27 Junho 2017
“Tenho consciência, embora muito limitada, da história das mulheres na Igreja Católica, do enorme caminho de lutas que fizemos no cristianismo. É na caridade e a partir dela que a reprodução de modelos sacerdotais tradicionais na atual configuração do mundo corre o risco de manter e até mesmo de ampliar poderes autoritários que, há muito tempo, deveriam ter sido revistos e modificados à luz do reconhecimento da outra/o como meu semelhante e diferente de mim.”
A opinião é da filósofa, teóloga e religiosa agostiniana Ivone Gebara, que lecionou por 17 anos no Instituto Teológico do Recife (Iter). O artigo foi publicado na revista Missione Oggi, n. 3, de maio-junho de 2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A minha reflexão, embora sensível ao contexto internacional da Igreja Católica, se situa no latino-americano, em certo sentido, menos implicado na discussão sobre a ordenação das mulheres. Como teólogas latino-americanas, nunca lutamos muito por isso. No entanto, nos últimos meses, graças também à criação no Vaticano de uma comissão de estudo sobre o diaconato feminino, a reflexão ganhou espaço. Houve até uma paróquia de São Paulo (Brasil) que organizou um debate. Foram publicados textos que contam histórias de mulheres, que foram ordenadas ilicitamente, de acordo com a Igreja Católica, e, portanto, excomungadas. Estima-se que são mais de 200, incluindo também algumas bispas. Em suma, a discussão sobre a ordenação das mulheres veio à tona.
Concordo com aqueles que defendem que a ordenação das mulheres poderia marcar um progresso em relação à superação da desigualdade também na sociedade. No entanto, é claro que, para muitos defensores e defensoras da causa, trata-se de afirmar, acima de tudo, o “direito” de ambos os sexos a representar Jesus Cristo diante da comunidade. Em suma, está mais em questão a integração das mulheres no ministério ordenado do que o modelo de Igreja. Um dilema nada fácil de se resolver.
Na minha opinião, porém, o problema fundamental diz respeito ao conceito de direito. O que significa ter direito à ordenação em uma instituição cuja teologia (ideologia) continua valorizando o poder masculino às custas de uma visão mais participativa e diversificada dos serviços, dos carismas e dos poderes? O que significa o direito à ordenação quando domina uma visão eminentemente masculina do sacerdócio, anacrônica, marcada por um simbolismo teológico masculino plurissecular? A admissão das mulheres à ordenação, por si só, resolveria essas questões espinhosas?
Nessa perspectiva, as mulheres não devem fortalecer um modelo de sacerdócio hierárquico masculino nem aceitar a ordenação com base em uma teologia hierárquica, com um simbolismo fundamentalmente masculino. Primeiro, seria necessária uma reforma “política” na Igreja Católica, para não contrabandear a sua atual organização como proveniente diretamente de Deus, de acordo com a vontade de Jesus, imutável ao longo dos séculos nas diversas culturas. Falar de reforma “política” implica uma reforma da teologia que financia tal política de caráter masculino, patriarcal e centralizador. A suposta uniformidade dos dogmas e a legalidade das disposições canônicas, apesar da sua utilidade, contradizem o pluralismo de situações e tradições presentes nas diversas culturas e fases da história. A Igreja hierárquica nem sempre as respeitou, ao contrário, muitas vezes as combateu como negações da verdadeira doutrina revelada.
É nesse contexto que se pode falar também de teologias feministas e da sua crítica ao centralismo religioso e ao recorte eminentemente masculino do simbolismo religioso. Elas denunciaram os abusos do poder religioso, especialmente em relação à indevida apropriação da decisão sobre os nossos corpos. Elas reinterpretaram de forma rica e contextualizada a Bíblia e a teologia, a fim de responder aos desafios atuais do mundo. Mas as teologias feministas são quase universalmente rejeitadas ou ignoradas pelos que mantêm a tradição masculina, porque fogem do roteiro estabelecido.
Eu suspeito que grande parte do movimento em favor da ordenação das mulheres não se move na linha crítica de muitas teologias feministas. Ele busca a igualdade de gênero nos ministérios sem interpelar os fundamentos teológicos e políticos da Igreja. Vê apenas o direito das mulheres de exercer ministérios em uma Igreja Católica pré-definida na sua organização hierárquica. E como se, com o fato de apenas estarem presentes nas fileiras sacerdotais, as mulheres pudessem mudar algo da representação até agora unicamente masculina.
Isso não basta para modificar as nossas convicções sobre a estrutura da Igreja. Devemos esclarecer os comportamentos sociais, políticos e eclesiais que devem acompanhar a ordenação das mulheres.
Que novas políticas a Igreja deve assumir, que orientações deve propor para que os novos “sujeitos” femininos realmente passem a fazer parte dos seus quadros de direção e liderança em todos os níveis? São exigências que nós, mulheres, devemos fazer para não aceitar algo como se fosse um favor dos homens de Igreja para nós, pobres mulheres.
Digo isso porque conheço algumas pastoras e candidatas ao sacerdócio feminino, e a minha impressão, embora limitada e discutível, é que não obtivemos uma mudança qualitativa significativa na estrutura atual da Igreja Católica. Muitas pedem o sacerdócio, mas não propõem nem reivindicam as condições para o seu exercício. Algumas mulheres-padre desempenham atividades de primeiro plano junto a populações marginalizadas. Outras possuem doutorados em teologia junto a universidades de renome internacional, mas essa formação não é reconhecida pelos prelados. Eu posso entender a empolgação e o desejo de se ver ao altar, de presidir uma missa e de ter um certo poder na comunidade. Compreendo também a emoção narrada por algumas de poderem elevar a hóstia e dizer “isto é o meu corpo (de Cristo)”, como um sonho de infância realizado. Eu não as condeno, mas acho que devemos exigir muito mais, em um diálogo entre iguais, não entre superiores e inferiores.
Nessa problemática, há um outro dado importante: o cristianismo, na sua forma católica, é uma religião organizada a partir de fortes emoções culturais, em que o circuito de afetos revela uma espécie de divisão social dos poderes que reproduz a sociedade em que vivemos. A figura masculina de Deus Pai, Filho e Espírito Santo se reveste de um poder socioemocional absoluto, enquanto as figuras femininas como Maria e muitas santas se revestem de um poder absoluto doméstico, que assiste, acolhe, protege e cura.
A representação sacerdotal masculina parece emocionalmente apegada ao poder político absoluto masculino, embora muitas vezes o poder efetivo seja feminino. Sabemos que a ordenação masculina obedece a uma dogmática hierárquica masculino, que começa com a imagem de Deus Pai, que dá poder ao Filho único, que envia o Espírito, perpetuado e simbolizado pelos sacerdotes masculinos.
Nós, mulheres, estamos dispostas a manter essa hierarquia masculina anacrônica? Estamos dispostas a manter a diferença entre sexo masculino e feminino como desnível de capacidade que também se expressa na brecha retributiva no serviço à comunidade? Estamos dispostas a manter a divisão social dos afetos e dos poderes?
Um pequeno exemplo. Hoje, em muitas dioceses, há uma brecha salarial entre padres, religiosas e leigos para serviços análogos. Isso reflete ainda a conservação do privilégio de hierarquias masculinas dentro da Igreja. A revolução de sentido em curso hoje não indica a necessidade de repensar o patrimônio cristão para os nossos dias, na diversidade das comunidades eclesiais, das organizações pastorais e dos ministérios?
Outro aspecto importante é o risco de naturalizar os comportamentos masculinos e femininos, acreditando que todos os pertencentes a um ou ao outro gênero, até mesmo os transgêneros, se comportam do mesmo modo. “Naturalização” significa tornar certos comportamentos predeterminados pela natureza ou por Deus e afirmar, por exemplo, que a vocação sacerdotal das mulheres é o cuidado cotidiano e não diz respeito às políticas públicas em favor do bem comum. Não podemos mais acreditar que há tarefas ou trabalhos especificamente masculinos e outros femininos, como se tivéssemos identidades laborais predefinidas.
Em certo sentido, essas atitudes remontam ainda a Jean Jacques Rousseau e a Auguste Comte, que queriam educar as mulheres em função dos homens e da família, tentando preservá-las da política e dos vícios da vida social em benefício da sociedade, dos maridos e da educação dos filhos. Hoje, assistimos a reflexões e atitudes semelhantes, embora com nuances e justificativas diversas. Estas devem ser desconstruídas.
Nesse contexto de “demanda” de ordenação das mulheres, não podemos esquecer as perseguições da Igreja Católica em relação às mulheres. Acusadas no passado de serem bruxas ou usurpadoras do poder de pensar, que deveria ser apenas masculino, muitas mulheres foram condenadas à morte ou perseguidas. De Hipátia de Alexandria (condenada ao apedrejamento) a Joana d’Arc (condenada à fogueira) até as figuras femininas massacradas por terem ousado penetrar nos átrios do saber teológico. Não podemos esquecer essas histórias.
Além disso, nos séculos XX e XXI, as teologias feministas repensaram grande parte da tradição cristã. É deplorável que hoje ainda haja interrogatórios, cartas de advertências, admoestações a congregações religiosas femininas, a teólogas e filósofas que acolhem o dom de pensar a vida como parte do serviço ao “movimento de Jesus”. Uma reivindicação, como a da ordenação das mulheres, não é uma demanda isolada, mas se inscreve nesse complexo contexto de ideias e crenças clericais que governam mentes e corações, conservando estruturas organizacionais anacrônicas.
A teologia sacerdotal atual reveste os presbíteros de poderes não só simbólicos, mas também políticos e sociais, que permitem orientar vidas e até mesmo manipulá-las. Muitas vezes, eles usam as Escrituras a seu bel prazer e justificam as suas escolhas como se fossem emanações evangélicas. Há exceções, mas é mais comum para os presbíteros concentrem a autoridade. Tal concentração impede o crescimento de múltiplos ministérios ou serviços nas comunidades cristãs.
Além disso, o modelo de presbítero em vigor é o do sacerdócio “rejudaizado” de Jesus, distante das inspirações evangélicas. Em vez de renunciar ao poder que os exalta, assim como os seus pares leigos, os presbíteros, ao longo dos séculos, reforçaram a aliança com o poder político, econômico e religioso, impondo decisões e agindo de maneira desrespeitosa especialmente em relação à sexualidade feminina.
Eu reconheço o papel social e cultural dos sacerdotes, xamãs, mães e pais de santo, imãs etc. nas diversas religiões. Mas não se trata de “guardiões” exclusivos da tradição religiosa a que pertencem, mas sim de líderes que se encarregam das necessidades das comunidades. De modo que a participação dos membros de uma comunidade nos serviços e na construção de sentido deveria ser uma responsabilidade compartilhada. O que requer um diálogo constante e a partilha dos conhecimentos e dos poderes. Nesse sentido, eu não desejo a extinção do papel de pessoas mais preparadas ou de líderes éticos em relação às tradições religiosas, mas sim que eles sejam legitimados na sua autoridade na medida em que se encarregam das problemáticas da comunidade.
Antes de aprovar o sacerdócio como direito das mulheres – o que eu acho que o atual governo da Igreja Católica não fará – devemos refletir sobre as condições do direito que invocamos e sobre os limites do modelo atual de sacerdócio.
Embora tal modelo ainda preste alguns serviços à comunidade cristã, porém, ele a isenta de muitas responsabilidades em relação à construção de significado e da organização plural da vida cristã. Por isso, sou contrária à ordenação das mulheres como concessão, porque isso é limitativo e prejudicial para os homens e para as mulheres.
Tenho consciência, embora muito limitada, da história das mulheres na Igreja Católica, do enorme caminho de lutas que fizemos no cristianismo. Da participação estreita e íntima no “movimento de Jesus” até hoje, apoiamos e vivemos a fé, a esperança e a caridade, sabendo desde as nossas entranhas que a caridade continua sendo a realidade maior. É nela e a partir dela que a reprodução de modelos sacerdotais tradicionais na atual configuração do mundo corre o risco de manter e até mesmo de ampliar poderes autoritários que, há muito tempo, deveriam ter sido revistos e modificados à luz do reconhecimento da outra/o como meu semelhante e diferente de mim.
Tudo o que foi dito é, acima de tudo, um convite a repensar o modelo de Igreja.
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Ordenação de mulheres: para qual Igreja e com qual teologia? Artigo de Ivone Gebara - Instituto Humanitas Unisinos - IHU