26 Outubro 2017
O ex-diretor executivo do departamento de liturgia dos bispos dos Estados Unidos disse nessa segunda-feira que, ao afastar do Vaticano o controle principal sobre a tradução dos textos litúrgicos e restaurá-lo às Conferências Episcopais locais, o Papa Francisco está fazendo mais do que um ajuste de contas histórico com as últimas duas décadas. Ele está tentando “integrar” a experiência da Igreja desde o Vaticano II “e realmente equilibrar tudo”.
A reportagem é de John L. Allen Jr. e Inés San Martín, publicada no sítio Crux, 24-10-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Um dos maiores especialistas em liturgia católica dos Estados Unidos afirma que, ao devolver o controle principal sobre a tradução dos textos litúrgicos às Conferências Episcopais locais, o Papa Francisco não está apenas fazendo um acerto de contas histórico, mas tentando integrar os frutos de 50 anos de experiência do culto nas línguas vernáculas do mundo.
“Não pode ser que o pêndulo simplesmente balance de um lado para o outro”, disse o Mons. Richard Hilgartner. “Eu não acho que a Igreja poderia sobreviver se cada papado simplesmente balançasse em uma direção ou em outra.”
Atualmente pároco da Paróquia St. Joseph, em Cockeysville, Maryland, Hilgartner é ex-diretor executivo do Secretariado para o Culto Divino dos bispos dos Estados Unidos.
“Aprendemos muito ao longo dos últimos 50 anos sobre como a linguagem funciona e sobre como as pessoas se comunicam”, disse Hilgartner. “Eu acho que é uma tentativa de captar o melhor disso. Não descartamos completamente os princípios da tradução. Ainda há um apelo por uma tradução fiel. A questão simplesmente é: quem está mais bem posicionado para fazer o juízo correto sobre isso?”
Hilgarner falou no programa de rádio semanal do sítio Crux, na The Catholic Channel, Sirius XM 129.
Hilgartner disse ter ficado surpreso no domingo quando viu Francisco responder publicamente aos comentários do cardeal Robert Sarah, da Guiné, prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, do Vaticano, sobre um recente documento do pontífice intitulado Magnum principium, que efetivamente tem o objetivo de reduzir o controle vaticano sobre as traduções e de reforçar o controle das Conferências Episcopais em todo o mundo.
“O surpreendente é o nível público da resposta dele”, disse Hilgartner.
“A carta foi datada de 15 de outubro, ou seja, foi há uma semana, e, na carta, há uma instrução explícita de que a resposta do Santo Padre aos comentários do cardeal Sarah seja divulgada nos mesmos sites e blogs [onde o comentário de Sarah apareceu originalmente].”
“O mais surpreendente, agradavelmente surpreendente, é a clareza. O Santo Padre entende a natureza das mídias sociais, tanto o poder quanto às vezes o perigo delas”, disse. “Em vez da tradicional conversa privada, ela se tornou muito pública, usando os mesmos instrumentos que provocaram as faíscas, em primeiro lugar.”
Hilgartner previu que o fato de restaurar o controle principal sobre as traduções aos bispos locais provavelmente não vai significar muito no curto prazo em relação ao modo como os católicos estadunidenses experimentam a missa dominical, porque uma nova tradução foi implementada há apenas seis anos, e “esses são textos com os quais precisamos viver por um longo tempo”.
No entanto, disse, há outros projetos de tradução em andamento, incluindo a Liturgia das Horas e os ritos do batismo tanto para crianças, quanto para adultos. Embora ele duvide que os bispos vão retroceder em relação a esses rascunhos e repensá-los desde o início, ele vê as medidas de Francisco como muito significativos para eles, de qualquer maneira.
“Eles certamente podem entrar nesse processo com um maior grau de confiança de que o seu trabalho será respeitado, como já é”, afirmou.
“Nos últimos cinco a dez anos, certamente durante o período do Missal Romano, o que se viu foi que tudo ainda estava sujeito a edição final, recomendações finais e aprovação pela Santa Sé”, disse Hilgartner. “O espírito que o Santo Padre está moldando é de que o trabalho das Conferências Episcopais é onde a ação acontece.”
Qual o contexto da carta do papa no domingo? Por que é importante a questão de quem dá as cartas sobre a tradução litúrgica?
A questão da tradução envolve sempre um equilíbrio delicado. E lembremos que a Igreja ainda é relativamente nova na tradução de textos do latim e das outras línguas de origem para as línguas vernáculas para o uso na liturgia.
Em outros âmbitos, se poderia dizer: “Ei, fazemos isso há 50 anos, já deveríamos saber como fazer”. Mas, quando se trata da história da Igreja, isso realmente começou apenas ontem, certo?
Sim. É sempre um equilíbrio delicado, mas a questão final aqui é a relação entre uma tradução de forma servil e formal, palavra por palavra, e como obter o melhor sentido possível de algo compreensível. Sempre haverá um julgamento nesse sentido, sobre se você sacrifica o fluxo e a compreensão pela exatidão na tradução literal, o que às vezes pode levar a um texto que é um pouco mais pesado. Ainda há um debate sobre o novo Missal Romano, por exemplo, e onde tudo isso desembocou...
Com isso, você se refere à coleção de orações e outros textos para a missa, que, em inglês, passou por uma “reinicialização” há seis anos com uma nova tradução, cujo elemento mais familiar para a maioria das pessoas provavelmente seja a mudança da resposta “E contigo também” [“Ele está no meio de nós”, na versão brasileira] quando o padre diz: “O Senhor esteja convosco”, para: “E com o teu espírito”, certo?
Sim, junto com palavras como “consubstancial” no Credo para descrever a natureza da relação entre o Pai e o Filho. Ainda há muitas perguntas circulando ao redor disso, mas estamos nisso há seis anos, e a poeira parece ter baixado, mais ou menos.
Seria justo dizer que, nos anos que se seguiram ao Vaticano II, esses julgamentos foram feitos principalmente no nível local e, a partir da década de 1990, a maré começou a mudar rumo a um papel mais forte do Vaticano? Agora, o Papa Francisco parece estar voltando na direção do controle local. É um bom resumo?
Eu acho que é um bom resumo. É importante notar, no entanto, que o Código de Direito Canônico sempre deu a responsabilidade principal da produção das traduções para as Conferências Episcopais, ou seja, para o nível local, nós, o nível nacional, onde pode ser feito o melhor julgamento sobre como as pessoas entendem o inglês e sobre como se podem preparar textos que sejam acessíveis para as pessoas.
Mesmo as diretrizes para a tradução produzidas em 2001, Liturgiam authenticam, que realmente fazem parte daquilo que está em jogo nesta conversa, também reconhecem o papel das Conferências Episcopais nesse julgamento sobre a produção de um texto que seja compreensível e acessível aos fiéis. O julgamento final, no entanto, recaía sobre a Santa Sé, essencialmente sobre o Vaticano e a Congregação para o Culto Divino. O Código de Direito Canônico sempre reconheceu isso, que a Congregação para o Culto Divino tinha a última palavra ao oferecer aquilo que se conheceu por muito tempo como recognitio, ou seja, o reconhecimento oficial antes que o texto litúrgico possa ser publicado e posto em uso.
O que mudou agora é o papel real da Santa Sé. No motu proprio do Papa Francisco de setembro, esse papel de conceder a recognitio passou a ser aquilo que agora é chamado de confirmatio, que realmente não tinha muitos outros equivalentes na lei. É algo um pouco novo. O documento do papa enfatiza o papel da Conferência Episcopal como o melhor juiz para determinar a fidelidade de uma tradução que seja utilizável e compreensível pelas pessoas que irão usá-la e rezá-la.
Você ficou surpreso pelo fato de o papa ter optado por responder a Sarah desse modo? O que você acha que isso significa?
Eu acho que o surpreendente é o nível público da resposta dele. A carta foi datada de 15 de outubro, portanto, foi há uma semana, e, na própria carta, há uma instrução explícita de que a resposta do Santo Padre aos comentários do cardeal Sarah seja divulgada nos mesmos sites e blogs. O mais surpreendente, agradavelmente surpreendente, é a clareza. O Santo Padre entende a natureza das mídias sociais, tanto o poder quanto às vezes o perigo delas. Nós vemos isso em todos os setores da vida, a sua capacidade de influenciar a conversa. Em vez da tradicional conversa privada, ela se tornou muito pública, usando os mesmos instrumentos que provocaram as faíscas, em primeiro lugar.
O fato de o papa ter escolhido responder tão rápida e publicamente, quando, em outros casos de crítica ou de interpretação concorrente das suas decisões, ele manteve o silêncio, indica que, para ele, algo realmente importante está em jogo?
Há algo absolutamente importante em jogo. O Concílio Vaticano II nos ensina que a liturgia é a “fonte e o cume da vida cristã”. Como pastores, sabemos que o nosso principal contato com os nossos fiéis nas nossas paróquias é no domingo, na missa. O que acontece na missa dominical é importante para o dia a dia dos fiéis. Para a maioria dos fiéis, a liturgia é o seu principal contato com a Igreja. Eu acho que o Santo Padre entende isso e leva isso a sério. Eu acho que um desafio existente é a clara indicação de que parece existir uma diferença de opinião entre o Santo Padre e, essencialmente, um membro do seu gabinete. Essa diferença de opinião, repentinamente, está sendo divulgada nas mídias sociais e na blogosfera, e isso pode se tornar rapidamente tóxico.
Na era Donald Trump, talvez não haja nada de especial nisso! Mas, sobre a questão daquilo que o papa vê em jogo aqui, não está apenas a importância da liturgia, não é? Também não estaria a sua leitura do Vaticano II, no qual ele parece ver a intenção de uma maior descentralização na Igreja e um maior “nível de confiança” em Roma em relação à capacidade das Igrejas locais de resolverem as coisas por conta própria?
Isso absolutamente faz parte, e eu acho que algo útil para reconhecer isso em termos da perspectiva de Francisco é que ele é o primeiro papa que foi ordenado padre depois do Concílio. Ele foi ordenado em 1969, às margens da implementação do Missal do Papa Paulo VI, isto é, a versão oficial das liturgias reformadas após o Vaticano II. Ele basicamente foi ordenado já celebrando as versões provisórias dele. Todo o seu sacerdócio foi moldado pelo período pós-conciliar, e é claro o seu enraizamento na vivência não apenas do espírito, mas também da letra do Concílio. Quando ele falou em um congresso italiano no início deste ano sobre o Vaticano II e as reformas definitivas da liturgia, ele não disse nada surpreendente, mas certamente reforçou que a liturgia é como é porque o Concílio Vaticano II, na sua sabedoria, viu que era necessário empreender uma reforma litúrgica, e essas reformas estão aqui para ficar.
Você concordaria que, para os católicos estadunidenses, as medidas do papa não significarão muito a curto prazo para a missa em si mesma, porque a maioria dos bispos dos Estados Unidos não quer reviver as batalhas dos anos 1990 e 2000?
Eu concordo. Nós estamos fazendo isso há apenas seis anos, e, embora haja alguns momentos estranhos, há algumas coisas que são um pouco obtusas, talvez, mas, em geral, é uma grande melhoria em relação àquilo que usamos por 40 anos. Puxar o tapete debaixo disso, depois de apenas seis anos, seria mais perturbador, criando a impressão de que tudo pode ser de acordo com os caprichos do dia, que a cada cinco anos os ventos podem soprar em uma direção diferente, e podemos mudar tudo de novo. Trata-se de textos com os quais precisamos viver por um longo tempo.
Então, onde os católicos estadunidenses poderiam sentir as implicações dessa decisão?
Eu acho que ao avançar, porque há uma série de projetos perante os bispos agora que claramente poderiam ser afetados. Eu não acho que os bispos tenham que voltar e refazer todos os trabalhos que eles fizeram, digamos, sobre a Liturgia das Horas. Eles estão começando a olhar exatamente agora para os ritos do batismo de crianças e também para a RCIA, o rito de iniciação cristã para adultos. Esses textos estão em várias etapas de elaboração e consulta, que, provavelmente, serão submetidos à votação e à aprovação no ano que vem, mais ou menos.
Eu não sei se eles mudariam os princípios com os quais eles traduzem, mas certamente eles podem entrar nesse processo com um maior grau de confiança de que seu trabalho será respeitado como está. Nos últimos cinco a dez anos, certamente durante o período do Missal Romano, o que se viu foi que tudo ainda era sujeito à edição final, a recomendações finais e à aprovação da Santa Sé. Eu acho que eles podem enfrentar isso com um maior senso de confiança. Certamente, o espírito que o Santo Padre está moldando é de que o trabalho das Conferências Episcopais é onde a ação acontece.
Uma forma de ler o gesto do papa aqui é no sentido de que ele está fazendo um acerto de contas histórico, voltando aos debates que eram candentes há 20 anos e revertendo o resultado. É assim que você vê a questão, ou você acha que há algo mais acontecendo?
Eu acho que há algo mais. Não pode ser que o pêndulo simplesmente balance de um lado para o outro. Eu não acho que a Igreja poderia sobreviver se cada papado simplesmente balançasse em uma direção ou em outra. Eu gostaria de pensar que isso é um amadurecimento daquilo que experimentamos nos últimos 50 anos desde o Concílio Vaticano II. Desde então, o pêndulo balançou em ambas as direções, alguns poderiam dizer, e talvez esta seja uma tentativa de integrar e realmente equilibrar tudo. Talvez, seja uma maneira de reconhecer que, sim, a Santa Sé tem um papel essencial, especialmente em uma Igreja global.
Mesmo na carta ao cardeal Sarah, há um reconhecimento de que existem certas fórmulas essenciais que a Santa Sé tem uma maior responsabilidade de supervisionar. Elas são as fórmulas sacramentais essenciais, cuja capacidade de aprovar cabe ao próprio Santo Padre. Há, no entanto, um reconhecimento de que aprendemos muito nos últimos 50 anos sobre como a linguagem funciona e sobre como as pessoas se comunicam. Eu acho que é uma tentativa de captar o melhor disso. Não descartamos completamente os princípios da tradução. Ainda há um apelo por uma tradução fiel. A questão simplesmente é: quem está mais bem posicionado para fazer o juízo correto sobre isso?
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Santa Sé ou bispos locais: quem pode avaliar melhor as traduções litúrgicas? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU