27 Outubro 2017
Por trás dos emblemas míticos fundamentais em torno dos quais gira toda a sociedade coreana, há uma humanidade calorosa, viva, conforme observa Dorian Malovic em seu último artigo da série de três partes, após 11 dias na Coreia do Norte.
A reportagem é de Dorian Malovic, publicada por La Croix International, 26-10-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Esta é a terceira reportagem de uma série de três. A primeira, sob o título Coreia do Norte 'preparada para voltar à Idade da Pedra', se necessário, pode ser acessada aqui. A segunda, sob o título Coreia do Norte na era do átomo, pode ser acessada aqui.
A capital norte-coreana passou por uma transformação radical nos últimos cinco anos, com novos bairros e também com o nascimento de uma classe social mais rica, que experimenta premissas de um capitalismo não declarado.
Não se sabe o que esperar ao chegar a Pyongyang. Sobrevoam a mente imagens de desfiles militares, tanques e mísseis cruzando a enorme praça de Il-Sung Kim, uma das dez maiores do mundo.
Após um voo de mais de uma hora de Pequim, a bordo de um Tupolev-204 da empresa aérea estatal Air Koryo, você sabe que não está chegando a um país ou uma capital como qualquer outra. Assim que o avião pousa, é hora de abrir os olhos, deixar para trás os conceitos de interpretação e deixar-se adentrar este ecossistema, que é único no mundo.
Na escuridão da noite, os grandes monumentos emblemáticos da dinastia Kim, no poder desde 1948, são banhados em luz branca.
As duas enormes estátuas de Kim Il-Sung, fundador da nação, e de seu filho, Kim Jong-Il, pai do atual ditador Kim Jong-Un, protegem o imponente Museu da Revolução.
O monumento ao Partido dos Trabalhadores projeta o martelo, a foice e o pincel de tinta em direção aos céus, enquanto a Torre Juche, simbolizando a ideologia do país de independência e autonomia, ilumina a noite com sua tocha vermelha.
Por trás dos emblemas míticos fundamentais em torno dos quais gira toda a sociedade coreana, há uma humanidade calorosa e viva. Ao entrar num restaurante, você é recebido pelo cheiro picante do lendário kimchi, o repolho fermentado indispensável à gastronomia coreana tanto do Norte como do Sul. Três garçonetes de saia e blusa coloridas movem-se para lá e para cá entre as cerca de 30 mesas sobre as quais repousam pratos apetitosos e escaldantes.
Jovens casais, funcionários públicos, empresários e empresárias norte-coreanos ruborizados brindam alto, bebendo cerveja Taedonggang "made in Coreia do Norte", classificadas de um a nove, de acordo com o sabor e a qualidade. "A 2 é a mais popular", grita um rapaz na mesa ao lado, levantando o polegar e sorrindo, "mas a 1 é a melhor!"
Um freezer enorme com portas de vidro mantém geladas garrafas da cerveja holandesa Heineken ou da japonesa Sapporo. Garrafas de whisky Johnnie Walker red label e black label e de conhaque Rémy Martin perfilam-se no balcão.
A televisão, instalada acima do balcão, apresenta as notícias do dia: inauguração de uma fábrica de máquinas e ferramentas, a visita de Kim Jong-Un a um escritório de TI e, finalmente, a reprise do lançamento do último míssil intercontinental em 15 de setembro, para os aplausos dos engenheiros nucleares.
No final da refeição, os clientes pagam com a moeda da Coreia do Norte, o won, em euros ou dólares americanos, enquanto o caixa digita na calculadora a uma velocidade relâmpago.
O restaurante é aberto a todos, não é exclusivo para estrangeiros, de forma alguma. É uma das dezenas de novos estabelecimentos privados abertos ao longo dos últimos anos em Pyongyang.
"Meu chefe me contratou seis meses atrás", diz, tímida, uma das garçonetes. "À noite, trabalho até as 22:30, mas recebo mais", acrescenta, com um largo sorriso, entregando um pequeno "questionário de satisfação" para que eu preencha.
Aqui, estamos muito longe dos restaurantes públicos com refeições simples e baratas, que ainda existem. Neste setor, a concorrência é dura, os preços se adaptam e a qualidade é obrigatória.
Sem falar em voz alta, o regime de Kim Jong-Un está avançando secretamente, assim como os programas nucleares, permitindo que uma forma híbrida de capitalismo – "empresas privadas integradas na estrutura do Estado" – enraíze-se.
O capitalismo está se desenvolvendo aqui, mas a face ideológica é suave. Há muito dólar, euro, yuan chinês e até iene japonês no país, não menos importante em sua fronteira de 1.400 km com a China.
Na manhã seguinte, nos corredores e escadas rolantes vertiginosas que mergulham nas entranhas do metrô, a multidão, vestida de forma muito variada, mal percebe o visitante ocidental, armado com o direito de filmar e tirar fotos. Soldados decorados, trabalhadoras de terno preto e blusa branca ou rosa, funcionários públicos em ternos escuros ou camisas amarelas brilhantes vertem para fora do trem "made in GDR", importado de Berlim.
Na plataforma do outro lado, há murais suntuosos dedicados à glória das cooperativas agrícolas, das fábricas de aço e das plantas dos mísseis, sob o olhar do "Eterno Presidente Kim Il-Sung".
Um trem chega, novinho em folha, preto e vermelho, "made in Coreia do Norte", inaugurado no ano passado por Kim Jong-Un. É a primeira locomotiva produzida em nível local. Apesar de a Coreia do Norte ainda importar uma enorme quantidade de mercadorias de todo o mundo através da China, o país está intensificando seus esforços para produzir de forma autônoma.
Ao sair do metrô, o sol lança seus raios na estação central, onde passa um bonde lotado. Um telão digno daqueles do bairro Shinjuku, em Tóquio, traz as notícias, que são as mesmas de ontem no restaurante, com poucas diferenças.
Vários táxis pintados de cores diferentes, dependendo da empresa, cuidam dos clientes. O fluxo do liberalismo também chegou lá. Muitas empresas estão em funcionamento, com uma frota de veículos "made in China", mas também alguns "made in Coreia do Norte", como o Pyong Hua (carro da paz), fabricado na própria cidade de Pyongyang.
Os motoristas trabalham para as empresas por quatro dias, a cada cinco. No quinto dia, eles ficam com o lucro.
Pessoas que trabalham nas fábricas na produção de bens podem ganhar o equivalente a 30 euros por mês para as "despesas básicas" - oficialmente, não é um salário, porque tudo fica com o Estado. Mas os que trabalham na produção de celulares (de três marcas), televisores ou computadores, todos fabricados em Pyongyang, podem ganhar até 55 euros por mês.
Os telefones são restritos e funcionam em circuito fechado, somente dentro do país. Não recebem chamadas internacionais. No entanto, vê-se celulares em todos os lugares, e eles podem ser usados para enviar mensagens, para o Google local, aplicativos similares ao Wikipédia, dicionários e muitos jogos.
Claro, ainda não é uma Hong Kong ou Seul, mas olhando mais de perto, às vezes podemos nos enganar, fora de contexto, achando que é.
"Tenho de admitir que a sociedade norte-coreana se tornou desigual", diz um funcionário público de cerca de 40 anos. "Os muito, muito ricos podem comprar veículos particulares sem restrição de combustível – mesmo que os preços aumentem por causa das sanções. Os ricos fazem negócios livremente, ainda que paguem impostos ao Estado; os menos ricos e os pobres vivem no sistema socialista."
Nas ruas de Pyongyang, pessoas circulam muito a pé e de bicicleta – uma bicicleta custa 34 euros e uma bicicleta elétrica, 60 euros – e parecem cansadas. Por outro lado, outras pessoas dirigem carros de empresas ou usam micro-ônibus, bondes e ônibus articulados.
Essa capital de duas camadas, assim como o país, está tomando o caminho de seus vizinhos, mas a seu próprio ritmo e resguardando as proporções.
No entanto, uma visita a um dos muitos shoppings da capital, cheio de história, é suficiente para se convencer de que a realidade está mudando muito depressa. Um número crescente de produtos alimentícios "made in Coreia do Norte" estão dividindo as prateleiras com produtos japoneses, britânicos, chineses e malaios e até mesmo franceses, como Lancôme, Nivea ou Moulinex. Suas portas estão abertas para todos os norte-coreanos; e, no caixa, aceita-se qualquer moeda.
Pyongyang, portanto, está mudando, assim como outras partes da Coreia do Norte, vislumbrada durante uma viagem de dez dias aos municípios. Claro, fica para trás tudo o que não vimos, mas, mesmo que parcial, esta imersão norte-coreana nos fornece algumas chaves fundamentais para compreender o país; além do invisível.
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Coreia do Norte: Em Pyongyang, também é possível pagar em dólares americanos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU