11 Agosto 2017
Não só o Brasil, mas o planeta vive uma década de crise econômica de inúmeras sequelas sociais, a marcar um período histórico do que se pode chamar capitalismo monopolista. Dentro de seus muros, exaurem-se debates entre pretensos projetos de “direita ou esquerda”, “populistas ou liberais”. É dentro deste contexto que publicamos entrevista com o cientista politico Henrique Costa, autêntico membro da geração que nasceu e cresceu sob a égide das democracias de mercado.
“O essencial é que o descolamento da esquerda tradicional da classe trabalhadora precarizada – a imensa maioria – vem cobrar o seu preço com a deslegitimação dessas organizações, que não conhecem e não se interessam pela realidade dura da sobrevivência no mundo do trabalho do século 21 e da violência, física e simbólica, que ele impõe aos sujeitos”, comentou.
Em entrevista ao Correio da Cidadania, 10-08-2017, Henrique Costa também tratou do “espetáculo” da votação da Câmara que rejeitou a denúncia contra Temer, cujo envolvimento com esquemas de corrupção investigados pela Operação Lava Jato parece mais do que inequívoco, e mesmo assim não gera uma forte reação popular. As razões da apatia são diversas, a seu ver, mas não há como dissimular a responsabilidade das esquerdas.
“Não há dúvida de que a chegada de Raquel Dodge à PGR faz parte da grande operação de salvação do condomínio político para a sua própria perpetuação, o que é válido também para a esquerda institucional, que tem ainda mais desapreço por Janot, no que acompanha Temer e seu entorno. Para a sociedade, significa mais um golpe em sua ilusão de limpar a política, o que pode se reverter na rejeição violenta através do voto em 2018”, analisou.
Diante de um sistema que já provou sua capacidade de blindagem, restariam caminhos extrainstitucionais, aventura que os grupos que ainda têm maior poder de mobilização não passam perto de encorajar, temerosos de serem eles mesmos deslegitimados e escanteados. No desespero de quem perdeu o discurso e a sensibilidade, não surpreendem as exortações em nome dos velhos “alinhamentos automáticos”, seja no Brasil ou na Venezuela.
“Somos reféns de partidos e movimentos tradicionais que não querem mudar nada, pelo contrário, querem que tudo volte a ser como era na vigência plena do lulismo, o que isso significa um presidencialismo de coalizão sustentado pelo dinheiro das commodities, com muito dinheiro disponível para programas sociais como o Minha Casa, Minha Vida, que interessa diretamente a alguns movimentos. Essas condições não estão mais presentes, o que faz o apoio à candidatura de Lula ainda mais questionável”, resumiu.
Eis a entrevista.
Temer ficou. Como isso foi possível, afogado em esquemas de corrupção e sendo a figura mais deslegitimada e desaprovada pela população que se tem memória?
O governo Michel Temer acredita que, ao amarrar o apoio do Congresso com o do capital, se comprometendo com a agenda fisiológica, com o instinto de sobrevivência dos parlamentares e com as reformas antipopulares, conseguirá se manter até o fim do mandato. Esta avaliação tem se mostrado correta até o momento, pois a plutocracia brasileira está disposta a comprometer a legitimidade do sistema de representação por ganhos de curto e médio prazo.
O domínio da máquina pública por uma elite parlamentar é um poder extraordinário, que se verifica na aprovação de emendas, cargos etc. e que um político habilidoso e sem escrúpulos como Temer, sabendo manejá-lo em seu benefício e de seus parceiros, pode lhe garantir longevidade, mesmo à custa da popularidade. Infelizmente, mesmo assistindo a esse festival de escárnio todos os dias, toda essa ilegitimidade e impopularidade não têm se transformado em mobilização, por dois motivos: acima de tudo porque, após a queda de Dilma, retomou-se a espiral de descrença com o sistema político. A classe trabalhadora precarizada está muito ocupada com a luta pela sobrevivência que a crise econômica fez retornar e, se a classe média havia se animado com a Operação Lava Jato, agora vê que o poder de autoproteção da elite política é praticamente indestrutível.
De todo modo, a população vê a política à distância tanto como uma forma de imunização quanto pelo ceticismo. Não há nada ali que minimamente se conecte a ela. É uma categoria totalmente descolada da realidade do povo e autofágica, que se reproduzia pela força do financiamento privado e do fundo eleitoral. Nenhum partido hoje se comprometeria a se autofinanciar.
Além disso, ficou bem claro que organizações de esquerda que acreditamos ainda ter poder de mobilização têm feito exatamente o contrário: apostam no desgaste de Temer e na volta de Lula em 2018. Não conseguem enxergar nenhuma outra saída para a crise que não passe pela estabilidade do sistema de autorregulação da política e temem que uma reação popular possa lhes tirar protagonismo, como aconteceu em junho de 2013, abrindo possibilidades diferentes daquelas nas quais têm predomínio.
O que comentaria dos fatos dos últimos dias, que antecederam a votação do arquivamento da denúncia contra Temer, assim como a própria sessão da Câmara?
Foi a exibição mais explícita de que se tem memória do poder de cooptação e autopreservação que o sistema político desenvolveu ao longo dos anos pós-redemocratização. Impressiona pelo volume e desfaçatez, mas não pelo mecanismo, que se sabia existir no chamado presidencialismo de coalizão desde os anos FHC. Que existe uma massa fisiológica de parlamentares disposta a tudo sabemos bem.
A sessão da Câmara em que se votou a admissibilidade da denúncia contra Temer, vista junto do mesmo processo conduzido contra Dilma, foi, desse modo, “educativa”, pois explicitou o oportunismo dos discursos, em que Deus é substituído pela “estabilidade econômica” quando lhes convêm. Infelizmente, a reação até agora tem sido de ceticismo por parte do público.
De modo que a novidade de 2017 é o ocaso da polarização que marcou essas quase três décadas: a implosão do PSDB, dividido entre uma elite partidária carcomida e viciada na máquina pública, e a consolidação do PT como partido exclusivamente pendurado na figura carismática de Lula.
O que falar do papel das esquerdas, em especial seus ex e talvez futuros aliados lulistas, que lhe concederam quórum para a votação do arquivamento da denúncia?
Este episódio deveria servir para desvelar finalmente os interesses ocultos da direção partidária nesse processo. É importante lembrar que, além de garantir o quórum para a votação, o PT ainda carregou todos os demais partidos da esquerda consigo. Já havia sido um tanto constrangedor, na sessão que votou o processo de Dilma, os discursos encenados falando em nome de Marighela e Olga Benário, como se algum deles tivesse dado a vida para termos o presidencialismo de coalizão e um governo em aliança com o PMDB.
Não foi muito diferente agora: os partidos jogam para o público e para uma militância fiel, mas se resolvem nos bastidores, inclusive em parceria com os perpetradores do golpe parlamentar. E ficamos reféns desse modus operandi viciado.
Ao lado disso, como você analisa o esvaziamento da greve de 30 de junho, seguido de aprovação da Reforma Trabalhista?
Quando se vê um esvaziamento deliberado como esse, em um momento decisivo da história do país, fica difícil argumentar contra aqueles que veem na posição dos sindicatos a preocupação exclusiva em manter suas fontes de financiamento, que lhes garantem sobrevivência sem que precisem conquistar, pela política, um único militante.
Pelo que se sabe, as centrais sindicais negociam com Temer um substituto ao fim do imposto sindical há meses. De modo que a desconfiança com as organizações tradicionais de esquerda se aprofunda ainda mais sem, contudo, alternativas de mobilização que estejam plenamente disponíveis. Elas ainda precisam ser construídas e com a oposição declarada de partidos e sindicatos.
O que falar da esquerda brasileira a essa altura dos acontecimentos?
É uma questão complicada, mas dizer isso é um lugar comum. O essencial a ser dito é que o descolamento da esquerda tradicional da classe trabalhadora precarizada – a imensa maioria – vem cobrar o seu preço com a deslegitimação dessas organizações, que não conhecem e não se interessam pela realidade dura da sobrevivência no mundo do trabalho do século 21 e da violência, física e simbólica, que ele impõe aos sujeitos. Lula, enquanto figura carismática que é e com a memória de anos melhores para a população mais pobre durante sua presidência, confunde a esquerda ao injetar esperança no petismo de retornar ao poder central.
Uma parte desse “recall” pode contaminar o PT, mas seu destino enquanto partido está selado. Não renovou suas lideranças, atua nos bastidores contra mobilizações de rua (quando não atua contra elas, como no caso de junho de 2013) e é parte integrante do condomínio de autopreservação em que se transformou a política institucional brasileira na esteira da Lava Jato. Ele é parte desse sistema, quer vê-lo reconstruído e tenta nos holofotes fazer o discurso esquerdista de defesa da população, uma manipulação pouco convincente, além de oportunista.
Há ainda um setor da classe média ligado ao ativismo cultural, ao empreendedorismo descolado, e universitários intelectualizados, que tomou a decisão de se afastar politicamente (e fisicamente, através da gentrificação que fingem não ser problema deles) do sofrimento social do trabalho e apostar na democracia em abstrato e no papel do Estado como provedor de políticas públicas, cujo universo conhece bem: são vencedores na disputa pelas melhores posições do capitalismo contemporâneo. Alguns desenvolveram, como bons gestores, a capacidade de transformar aquela esquerda que viam como ultrapassada em clientes dos serviços que prestam.
Outros estão, até honestamente, em busca de construir alternativas, mas são vítimas da alienação que tomou conta da esquerda contemporânea, isto é, não conseguem ver que a democracia que reivindicam no nível institucional nunca existiu no chão social. Estão viciados em si mesmos e reproduzem essa cultura do narcisismo para consumir uns aos outros. Este é um nicho que se tornou interlocutor preferencial do “petismo sem povo”. Mais uma vez, é o objetivo eleitoral que anima esses partidos, com resultados apenas moderados, por suposto.
E o que falar dos movimentos identificados à direita, que sumiram das ruas com seus brados contra a corrupção?
A posição política desses grupos está representada por esse governo. Há mais ou menos sofisticação entre eles, como a posição mais crítica do Vem pra Rua em relação aos enrolados na Lava Jato que compõem o governo, ou a postura visceralmente truculenta e gangsterizada do MBL, por exemplo. Ambos souberam canalizar a rejeição de Dilma e cresceram com isso, elegendo vereadores e até prefeitos como resultado da conjuntura, mas não se pode dizer que eles tenham uma “base”, seguidores que os vejam na vanguarda, com uma política coerente e que engaje as pessoas para além desses momentos de catarse.
Mesmo se quisessem mobilizar, a ideologia privatista e antipopular daquela que seria a sua base natural, a classe média, está representada por esse governo. Portanto, a vergonha pela corrupção explícita acaba compensada pela agenda econômica, que defendem. Ademais, esses grupos enfrentam o mesmo problema que os grupos de esquerda: uma base muito acomodada com o engajamento no mundo virtual.
Como analisa os ataques de Gilmar Mendes ao Procurador da República, Rodrigo Janot? Que mensagens estão contidas nas palavras do magistrado do STF?
Gilmar tem uma postura muito clara de defesa da “classe política”. Pode-se argumentar que ele tem suas preferências, mas seu voto extremamente simbólico pela soltura de José Dirceu – “histórico”, como ele mesmo ressaltou –, associada a sua postura cada vez mais agressiva contra o procurador-geral e os demais membros da força-tarefa da Lava Jato, é um exemplo de como a elite política é coesa e solidária a si mesma. Gilmar está em uma posição privilegiada, quase invulnerável, e na ausência de atores dispostos a comprar a briga com o Ministério Público, se sobressai: ele não fala por si apenas, mas vocaliza a defesa do sistema sem medo de represálias.
E a troca da PGR, como analisa?
A única vantagem que se goza da indicação de Raquel Dodge é que, como dela não se espera nada além de engavetar o que puder, se tem pouco a perder. Janot teve uma atuação questionável à frente da PGR no âmbito da Operação Lava Jato, mas conquistou o respeito da sociedade ao dar seguimento às denúncias, o que em um país conhecido pela impunidade de políticos e empresários lhe valeu apoio popular e reconhecimento inéditos.
Não há dúvida de que a chegada de Dodge faz parte da grande operação de salvação do condomínio político para a sua própria perpetuação, o que é válido também para a esquerda institucional, que tem ainda mais desapreço por Janot, no que acompanha Temer e seu entorno. Para a sociedade, significa mais um golpe em sua ilusão de limpar a política, o que pode se reverter na rejeição violenta através do voto em 2018.
No plano continental, temos a crise venezuelana e a histeria capitaneada por esses setores da velha esquerda institucional, a exortar um alinhamento automático com o madurismo. O que isso representa a seu ver?
A esquerda institucional, não é de hoje, tem as posturas mais radicais quando se trata dos vizinhos. Mas, na sequência da deposição de Dilma, ela entrou em uma preocupante espiral de alienação, como se o alinhamento a Maduro expiasse a culpa pelo que, em sua visão, não fez no Brasil quando teve a oportunidade.
A verdade é que muitos deles apoiam o que acontece na Venezuela porque queriam ter feito a mesma coisa aqui... Não por acaso, ouvimos com frequência lamentos de petistas, a lamentar terem “perdido a chance” de doutrinar as forças armadas como se fez lá. É a velha herança autoritária e militarista que o estalinismo nos deixou e que tende a recrudescer neste momento em que a esquerda está nas cordas.
Pouco importa se a atual Constituição foi aprovada pelo próprio Chávez há menos de 10 anos, se os critérios de escolha dos constituintes beneficiam largamente as bases setoriais de Maduro, que os Estados Unidos não tenham nada a se queixar de seu governo, um excelente parceiro comercial etc. porque este alinhamento é intuitivo e simboliza o que há de mais profundo no petismo dentro e fora do PT: o arrependimento de não ter feito igual e ter sofrido uma rasteira do pemedebismo.
Como acredita que caminharemos daqui até o final do ano e rumo ao próximo processo eleitoral? Acha que a apatia da população e diversos movimentos sociais permitirão uma estabilidade institucional?
Como comentei anteriormente, Temer forjou uma aliança muito eficiente entre o parlamento e a burguesia, o que por si só lhe garantiria terminar o mandato. Tacitamente, a esquerda também tem interesse nessa agenda. O fato de só se falar nas eleições de 2018 desde o dia seguinte à queda de Dilma já diz muito sobre todo este processo. Somos reféns de partidos e movimentos tradicionais que não querem mudar nada, pelo contrário, querem que tudo volte a ser como era na vigência plena do lulismo, o que isso significa um presidencialismo de coalizão sustentado pelo dinheiro das commodities, com muito dinheiro disponível para programas sociais como o Minha Casa, Minha Vida, que interessa diretamente a alguns movimentos. Essas condições não estão mais presentes, o que faz o apoio à candidatura de Lula ainda mais questionável.
No curto prazo, a única coisa que pode incidir sobre essa conjuntura é a nova denúncia que Rodrigo Janot deve apresentar contra Temer. Será mais um período de desgaste para o núcleo do poder, que se vê na tentativa exasperada de deslegitimação do procurador-geral praticamente todos os dias. Significa que ele ainda tem algum poder de fogo. Se Temer escapar novamente, o que é do interesse de toda a elite política, as atenções se voltam à provável condenação de Lula em segunda instância, processos em que o povo não está convidado a participar e continuará assistindo apático. Mesmo que Lula escape da condenação, ele ainda sofre de rejeição fortíssima, o que seria um grande obstáculo em um possível segundo turno.
A continuidade desse imbróglio tende a ser muito menos emocionante do que se manifesta nas redes sociais e deverá ser monopolizado nas ruas pelos grupos organizados à esquerda e à direita, com sua limitada capacidade de mobilização. Marina Silva tem um voto consolidado na classe média, insuficiente até o momento para voos maiores, mas tem se movimentado nos bastidores com artistas e coletivos culturais que, a rigor, pouco agregam ao apoio que já dispõe, mas, na ausência de Lula, tem a crescer se abandonar o discurso anódino.
João Dória, por sua vez, tem máquina partidária e empresarial e ambição suficiente para apunhalar seu padrinho Alckmin. É a opção com mais potencial na direita, pois provou em São Paulo conseguir se conectar a certo espírito presente na realidade concreta do trabalho, a de ser um competidor ativo e bem-sucedido na disputa no mercado da escassez.
Mas é exatamente essa apatia geral o que pode dar contornos dramáticos ao processo, com a ascensão de um outsider como Bolsonaro. Nada garante que sua popularidade atual sobreviva aos custos de uma eleição majoritária, mas os políticos em seu vício autofágico têm se esforçado para viabilizá-la.
Que Brasil se colherá desses anos de instabilidade e austeridade?
Ainda na gestão Dilma a população sentiu de que forma a gestão da questão social brasileira pode ser violenta. Lula inaugurou a gestão da pobreza pelas políticas públicas, e sua sucessora expôs a face violenta dela, com a Lei Antiterrorista, o uso extensivo da Força Nacional na proteção das grandes obras do neodesenvolvimentismo dilmista. Em Belo Monte, na repressão às populações indígenas, no Estado de exceção que vigorou na Copa do Mundo. Assim como se viu o desemprego e a crise econômica atingirem em cheio sobretudo a classe trabalhadora precarizada.
Isso se aprofundou dramaticamente desde então. O caos no Rio de Janeiro, as rebeliões nos presídios do Norte do país, a violência nas grandes cidades são apenas a face mais visível de um buraco que só afunda. No chão social, a precarização das relações trabalhistas, com o aumento da informalização, deverá impor ainda mais sofrimento e estresse à rotina do trabalho. Na manutenção dessa situação, cada vez mais a polícia será solicitada a fazer a limpeza social de populações excedentes, no que a população pobre e negra é alvo prioritário. Pelo outro lado, os condomínios fortificados de classe média segregarão ainda mais ricos e pobres.
Isso já está acontecendo e o mais preocupante é que não há oposição organizada. Chegar a 2019 com as reformas aprovadas é o objetivo de todos os partidos que estão na disputa, vistas como panaceias para a crise econômica. Os jogos de poder continuam a anos-luz de distância do mundo concreto. A esperança é que toda a energia social que fermenta contra esse estado de coisas possa ser apropriada à esquerda por grupos à margem da institucionalidade.
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“Somos reféns de grupos e partidos, inclusive de esquerda, que não querem mudar nada” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU