02 Agosto 2017
O governo Temer "mostrou que realmente se sente desconfortável, a tal ponto que na última Assembleia dos Bispos, na qual estavam presentes cerca de 380 bispos, e que emitiu uma mensagem bastante forte sobre o grave momento que o país atravessa, o governo chegou a enviar à assembleia o secretário-executivo do Palácio do Planalto, alguém muito próximo do Presidente, na tentativa de conversar com a presidência [da CNBB] e convencê-la de que os projetos que a Igreja está criticando são necessários", afirma José Ernanne Pinheiro, secretário-executivo do Centro Nacional de Fé e Política Dom Hélder Câmara, em entrevista publicada por Religión Digital, 31-07-2017.
Segundo ele, "consideramos (o atual governo) ilegítimo, pois não foi eleito pela população, mas em consequência de um impedimento contra a Presidenta da República",
O Pe. José Ernanne Pinheiro trabalha há mais de 30 anos na CNBB. Ele foi um dos colaboradores mais próximos de Dom Hélder Câmara e chegou a Brasília para trabalhar no setor do laicato e posteriormente virou assessor político. Como tal, participou ativamente do processo constituinte, que resultou na Constituição de 1988.
Posteriormente, a CNBB criou o Centro Nacional de Fé e Política Dom Hélder Câmara, onde foi nomeado secretário-executivo, cargo que ocupa há 18 anos, fazendo um trabalho de formação a partir de três eixos: uma escola de formação de dois anos de duração, com uma parte presencial e outra a distância; a rede de assessores, formada por um grupo de 25 a 30 especialistas, que elaboram livros e colaboram com a Conferência Episcopal Brasileira em momentos de eleições, elaborando cartilhas de tomada de consciência popular; e em terceiro lugar, a animação de escolas diocesanas de Fé e Política, que, atualmente, são cerca de 70 em todo o país.
Nesta entrevista, o Pe. Ernanne nos fala sobre diversos aspectos relacionados ao trabalho da Igreja católica no campo da tomada de consciência política. A situação pela qual passa o país e a reação dos bispos brasileiros mostra que essa consciência política está presente na Igreja brasileira, atitude favorecida pela postura do Papa Francisco no que diz respeito ao compromisso político como atitude profética.
A entrevista é de Luis Miguel Modino. A tradução é de André Langer.
Na época da ditadura e nos anos subsequentes, a Igreja brasileira teve muita presença na vida política do país, o que pouco a pouco foi se perdendo. As últimas manifestações da CNBB em relação à situação política atual são uma demonstração de certa recuperação da dimensão política por parte dos bispos brasileiros?
Em primeiro lugar, o Documento de Puebla, em nível latino-americano, em 1979, insistia na distinção entre política partidária e política como compromisso com o bem comum e com a cidadania. Quando a Igreja, através do Centro Nacional de Fé e Cultura Dom Hélder Câmara, tenta preparar os cristãos para a política partidária, é algo dirigido aos leigos. Quando se trata da Conferência Episcopal é uma posição de defesa do bem comum.
De fato, durante o período da ditadura, a Igreja sentia isso como missão especial, pois era uma das poucas entidades que tinha autoridade moral e o respeito dos militares. Depois ficou um pouco à margem, mas agora, com os novos apelos da realidade, sobretudo na defesa dos mais pobres, recuperou parte dessa autoridade.
As últimas mensagens são em função de projetos que afetam os mais pobres, sobretudo aqueles que se referem às leis trabalhistas e à previdência social, e têm como objetivo a defesa da cidadania e dos mais fracos.
Essa tese sempre esteve presente na Igreja do Brasil, sobretudo a partir do Concílio Vaticano II e depois das Conferências Episcopais Latino-Americanas de Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida. Em momentos especiais de maiores apelos, a Igreja se propõe a estar mais presente, embora não seja sua missão liderar, em sentido próprio, uma revolução, mas apoiar e mostrar uma postura em nome daqueles que não têm voz nem vez.
Podemos dizer que o atual governo brasileiro se sente desconfortável com a Igreja católica?
Ele mostrou que realmente se sente desconfortável, a tal ponto que na última Assembleia dos Bispos, na qual estavam presentes cerca de 380 bispos, e que emitiu uma mensagem bastante forte sobre o grave momento que o país atravessa, o governo chegou a enviar à assembleia o secretário-executivo do Palácio do Planalto, alguém muito próximo do Presidente, na tentativa de conversar com a presidência [da CNBB] e convencê-la de que os projetos que a Igreja está criticando são necessários. A Igreja, evidentemente, não aceita as ponderações e lança essa forte mensagem para o povo e para os cristãos brasileiros.
O próprio Presidente da República, que consideramos ilegítimo, pois não foi eleito pela população, mas em consequência de um impedimento contra a Presidenta da República, esse governo se pronunciou criticamente em relação à posição da Conferência Episcopal.
Entretanto, alguns bispos, quando este governo ocupou o Palácio do Planalto, foram dar a bênção ao governo. Pode-se falar de uma divisão na Conferência Episcopal nesse sentido?
Eu trabalhei durante 19 anos com Dom Hélder Câmara na Arquidiocese de Olinda e Recife. Dom Hélder Câmara defendia uma tese que eu acho bastante bonita e interessante. Ele dizia que na Conferência Episcopal sempre há uma porcentagem de cerca de 10% que são mais progressistas, mais sensíveis aos problemas dos pobres e para colocar em prática o Vaticano II; outros 10% são mais conservadores e mais ligados às classes dirigentes e donas do poder econômico; e os 80% restantes estão de um lado ou outro dependendo do momento e dos apelos que vão surgindo. Acredito que neste momento esses 10% conservadores continuam, mas o conjunto da conferência atendeu à proposta da Presidência.
Mas também é verdade que para essas mensagens não houve nenhum voto contrário, havendo um certo consenso. Sobre a questão da bênção, na minha opinião, embora possa ser ingênuo, eles não foram para dar a bênção ao novo governo, mas para pedir ajuda do governo para as televisões católicas. Mas eles também podem ter sido ingênuos ao não perceber que ao ir ao Palácio do Planalto eles estavam de fato legitimando aquele governo ilegítimo.
O Papa Francisco está ajudando a recuperar esta dimensão profética, este compromisso político mais forte dentro da Igreja do Brasil?
Sem dúvida alguma. Creio que essa unanimidade nas mensagens da CNBB se deve muito à posição do Papa Francisco. Há alguns bispos que não estão de acordo e sabe-se de algumas posturas diferentes, como, por exemplo, um bispo que não permite que os textos do Papa Francisco sejam publicados no boletim da diocese.
Mas em uma conferência grande, como a brasileira, com 380 bispos na Assembleia Geral, isso tem pouco peso. Eu não diria que a maioria dos bispos tenha uma dimensão profética, mas no conjunto, inclusive aqueles que têm mais influência nos Conselhos, nas Comissões Sociais e na Presidência, creio que os bispos estão sendo fortemente influenciados pelo Papa Francisco.
Durante algum tempo, a Igreja católica apoiou muito o compromisso dos leigos nos partidos políticos. Hoje isso continua a se dar na Igreja do Brasil?
Como em todas as entidades, há uma distância muito grande entre a teoria e a prática. Em alguns momentos, havia mais unanimidade e os documentos eram mais fortemente assumidos na prática. Hoje, os documentos ainda continuam indicando a importância de que os leigos assumam compromissos políticos, mas na prática a nova geração de bispos já não tem aquela mística do Vaticano II, embora agora tenhamos um papa que assume realmente o Vaticano II, apesar de que nem todos foram preparados para isso, como aconteceu com aquela geração que surgiu depois do Concílio.
Uma dinâmica que é muito diferente daquela assumida pelas Igrejas Pentecostais, que conseguiram que suas disputas tivessem um grande poder na tomada de posições no país e que está deixando num plano secundário a Igreja católica.
Eu não diria que está colocando em um segundo plano, mas, de fato, temos novas Igrejas, sobretudo neopentecostais, que decidiram ter uma posição política com intenção muito partidária e alcançar o poder, tendo, de fato, um plano de conquistar o poder dentro do país, o que, evidentemente, diminuiu o poder de grupos católicos no Parlamento.
Mas não diria que a Igreja católica como tal, apesar de ter diminuído em número no Parlamento, tenha perdido sua autoridade moral.
Como se está realizando esse incentivo através das escolas de fé e política nas diversas dioceses do Brasil?
O centro no qual estou como secretário-executivo, que, como já disse, chama-se Centro Nacional de Fé e Política dom Hélder Câmara, preparou muita gente. Devemos distinguir entre as escolas de formação e o Movimento de Fé e Política, que é um movimento ecumênico, que nasceu dos cristãos leigos e que não tem nenhuma relação oficial com a instituição, apesar de que no último documento que a Conferência Episcopal lançou sobre os leigos, dá valor a esse movimento, que alguns bispos apoiam, mas que não é oficial da Conferência.
As escolas de formação cresceram muito. Quando começamos, há 10 ou 12 anos, tínhamos cerca de 30 ou 40 escolas locais, que, com o incentivo dado pelo nosso centro, fez com que chegassem a 70 ou 80 escolas locais. Em algumas regiões são mais apoiadas pelos bispos, ao passo que em outras têm sido escolas diocesanas, mas sem o apoio explícito ou direto do próprio bispo, embora permita sua existência.
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“O Governo se sente desconfortável com a postura da Igreja católica brasileira”. Entrevista com José Ernanne Pinheiro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU