23 Março 2018
Por trás do "escândalo Viganò" escondem-se problemas não resolvidos: a descontinuidade entre os dois pontificados, a inquietação dos tradicionalistas, o papel de "papa emérito" cada vez mais desconfortável. Francisco conseguirá suportar tudo isso?
A reportagem é de Francesco Peloso, publicada por Lettera 43, 22-03-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Caso Viganò ou caso Ratzinger? No evento, confuso e um tanto mirabolante, que levou à renúncia do prefeito da Secretaria da Comunicação, monsenhor Dario EdoardoViganò, as duas coisas podem ser vistas juntas e os fatos ajudam um pouco a desvendar esse estranho e rumoroso caso político-midiático do Vaticano.
Em janeiro de 2018, por ocasião da futura publicação - pela Libreria Editrice Vaticana – de uma coleção de 11 pequenos volumes de teólogos com comentários sobre a teologia de Francisco, monsenhor Viganò pediu ao Papa Emérito Bento XVI um prólogo para os livros em questão. Ratzinger educadamente recusou, afirmando, porém, que aqueles que veem uma ruptura entre o seu magistério e o de Bergoglio (um demasiado teórico, o outro muito pastoral) são vítimas de um "tolo preconceito". Tudo bem então, o prólogo não saiu, mas a sintonia não está faltando.
No entanto, no texto divulgado pela Sala de Imprensa de Santa Sé faltavam as duas últimas linhas da carta em que Ratzinger explicava os motivos de sua recusa, afirmando que "mesmo que apenas por razões físicas, não estou em condições de ler os onze pequenos volumes no futuro próximo, especialmente porque preciso atender outros compromissos já assumidos"; o trecho "esquecido", mesmo assim, foi lido pelo próprio Viganò durante a conferência de imprensa de apresentação dos volumes em 12 de março, véspera do quinto aniversário da eleição do Papa Francisco à Cátedra de Pedro.
O texto - que naquele momento com o acréscimo das duas linhas parecia completo - foi publicado por Sandro Magister, especialista em Vaticano de longa data, em seu blog. Isso imediatamente causou embaraço e comentários: "Ratzinger é irônico, de fato não quis comentar a teologia de Francisco", logo afirmaram os críticos de Bergoglio.
Em seguida, porém, apareceu um parágrafo inteiro totalmente removido da divulgação da carta (com relativa foto da carta de Ratzinger retocada para que não aparecesse o texto “a mais”). Novamente, o parágrafo omitido facilmente encontrou a via da publicação. E o escândalo estourou.
No texto em questão, de fato, o papa emérito mostrava seu descontentamento com um dos teólogos escolhidos para comentar os volumes do papa Francisco e explicava: "Só para registro, eu gostaria de manifestar a minha surpresa com o fato de que entre os autores também apareça o professor Peter Hünermann que durante o meu pontificado se destacou por ter liderado as iniciativas antipapais". Depois Ratzinger entrou em detalhes de algumas dessas controvérsias e explicou que inclusive a presença desse autor estava na origem da sua "recusa".
A ala tradicionalista anti-bergogliana exultou: finalmente aqui estava seu campeão, o papa "anterior", quando já parecia que uma oportunidade assim nunca iria acontecer; já não se tratava mais algum bispo periférico de ânimo exaltado a representar a "tradição", mas justamente o "predecessor".
O "tolo preconceito" da primeira parte da carta desapareceu na rocambolesca divulgação "em capítulos" da carta e o caso tornou-se político, isto é, de gestão das comunicações do Vaticano. O erro assumiu dimensão institucional e Viganò foi obrigado a renunciar. Por outro lado, é difícil imaginar que Francisco pudesse endossar a decisão de omitir deliberadamente parte do pensamento de seu predecessor, enquanto que todo o episodio parece ter sido gerido com pouca atenção até se tornar um caso internacional.
Viganò deixou o cargo afirmando, entre outras coisas: "Nos últimos dias apareceram muitas polêmicas sobre o meu trabalho que, para além das intenções, desestabiliza o complexo e grande trabalho de reforma que me foi confiado em junho 2015, e que está próximo, graças à contribuição de muitas pessoas da equipe, de chegar ao fim".
O papa lhe respondeu aceitando, mesmo que "com dificuldade", sua renúncia - por isso o deixou, no entanto, no dicastério da comunicação como "assessor" – renovando sua confiança no plano pessoal e profissional. Ele ressaltou, acima de tudo, que a reforma da comunicação chegou "agora em sua reta final com a iminente fusão do Osservatore Romano dentro do único sistema de comunicação da Santa Sé e a anexação da Gráfica vaticana". Em suma, se alguém imagina ou espera que todo o evento possa representar um obstáculo em termos concretos, está equivocado.
No entanto, o caso se presta a algumas rápidas observações para além do clamor midiático. Primeiro, há a solicitação do monsenhor Viganò ao idoso papa emérito de um prólogo sobre a teologia do Papa no cargo. Esse talvez tenha sido o erro original, porque mostra uma ânsia por silenciar as vozes críticas contra Francisco - algumas vezes de forma virulenta - vindas do mundo ultraconservador.
A tentativa de Viganò (mas não o único a ir por esse caminho) foi tentar conter ou isolar essas vozes pedindo que Ratzinger desse "cobertura" a Francisco nessa frente. Desta forma, já se admitia, implicitamente, uma relação entre correntes conservadoras e Ratzinger; além disso, havia também o risco de montar uma espécie de dupla autoridade teológica e magisterial, uma do papa reinante e outra do ex-papa em nome dos contestadores (coisa diferente, como vimos nos últimos tempos, é expressar a não concordância em um sínodo geral dos bispos). Talvez essa seja uma das principais razões para a renúncia de Viganò? Não pode ser excluído.
A complexidade da resposta de Ratzinger parece excessiva, sintoma de uma condição, a de demissionário, com a qual não parece estar tão conformado.
Nessa perspectiva, a recusa de Ratzinger de escrever o prólogo tem um significado preciso: não alimentar o conflito em torno de autoridade do papado, e esse é certamente um ponto pacífico. No entanto - e, por outro motivo - o ex-braço direito de Karol Wojtyla não se eximiu, apresentado o que ele pensa com uma série de juízos articulados sobre a sua pessoa, sobre Francisco e sobre os teólogos.
A sua é uma espécie de resenha não sobre os volumes, mas sobre o próprio pedido que lhe foi solicitado, sinal de um silêncio um tanto incômodo para ele (e, realmente, às vezes o quebra). Se, de fato, a solicitação de Viganò foi excessiva, também a complexidade de sua resposta parece excessiva, sintoma de uma condição, a de demissionário, com a qual não parece estar tão conformado.
No pano de fundo há uma questão decisiva: a continuidade ou a descontinuidade entre os dois pontificados. Uma questão, em parte, capciosa: existem ambos os componentes, só uma leitura hagiográfica do papado como de outras instituições pode fingir não ver diferenças, pontos de encontro, rupturas e assim por diante.
Certamente, para a Igreja a admitir a existência dessas diferenças, inclusive com dois pontífices em vida é uma novidade significativa e provoca dúvidas, erros e imprevistos. Ratzinger na carta também fala de "continuidade interior", com Francisco, uma fórmula muito sofisticada, em parte certamente verdadeira, mas que - justamente - deixa espaço para uma realidade mais complexa.
Por outro lado, é inegável a marca conservadora deixada pelo cardeal Ratzinger antes e por Bento XVI depois, ao mesmo tempo em que a renúncia é um ato de reforma poderoso do papado, sem precedentes (e sobre esse ponto os tradicionalistas manifestam-se pouco, porque de fato a mudança veio daquele que era uma referência para aquele mundo).
O que parece ficar cada vez mais evidente nesse episódio é que a figura do "papa emérito" mostra limites cada vez mais vistosos. Precisa ser dito que, praticamente não existindo precedentes, se não muito longe no tempo, quando Bento XVI pediu demissão foram construídas soluções específicas e em parte experimentais. É concebível, então, que no futuro um papa demissionário não mais viva no Vaticano, não se vista mais de branco, e se retire para a vida privada em um mosteiro ou em uma casa religiosa? Realmente difícil afirmar isso com certeza, mas o tema existe.
Em tempos de internet, o Vaticano ciclicamente cai nessa cilada: acha que pode esconder documentos embaraçosos como acontecia em outros períodos históricos.
Depois, há os erros cometidos na gestão do caso, no geral bastante evidentes: a publicação parcial do texto de Ratzinger, omissões, correções, gafes: uma bola de neve que se tornou uma avalanche e facilmente atraiu a curiosidade da mídia do mundo todo.
A conclusão foi inevitável, inclusive porque a ser relatada de forma incompleta foi a palavra do papa emérito, algo que Francisco não podia desconsiderar, independe de qual fosse a intenção daquela remoção. Em tempos de internet, o Vaticano ciclicamente cai nessa cilada: acha que pode esconder documentos e cartas que criariam constrangimentos como acontecia em outros períodos históricos. Não que seja impossível manter um segredo, mas é certamente muito mais difícil e desafiador, mesmo para os sagrados salões.
Também deve ser dito, contudo, que nesses dias de confusão o Papa Francisco não alterou sua agenda: primeiro foi até a região de Padre Pio na Puglia, em seguida, reuniu-se com jovens em vista do Sínodo sobre a juventude em outubro de 2018 (denunciou os sofrimentos de mulheres obrigadas a se prostituirem e a responsabilidade dos clientes, especialmente no caso de batizados, só para mencionar algumas de suas prioridades), depois, o Vaticano anunciou que no final de agosto, o papa é esperado na Irlanda; agenda lotada e pouco alterada pelos recentes acontecimentos. O futuro mostrará como a reforma da Cúria Romana vai prosseguir, apesar de tudo.
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Vaticano, porque a carta cortada esconde um “caso Ratzinger” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU