05 Julho 2017
Estudo feito em propriedades rurais do Pará e de Mato Grosso mostra que apenas 6% dos fazendeiros registrados no CAR adotaram ações de recuperação de corte ilegal, e 76% disseram que só o farão se forem coagidos.
A reportagem é de Claudio Angelo e publicada por Observatório do Clima, 04-07-2017.
O Cadastro Ambiental Rural, instituído para monitorar a preservação e a recuperação de florestas em propriedades privadas, acaba de ganhar um lugar de destaque no rol das boas intenções que pavimentam o caminho do inferno. Um estudo publicado nesta segunda-feira (03) mostra que o CAR até aqui falhou em ambos os objetivos: o desmatamento ilegal nas fazendas não caiu após sua adoção e apenas 6% dos proprietários estão adotando alguma ação de restauro.
Um grupo de pesquisadores do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e da Universidade Federal de Minas Gerais avaliou o efeito do cadastro entre 2008 e 2013 em mais de 49 mil propriedades de Mato Grosso e Pará, Estados que primeiro implementaram o CAR e que também lideram o ranking de desmatamento no país.
A análise sugere que a adesão inicial foi alta, mas que, uma vez no sistema, os fazendeiros não encontraram incentivos para restaurar as florestas desmatadas ilegalmente em suas áreas. Pior ainda, não se sentiram coibidos em continuar desmatando.
Os resultados, publicados no periódico PNAS, da Academia Nacional de Ciências do EUA, contradizem o discurso do governo ao vender a reforma do Código Florestal, em 2012, como uma vitória para o meio ambiente.
A mudança na lei anistiou desmatamentos ilegais praticados até 2008 e reduziu áreas de preservação permanente, como encostas e margens de rio, além de cortar pela metade a exigência de recuperação de reservas legais ao permitir o plantio de espécies exóticas para esse fim.
Na época, o governo afirmou que, mesmo com as mudanças, o código representaria ganho ambiental, ao estender o CAR – inventado no final dos anos 1990 em Mato Grosso – a todos os Estados. O Brasil ganharia, com isso, “o maior programa de recuperação de florestas do mundo”.
Pelo cadastro, cada fazendeiro declara quanto tem de vegetação nativa em sua propriedade e onde ela está. Usando imagens de satélite, o governo conseguiria saber, fazenda por fazenda, qual era o tamanho do passivo ambiental a recuperar e acompanhar ano a ano a evolução de cada área. Desmatamento ilegal seria flagrado pela tela do computador e o malfeitor, autuado remotamente.
A experiência pioneira de Mato Grosso e do Pará mostra que, na prática, a teoria foi outra. Nesses Estados, o CAR é exigido desde 2008 como condição para a obtenção de crédito rural nos municípios campeões de desmatamento. Após uma adesão inicial maciça, porém, os proprietários relaxaram, vendo que as multas não chegavam e os incentivos econômicos para manter as florestas em pé não avançavam.
Nas pequenas propriedades, o desmatamento caiu no primeiro ano, mas ao final do terceiro não havia diferença significativa nas taxas de derrubada em fazendas dentro e fora do cadastro. Nas grandes propriedades, o CAR não teve nenhum efeito discernível sobre o desmatamento, que cresceu ou caiu no período analisado por outras razões.
Os pesquisadores, liderados por Andréa Azevedo, então no Ipam, e Raoni Rajão, da UFMG, também entrevistaram quase uma centena de proprietários rurais em 20 municípios. Destes, 6% disseram estar adotando alguma ação de recuperação em suas áreas, 18% disseram que não adotavam nem pretendiam fazê-lo e 76% responderam que só se mexeriam caso o mercado exigisse ou o governo multasse.
A atitude dos fazendeiros era plenamente lógica. “Os proprietários perceberam que não entrar no CAR tinha um custo elevado, por causa do acesso ao crédito. Entrar e não fazer nada era o melhor cenário”, disse Azevedo ao OC.
“O porrete é pequeno e a cenoura é pequena”, resumiu Rajão. O problema, segundo ele, é que hoje não existe nenhum benefício em estar regular: uma vez cadastrado, o fazendeiro acessa crédito e pode fazer o que bem entender em sua área, apostando na impunidade. “O custo de oportunidade de não desmatar era muito alto e o risco de multa era baixo”, prosseguiu o pesquisador.
Um dos problemas, segundo a dupla, foi a hesitação inicial dos governos estaduais em multar cadastrados que delinquiam. Mesmo sabendo dos malfeitos, as autuações não eram enviadas para não desestimular a adesão ao CAR.
“A utilidade do CAR no combate ao desmatamento dependia muito da atitude dos secretários estaduais de meio ambiente”, afirmou Azevedo.
Nenhum dos dois se disse surpreso com os resultados. Em 2012, a dupla publicou, juntamente com Marcelo Stábile, também do Ipam, uma avaliação de oito anos do SLAPR, o sistema de cadastro rural de Mato Grosso que deu origem ao CAR. Eles descobriram que, após o terceiro ano de implementação, o desmatamento nas propriedades cadastradas era sistematicamente maior do que nas não cadastradas. Isso porque os proprietários usavam o SLAPR para obter licença ambiental de suas fazendas e, uma vez com o papel na mão, botavam tudo abaixo sem serem incomodados.
“A elite rural percebeu o sistema e o subverteu”, disse o cientista mineiro.
Para evitar que o CAR tenha o mesmo destino que seu precursor, o grupo diz que tanto o governo quanto o setor privado terão de mudar.
O governo precisa fazer o que disse que faria desde o início: usar o cadastro para expor os malfeitores publicamente – há enorme resistência à transparência do CAR por parte de entidades do setor rural, que já pediram a cabeça do ministro Sarney Filho (Meio Ambiente) quando ele abriu a base de dados do cadastro, o SICAR, em 2016 – e mandar as multas pelo correio. Também ajuda a sensação de impunidade as sucessivas prorrogações do início da vigência do cadastro para efeito de crédito (exceto nos municípios críticos da Amazônia, onde isso já é praxe) e conversão de multas.
O setor privado, por outro lado, precisa incorporar o CAR à lista de exigências das cadeias de suprimento de produtos como soja e carne, que já têm algum tipo de controle hoje. “Algumas dessas cadeias são livres de desmatamento, mas não livres de ilegalidade”, disse Rajão. “O CAR tem potencial, mas precisa ter um direcionamento político”, afirmou Andréa Azevedo. “O Código Florestal é o ambiente em que o setor produtivo deveria se ancorar, principalmente agora, num momento de fragilidade do setor após as denúncias em relação à carne.”
Responsável pela base de dados nacional do CAR, o diretor do Serviço Florestal Brasileiro, Raimundo Deusdará Filho, diz que o estudo se refere a coisas que aconteceram até 2012, antes do lançamento do sistema nacional, o SICAR, em 2014. “De lá para cá muita coisa mudou.”
Ele admitiu que o governo tirou o dedo do gatilho e evitou multar os fazendeiros durante a fase de inserção dos proprietários no sistema – hoje o SICAR já tem 4,1 milhões de propriedades e mais de 400 milhões de hectares cadastrados. Também não há um monitoramento sistemático de quem está recuperando ou deixando de recuperar florestas, nem de quem desmatou ilegalmente após entrar no sistema.
Mas disse que o Ibama já começou a usar o CAR para mandar multas pelo correio, numa operação chamada Controle Remoto, que teria ocorrido de forma experimental em Mato Grosso e será ampliada para outros Estados.
É preciso entender, no entanto, ele afirma, que o CAR acontece nos Estados e, em última análise, são eles os responsáveis por punir os infratores. “Quem detém o chicote são os Estados”, disse Deusdará, e “os Estados não fizeram o dever de casa nos programas de regularização ambiental”.
Mesmo assim, prossegue, hoje o sistema está mais preciso e permite melhor verificação remota. “O Pará, por exemplo, já cancelou mais de 3 milhões de hectares de cadastros com sobreposição [com terras indígenas, áreas protegidas ou outras propriedades].”
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Cadastro ambiental não evitou desmate nem restaurou florestas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU