e Economia.
Essa também é a análise da socióloga Julie Pagis, autora de “Mai 68: un pavé dans leur histoire” (“Maio de 68, uma pedra na história deles”, em tradução livre), no qual entrevista 70 famílias de participantes do movimento, os chamados “soixante-huitards”.
Ela verificou que a estrutura familiar mais horizontal que emergiu graças aos jovens de 1968 se ampliou para o militantismo da juventude atual. “Antes, eram valorizadas as associações, os sindicatos, uma forma mais institucional de reivindicar. Hoje, vemos a rejeição das lideranças e sequer vemos uma estrutura organizada. É como nas redes sociais, onde todos têm direito igual à palavra – porém o resultado é uma palavra dispersa”, explica.
A pesquisadora da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS) lembra o movimento Nuit Debout, que por meses acampou na Praça da República, em Paris, para protestar contra a reforma do mercado de trabalho no país – mas, na prática, não obteve qualquer vitória concreta. “Esse método não cria uma ação coletiva. As redes sociais não fazem milagres: nunca houve uma greve geral ou uma paralisação do país graças à mobilização pela internet”, comenta.
Os três estudantes da Sorbonne, porém, concordam num ponto: é graças aos esforços dos jovens de 50 anos atrás que hoje eles usufruem de um lugar de peso na sociedade. Sentem-se ouvidos e respeitados, como aspiravam seus pais ou avós.
As oportunidades para todos se multiplicaram. O apoio dos pais, que seja nos projetos ou para confortar uma decepção amorosa, é incomparável. Em resumo: valorizam profundamente a liberdade e o poder que a juventude desfruta nos anos 2010, e veem a família como um pilar incontornável.
“Não tenho dúvidas de que a nossa geração é muito mais ligada aos pais do que em 1968 – e vejo isso como uma coisa positiva. É uma sorte que nós temos: eles nos dão estrutura, segurança, conforto. Não temos por que rejeitar isso e muito menos nos envergonharmos”, pontua Brieu, estudante de Direito e Filosofia.
Apesar de ter crescido em meio a uma década perdida para os jovens, após a crise internacional de 2008, ele mantém o otimismo quanto ao futuro. “Tive a sorte de ter pais que sempre me enquadraram em um certo número de regras, mas me deixaram a liberdade de escolher o meu futuro. Em 1968, eles não tinham nem uma coisa, nem outra: as regras eram autoritárias demais e o futuro, pré-determinado desde a infância”, relata o jovem nascido em Nantes.
Os críticos de Maio de 68, no entanto, vão alegar que a liberdade crescente acordada aos descendentes dos “soixante-huitards” resultou em duas gerações consecutivas de jovens que não têm pressa em entrar no mercado de trabalho e veem com naturalidade o fato de morar com os pais além dos 30 anos – algo impensável nos anos 1960.
Outra acusação comum é a de que a criação com mais equilíbrio de poder e menos regras dentro de casa deu origem ao retorno do moralismo e do conservadorismo, inclusive entre os jovens, neste fim dos anos 2010.
“É como o yin e o yang, sabe? A vida funciona em ciclos e acho natural que meus dois filhos sejam bem mais certinhos do que eu era”, atesta o físico Jean-Paul, 69 anos, enquanto observava à distância os protestos dos universitários da Sorbonne e se recordava, nostálgico, de quando ele próprio ajudava a bloquear a instituição, há 50 anos.
“Não chego ao ponto de dizer que o meu filho sentiu falta de autoridade, mas a trajetória que ele seguiu – trabalha com finanças, casou aos 25 anos e tem um apego à religião que eu jamais tive – demonstra que houve uma ruptura em relação àquele mundo que eu tinha lutado para derrubar.”
A emergência do discurso conservador na palavra de garotos e garotas de 20 anos, iniciado nas manifestações contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo, em 2012, motivou a jornalista Pascale Tournier, 45 anos, a investigar o que havia desencadeado essa reviravolta. “Trata-se de um segmento da juventude francesa, e não uma tendência geral. Mas hoje esses jovens têm mais visibilidade porque engataram uma batalha cultural contra o que eles chamam de ‘ordem progressista’. Os jovens de esquerda ou de centro fazem menos barulho do que eles”, observa a autora de Le vieux monde est de retour: enquête sur les nouveaux conservateurs (O velho mundo está de volta: investigação sobre os novos conservadores, em tradução livre).
No trabalho, Tournier constatou que a ideia central que permeia as reivindicações dessa parcela da juventude é a de limites: limite à globalização, ao liberalismo, à ciência, à reprodução, ao progresso e até ao homem, com a rejeição ao transumanismo ou a inteligência artificial.
“Essa juventude contesta a herança de Maio de 68, sem autoridade e sem líderes. Para eles, a vontade de voltar a ter referências fortes é clara”, indica a jornalista. “Mas não podemos esquecer o papel das multicrises dos últimos anos nesse fenômeno. Uma parte dessa geração tem um certo medo desse mundo em plena mutação, onde não faz mais muito sentido se falar de esquerda e direita. É um mundo que não sabemos muito bem onde vai dar, logo parece mais seguro nos apegarmos a referências conhecidas, do passado.”
Esses jovens acabam se voltando para as poucas estruturas verticais que restaram – e que se esforçam para conquistá-los, como a Igreja Católica e o partido de extrema-direita Frente Nacional.
Acabam se tornando porta-vozes da luta contra a imigração ou a reprodução assistida. “Em questões como o uso da pílula anticoncepcional ou o aborto, eles têm posições totalmente retrógradas. Eles não necessariamente contestam esses dois avanços, mas exigem medidas do governo para limitá-los, para que deixem de ser atos banais.”
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Jovens franceses respeitam 68, mas preferem “revolução” pelas redes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU