09 Janeiro 2018
O padre trapista Christian-Marie de Chergé, um dos sete monges mortos por terroristas islâmicos na Argélia em 1996, deixou uma carta dizendo que ele seria assassinado.
O padre, que já fez parte do Mosteiro de Notre Dame de l'Atlas, escreveu a carta em algum momento entre 1º de dezembro de 1993 e 1º de janeiro de 1994 - período em que membros do Grupo Islâmico Armado ‘visitaram’ o mosteiro pela primeira vez. A carta deveria ser aberta após sua morte.
A família do monge mandou a carta para o jornal católico da França, La Croix, que publicou o texto na íntegra em 28 de maio de 1996.
A informação é publicada por Catholic News Service, 06-01-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Segue o texto da carta. A última palavra foi escrita em árabe:
Se acontecer - e pode acontecer a qualquer momento - de eu ser vítima do terrorismo que parece estar engolindo todos os estrangeiros que moram na Argélia, eu gostaria que minha comunidade, minha igreja, minha família lembrasse que minha vida foi dedicada a Deus e a este país.
Que aceitem que não é estranha ao único Mestre de toda a vida uma partida tão brutal.
Que rezem por mim: como posso provar que sou digno de tal oferenda?
Que entendam que uma morte como esta deve ter ligação com muitas outras, igualmente violentas, mas que continuam mascaradas pelo anonimato da indiferença.
Minha vida não tem mais valor do que a do outro. Nem menos.
Em todos os casos, já não tem a inocência da infância.
Vivi tempo suficiente para reconhecer que sou cúmplice do mal que, infelizmente, parece prevalecer no mundo, mesmo daquele mal que pode me atingir cegamente.
Neste momento, gostaria de estar suficientemente lúcido para implorar pelo perdão de Deus e de todos os seres humanos, meus companheiros, perdoando com todo meu coração quem possa ter me ferido.
Não que eu desejasse uma morte como esta.
Me parece importante esclarecer isso.
Na verdade, não vejo como poderia me alegrar que este povo que eu amo seja globalmente acusado pelo meu assassinato.
É muito mais caro o preço do que pode ser chamado de "graça do martírio" do que dever a vida a um argelino, seja quem for, principalmente se ele afirma estar atuando de acordo com o que acredita ser o Islã.
Conheço muito bem o desprezo com que os argelinos geralmente são considerados.
Conheço, também, a caricatura do Islã que é impulsionada por um determinado tipo de Islamismo.
É muito fácil acreditar que tem a consciência tranquila simplesmente por identificar esta tradição religiosa com a visão tudo-ou-nada dos extremistas.
Para mim, o Islã e a Argélia são coisas diferentes, são corpo e alma.
Já afirmei em alto e bom som, acredito, para todos os que me conhecem, que encontrei aqui a linha norteadora do Evangelho que aprendi no colo de minha mãe, minha primeira igreja, aqui na Argélia, e no respeito dos crentes muçulmanos.
Minha morte parece justificar aqueles que sumariamente me consideram ingênuo, idealista (dizendo): "Diga agora o que acha disso!" Mas eles devem saber que vão matar minha curiosidade pungente afinal.
E então poderei, se Deus quiser, pousar meu olhar na mesma direção do olhar do Pai, para contemplar com Ele seus filhos islâmicos da mesma forma como Ele os vê, iluminado pela glória de Cristo, pelos frutos da paixão, com o dom do Espírito Santo, cuja alegria secreta será sempre estabelecer a comunhão e restaurar a igualdade, jogando com as diferenças.
Tendo perdido esta vida, totalmente minha, e totalmente deles, dou graças a Deus, que, ao que parece, quis que fosse exatamente assim, por esta alegria, com e apesar de tudo.
Dentro deste agradecimento, em que, de uma vez por todas, diz-se tudo sobre a minha vida, incluo vocês, meus amigos de ontem e de hoje, e vocês, meus amigos daqui, junto com minha mãe e meu pai, minhas irmãs e meus irmãos e todos os que pertencem a eles, (a vida) frutificou 100 vezes mais do que plantado, como prometido!
E a você também, meu amigo do último instante, que não sabe o que faz.
Sim, a você, também, ofereço este agradecimento e este "adieu", conforme seu planejamento.
Que possamos nos encontrar novamente, como ladrões felizes, no paraíso, se assim quiser Deus, nosso Pai. Amém! Inshallah!
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Monge trapista deixou carta antecipando morte violenta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU