27 Outubro 2017
(Foto: Valter Campanato | Agência Brasil)
O cheiro de queimado recebe o visitante assim que ele desembarca em Alto Paraíso. As chamas do enorme incêndio, que chegaram a pouco mais de um quilômetro da principal cidade da Chapada dos Veadeiros, já não são visíveis daqui. Mas, além do cheiro, chegam a essa localidade de 17.000 habitantes notícias de uma grande desolação após duas semanas de fogo incessante.
“Percorremos quase 100 quilômetros de caminho e tudo por uma paisagem queimada”, conta um sargento da Polícia Militar Ambiental de Goiás que na manhã desta quinta-feira se uniu ao combate contra o fogo, a maior operação contra incêndios já lançada na história do Brasil. Suas palavras são confirmadas ao decolar de helicóptero do aeroporto de Alto Paraíso. Do céu, a planície do Parque Nacional, declarado Patrimônio da Humanidade, aparece como uma grande extensão de cinzas.
Segundo os últimos dados disponíveis, divulgados terça-feira, já arderam 62.000 hectares e o núcleo principal do parque foi arrasado pelo fogo. Até julho, quando o presidente Michel Temer aprovou o aumento de sua extensão, o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros tinha uma superfície de 65.000 hectares. Dessa área natural que constitui o coração da chapada, entre 80% e 90% foram arrasados, explica um porta-voz da administração do parque. Sua extensão total, desde a ampliação de julho, é de 240.000 hectares.
A reportagem é de Xosé Hermida, publicada por El País, 26-10-2017.
Ninguém dúvida que o incêndio tenha sido intencional. Isso é dito pelos responsáveis pelo parque e repetido em todas as conversas por soldados, brigadistas e voluntários. O lugar e a forma como o fogo começou, no dia 10, aproveitando a força do vento, descartam a possibilidade de que o incêndio tenha surgido espontaneamente, como os que ocorrem em alguns momentos do ano, afirmam membros da direção do parque. “Com o vento, as chamas saltaram a estrada. Eu mesmo vi uma faísca que foi voando 800 metros e voltou a acender em outro lugar”, relata Christian Berlinck, coordenador de combate ao fogo do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade. A suspeita generalizada é a de que os fazendeiros da região tenham ficado muito descontentes com a decisão do Governo de ampliar a superfície do parque. Como em grande parte do Brasil, a defesa do meio ambiente entra em conflito aqui com os interesses do agronegócio. “Neste incêndio há muita política”, comentam entre si dois voluntários. Mas, até agora, as investigações avançaram muito pouco. Ou, pelo menos, não foram mostradas provas para confirmar a suspeita.
“Todo mundo está muito triste, muito estressado. Alguns até estão doentes”, diz Pem Tarita, uma jovem moradora de Alto Paraíso que trabalha como voluntária para dar assistência logística aos que combatem o fogo. Para esta região do norte de Goiás foram enviados seis aviões – incluindo um Hércules de grande porte − e quatro helicópteros. Entre brigadistas e bombeiros de diferentes organismos, há 178 pessoas trabalhando diretamente para apagar as chamas. A situação melhorou nos últimos dias.
Restam três grandes linhas de fogo, embora uma delas já esteja sob controle. Trabalhar nessa área não é fácil. Alguns lugares são inacessíveis e os brigadistas só podem chegar descendo de um helicóptero. Até agora, o único dano privado foi o de uma casa que ficou destruída pelo fogo.
Entre os reforços que chegaram a Goiás está uma equipe dos Veterinários na Estrada, uma ONG de Minas Gerais que trabalhou em todas as últimas catástrofes naturais do Brasil para salvar animais. Eles chegaram depois de percorrer 1.200 quilômetros em carro desde Ouro Preto para substituir uma equipe do zoológico de Brasília, a primeira que se deslocou até a Chapada. Na região há muitas onças, lobos, veados, macacos, cobras e espécies de pássaros. Os veterinários acabam de iniciar seu trabalho e no momento só têm no recém-instalado hospital de animais um exemplar de arara, mas teme-se uma grande mortandade. “Os animais grandes, a onça e o lobo, são espertos e fogem”, diz André, um dos membros da equipe. “Mas as cobras, por exemplo, costumam procurar o calor”. A prioridade da equipe neste momento é levar alimento e água para os animais, suprimentos quase impossíveis de encontrar em meio às cinzas.
Embora nesta região do norte de Goiás as pessoas estejam acostumados aos incêndios, este ultrapassou todas as dimensões conhecidas. Entre os habitantes de Alto Paraíso há uma curiosa mistura de gente que veio viver aqui para estar perto da natureza ou chegou atraída pelo misticismo religioso que encontra uma conexão especial com estas terras. A estética hippie e as pessoas com grande consciência ambiental estão por todo lugar. Alguns moradores criaram há três anos um grupo, Rede Contra Fogo, que até agora não tinha conseguido muito êxito. De repente, ficou conhecido em todo o país por seus apelos à solidariedade com a Chapada.
A Rede Contra Fogo tem seu quartel-general em uma casa particular de Alto Paraíso, transformada agora em lugar de reuniões para o comando de voluntários. Cerca de 200 pessoas, em sua maioria moradores da cidade, deixaram suas ocupações habituais para trabalhar o dia inteiro dando apoio a brigadistas e bombeiros − levando-lhes comida, água, roupa, meios de transporte... “Do combate contra o fogo não podemos participar, porque isso é para gente com experiência”, afirma Ivan, um guia turístico do parque que atualmente se dedica plenamente a colaborar com a luta. A economia de Alto Paraíso está estreitamente ligada ao turismo, e agora se sente ameaçada pelas consequências do desastre.
Já de noite, terminada a última reunião do dia, entre a tristeza pela desgraça e o cansaço acumulado após duas semanas de trabalho sem trégua, na casa da Rede Contra Fogo se respira, apesar de tudo, uma certa satisfação. O incêndio, contam os voluntários, demonstrou-lhes que na sociedade brasileira também há um fundo de solidariedade. Eles mesmos estão impressionados depois de haver pedido doações por meio de sua página no Facebook. Em apenas dois dias, conseguiram arrecadar 300.000 reais.
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Duas semanas de fogo reduzem a cinzas o coração da Chapada dos Veadeiros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU