10 Abril 2017
"Aqui entram os povos e comunidades tradicionais, que sobreviveram a tantos massacres no passado e resistem às ameaças crescentes do presente, com base em seu modo milenar de conceber e exercer a vida. Viver e deixar viver, conviver, no sentido de não alterar além do mínimo necessário os ciclos vitais da natureza da qual somos parte, poderia ser uma forma de dizê-lo. Porém, é mais complexo e profundo do que isso. Trata-se da busca do equilíbrio e da harmonia entre as 05 dimensões fundamentais do viver: o passado (ancestralidade, identidade), o futuro (continuidade, novas gerações), a natureza da qual se faz parte integrante e não alienante (ecologia), os outros com quem se partilha o espaço (territorialidades, solidariedade), o sagrado (transcendência, religiosidade)", escreve Ruben Siqueira, membro da coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra - CPT, graduado em Filosofia e Pedagogia e Mestre em Ciências Sociais, em palestra proferida no seminário “Rio São Francisco: margens em tensão – transposição, (in)justiças e territorialidades”, realizado em Recife (PE), no Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães, pela Fiocruz, no dia 28-03-2017.
Eis o texto.
“Quem na beira do Rio São Francisco viver,
rico não há de ser, de fome e sede não há de morrer
e mais de uma camisa não há de ter.”
(Dito popular ribeirinho)
Bom dia! Por primeiro, é necessário registrar a importância deste evento, pelo teor crítico do tema e pelo lugar onde se dá – a Fiocruz, órgão oficial do Ministério da Saúde, renomado pela seriedade e pelas contribuições já dadas à saúde coletiva e pública. São da mais alta relevância seu interesse e pesquisas já realizadas sobre os impactos da Transposição (TSF) de águas do Rio São Francisco (SF) para o Nordeste chamado Setentrional sobre o meio-ambiente e a vida das comunidades, não só no percurso das obras, como também em todo o Semiárido e em todo o SF. Já aí um ponto de vista inovador, na melhor tradição desta casa. Como também, na mesma linha, o portal Beiras d’Água que está aqui sendo lançado. Iniciativas criadoras, quanto mais é este da transposição um debate hoje interditado, mesmo à esquerda.
Abordamos o assunto – por sugestão de André Monteiro, da Fiocruz / Recife, coordenador deste evento – pelo viés do modelo de desenvolvimento. Dividimos esta fala em 06 tópicos: o mote das “inaugurações” da obra da TSF; o desenvolvimento, ideia básica do projeto; o desenvolvimento na Bacia do SF; o desenvolvimento do Nordeste Setentrional via transposição; a Convivência com o Semiárido como perspectiva alternativa; o Bem Viver como crítica e alternativa radicais ao desenvolvimento.
As duas recentes e até surpreendentes festas-comícios de “inauguração” do Eixo Leste da TSF – a oficial e a “popular”, a da direita e outra da “esquerda” – nos obrigam a recolocar a visão crítica do projeto, acintosamente deslembrada. Na disputa pela paternidade – Temer ou Lula/Dilma – a verdade ficou na orfandade. Já dizia o pernambucano Nelson Rodrigues, no seu dito mais citado, que “toda unanimidade é burra”... É já a deflagrada campanha pelas eleições presidenciais de 2018, para ver quem vai administrar a terra arrasada resultante de todos os golpes deste governo ilegítimo, sem votos, engendrado justamente para isso. As tais “inaugurações”, desta obra inconclusa e incerta, reciclam seu caráter eleitoreiro tantas vezes denunciado. Se eleição tornou-se puro marketing, importa a melhor versão publicitária, às favas os fatos e suas complexas razões reais. Ainda mais em tempos de pós-verdade...
Nove entre 10 pensadores contemporâneos dizem que vivemos uma época de crise como nunca passou a humanidade. Tanto que leva o planeta junto. Confluência de crises (econômica, política, hídrica, alimentar, energética, climática, cultural, ética...) numa só crise colossal: de civilização. A pior, porque bloqueia achar saídas, é a do pensamento, das ideias, da imaginação... da utopia!
Impõe-se uma ideia inicial geradora: quais margens mesmo expande a TSF para o Semiárido Setentrional, que tem 31,8% do território e menos da metade da população do Semiárido Brasileiro? As margens de um falido, insustentável e impossível desenvolvimento.
A reação primeira mais afirmativa que inquiridora à TSF é: quem pode ser contra uma coisa dessas, levar água a quem tem sede ou – de modo um pouco mais esperto – o insumo essencial que falta para des-envolver a populosa região mais pobre do país?
“Des-envolver” quer dizer por em ato o que está em potência, acreditando inquestionavelmente, por sua única finalidade, que se obriga a ser conhecido, despertado, extraído, explorado, realizado, que precisa acontecer, crescer, progredir, existir de fato... para o bem de todos e a felicidade geral, algo que se impõe, é imperativo, inexorável...
Mas, donde veio esta ideia de desenvolvimento? Vitorioso no pós-guerra (as guerras sempre são estratégias de poder, econômico-político, cultural etc.), os EUA constroem sua hegemonia sobre o mundo. Hegemonia se constrói mais pelas ideias do que pela força, mas com esta também, e como! Nos anos 1960, no contexto da chamada Guerra Fria, o governo Kennedy cria a “Aliança para o Progresso”, como ajuda para o desenvolvimento dos países da América Latina e Caribe e prevenção contra a ameaça comunista. Sob controle da USAID (United States Agency for International Development), foi, na verdade, o estratagema para influenciar ou mesmo controlar os processos econômicos e políticos destes países, todos em sua órbita expandida com a guerra. A título de identificar as potencialidades para o desenvolvimento, foram mapeados os recursos naturais nas diversas regiões destes países e propostos projetos de bom grado aceitos por estes países-satélites do “Grande Irmão do Norte”. Estávamos no auge da “Revolução Verde”, a modernização tecnológica da agricultura, invenção também de capitalistas dos EUA, como a Fundação Rockefeller.
Os mais ambiciosos estudos sociais sobre o Vale do SF tinham sido feitos nos anos 1950 sob coordenação do sociólogo estadunidense Donald Pierson, patrocinados pela Comissão do Vale do São Francisco (CVSF), Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP) e Institute of Social Anthropology/Smithsonian Institution (ISA/SI), publicados em 03 volumes (1.500 páginas) pelo Ministério do Interior / SUVALE (Superintendência do Vale do SF) em 1972[2]. As manchas de solo irrigáveis no SF foram identificadas e mapeadas neste contexto e, tornaram-se, pouco depois, concluída a Barragem de Sobradinho, nos Perímetros Públicos de Irrigação da CODEVASF (Cia. de Desenvolvimento do Vale do São Francisco e do Parnaíba), em Petrolina e Juazeiro e em outras regiões da Bacia, como o Jaíba, o maior de todos, em Minas Gerais.
Sobradinho, reservatório de controle de vazão (o “coração artificial” do SF), significou finalmente que 70% das águas do rio estavam comprometidas com a produção de energia elétrica. O uso na irrigação veio como um sobreuso a disputar com os outros, fragmentados, indisciplinados. Algum ordenamento só veio com o Comitê e os Planos de Bacia, em 2001, que pouco fizeram além de racionalizar demandas, outorgas e preços de água, e distribuir recursos do “negócio da água”, harmonização e sustentabilidade socioambiental apenas nos discursos. O II Plano da Bacia 2016-2025, recém-aprovado, concluiu que o balanço hídrico da bacia continua favorável a mais outorgas e usos de água...
A irrigação nos perímetros do Submédio SF, depois de muitas culturas experimentadas e abandonadas por empresas incentivadas por crédito público (o boom do tomate trouxe e levou à falência a CICA, a Etty etc.), concentrou-se em uva e manga para exportação, empreendimento para poucos. Anunciam-se, agora, os cultivos adaptados de pera, maçã, caqui etc., inclusive para as áreas da TSF. “Frutas obesas, quase só hidrogênio”, dizia um técnico da EMBRAPA em Petrolina. A região tornou-se uma das maiores consumidoras de agrotóxicos do país, inclusive clandestinamente: calculava-se há 05 anos em 03 toneladas diárias. A AGROVALE, maior área de cana irrigada do mundo, mais de 21 mil hectares e até três safras por ano, consome mais água que toda a população das cidades de Juazeiro, Petrolina e Casa Nova juntas e a paga 89 vezes menos[3].
Petrolina e Juazeiro são das cidades mais violentas: na primeira, 134 homicídios em 2015, contra 85 em 2014, aumento de 57%; a segunda é a 155ª mais violenta do Brasil, com uma média de 37,2 homicídios a cada 100 mil habitantes, segundo o Mapa da Violência 2015[4]. Estudos do Banco Mundial em 2004 davam conta de que os perímetros públicos de irrigação em todo o Nordeste são 2/3 deles deficitários do ponto de vista econômico e todos desastrosos do ponto vista socioambiental.[5]
A equação “água = desenvolvimento” é, pois, tal como desenvolvimento, outra ideia mítica, falaciosa, ultrapassada.[6] Inúmeros exemplos a questionam. Na própria Bacia do SF temos vários. O Alto SF, com a sub-bacia do Rio das Velhas, maior afluente, produz cerca de 50% das águas do SF e a maior carga de poluição (urbana-industrial-minerária) que o envenena por toda extensão abaixo, inclusive com “algas azuis” nos períodos mais secos e quentes, que tornam as águas impróprias. No SF estão municípios com piores IDHs do Brasil, inclusive o pior, em 2000, Traipu-AL, à beira do SF, marcando 0,48, igual ao do Haiti, menor das Américas; e o 16º pior do Brasil em 2013, Inhapi, também em Alagoas, estado dominado pela cana-de-açúcar. A região de Barreiras, “capital do desenvolvimento” do Oeste Baiano, teve um aumento de riqueza (PIB) de 245,6% de 1991 a 2000, acompanhado de brutal aumento da miséria: 71,78 % dos 800.000 habitantes da região são classificados como indigentes (renda inferior a meio salário mínimo), quando na Bahia este índice é de 55,30% e no Brasil, 32,34%.[7]
Todas as 04 regiões da Bacia do SF sofrem mais onde mais se “desenvolveram”. O Alto com a mineração e industrialização, produtoras de poluição; o Médio com a irrigação, mineração e projetos de energia eólica e solar – falsamente tidas como “energia limpa” – que desmatam, assoreiam e poluem; o Submédio com os barramentos, irrigação, projetos de energia eólica, nuclear e mineração, que poluem e degradam; o Baixo com os barramentos e a irrigação, que poluem e salinizam as águas.
O conjunto dos usos intensivos degradantes levaram à queda contínua da vazão do rio: a vazão média do SF já foi 3.000 m3/s, em 1929, quando começou a ser medida; baixou para 2.000 m3/s, na segunda metade do século XX; atualmente é de 600 m3/s. No entanto, o programa oficial de revitalização, apresentado pelas autoridades como barganha pela TSF, tem foco na qualidade da água com investimentos em saneamento urbano nas cidades da calha do rio, nem tanto nas distantes da calha. Para recuperar a quantidade da água teria que abdicar da ideia “desenvolvimento = água” e coibir ou ao menos controlar e reduzir o agronegócio, a mineração, os projetos de energia etc. que, em nome do desenvolvimento, desmatam, sugam aquíferos, poluem e assoreiam o rio e seus afluentes. O que nem de longe se cogita.
A transposição do SF vai levar mais que água, quando levar: este desenvolvimento e suas mazelas.
O TSF significa a extensão do modelo do SF para o Nordeste Setentrional. O trajeto dos canais segue os vales úmidos (Jaguaribe, Piranhas-Açu, Apodi, Paraíba), onde há manchas de terra irrigável, e os reservatórios a serem potencializados principalmente para estes usos – a tal “segurança hídrica”. Passa, pois, longe dos sertões mais secos, onde estariam os sedentos justificadores do mega-investimento público.
O modelo, óbvio, é estadunidense: as transposições do rio Colorado para o rio Big Thompson, nos anos 1930, e para as regiões do pungente desenvolvimento na Califórnia, pelas quais dezenas de cidades foram abastecidas, inclusive Los Angeles e San Diego, milhares de hectares foram irrigados e modernos complexos industriais montados, como o Vale do Silício. No entanto, conflitos insolúveis foram criados, espécies foram extintas, o rio está assoreado, poluído, salinizado e quase não chega mais no vizinho e sempre lesado e murado México. Notícia recente revela que as Federações da Indústria do Rio Grande do Norte e da Paraíba realizaram seminário com assessoria de especialistas do Colorado, para discutir “gestão e precificação da água”[8].
Sabemos do projeto TSF pelos EIAs-RIMA – obrigados por lei a serem publicados – feitos pelo consórcio finlandês-israelense Jaakko Pöyry-Tahal. Aí se sabe que a vazão máxima a ser transposta é de 130 m3/s e a vazão média, em 20 anos, 63.4 m3/s. A ser assim distribuída: 71% para irrigação, 25% para consumo urbano-industrial, e 4% para “perdas e outros consumos”, entre estes o da população difusa do Semiárido. Conforme Renata Andrade, dois cenários foram montados: um tendencial e outro alternativo. No tendencial não se preveem mudanças na taxa de crescimento populacional e econômico.
No alternativo, preveem-se mudanças nos meios de produção, com novas tecnologias e melhor gestão hídrica. Não se calcula como estas mudanças, inclusive o emprego de tecnologias hidro-intensivas previstas no cenário alternativo, impactam a demanda total.[9] É forçoso se perguntar por que falhas técnicas desta monta no projeto.
O uso urbano-industrial prevê o abastecimento de 390 municípios, inclusive grandes cidades como Campina Grande, João Pessoa e Fortaleza. Cogita-se beneficiar também Recife, que já deteriorou seus aquíferos outrora abundantes. A inclusão de todos estes beneficiados tem por objetivo a socialização dos custos da água mais cara do mundo. Daí os 12 milhões, de pagadores da conta. Calcula-se preliminarmente o custo de R$ 0,13 por metro cúbico apenas para o bombeamento no Eixo Leste, entre a tomada da água na barragem de Itaparica e Monteiro- PB, o que já representa quase 06 vezes o custo médio da água no Brasil[10]. Ainda não estão dimensionados os custos das obras complementares para retirada e distribuição da água dos canais, o que vai encarecê-la ainda mais. Apenas o Pólo Siderúrgico-Portuário do Pecém, no Ceará, consumiria 9 m3/s, cerca de 10% da água do Eixo Norte, na produção de ligas finas de aço para o mercado internacional.
O TSF é “presente de grego” no dizer do hidrólogo João Abner, professor aposentado da UFRN, porque todos, beneficiados ou não, pagarão por esta água via contas domésticas das Companhias Estaduais de Água, prestes a serem privatizadas, as quais pleitearão outorgas da ANA (Agência Nacional de Águas). Trata-se do mecanismo de “subsídio cruzado”, única forma de compensar os altos custos dos usos econômicos. “A transposição é a última obra da indústria da seca e a primeira do hidronegócio”, disse Roberto Malvezzi, o Gogó, da CPT. Será o passo decisivo para a privatização e mercantilização da água no Brasil, o mais rico em água doce disponível, que o fará por onde ela é mais escassa, como mandam as leis do mercado.
Sob estas graves questões e incertezas quanto ao projeto real, não o marqueteiro, neste contexto político-eleitoral, de rebaixamento ideológico, em que qualquer melhor que Temer é aceitável, pautar a ação popular pela disputa de uma água que de fato não existe, tão problemática se e quando existir, é, no mínimo, temerário e, no máximo, oportunista e irresponsável.
A confluência de crises – a crise civilizatória – nos obriga a radicalizar o pensamento e a proposição de outro mundo possível, outro modelo de vida, mais que de desenvolvimento, antes que seja tarde. Talvez seja o Papa Francisco quem mais esteja compreendendo e dizendo isso. Para ele a 3ª Guerra Mundial não declarada já está ocorrendo e mata mais gente que as anteriores...
A constatação da generalidade, extensão e profundidade dos problemas ambientais – antes ainda que os sociais, que não comovem a todos – talvez seja o que possa nos convencer – sobretudo obrigar aos poderosos – a mudar nosso modo de viver e se relacionar, para além das “eco-conferências” e protocolos. O relatório de 2014 do WWF resume: “Atualmente, a população global está cortando as árvores mais rápido do que podem crescer de novo, capturando peixes mais rápido do que os oceanos conseguem recompor os estoques, bombeando a água dos rios e dos aquíferos mais rápido do que as chuvas conseguem preenchê-los e emitindo mais dióxido de carbono que aquece o clima do que os oceanos e as florestas podem absorver.” Em 40 anos, entre 1970 e 2010, eliminamos 52% da vida selvagem do planeta, sendo que a destruição maior se deu nos biomas de água doce (50% dela na América Latina), onde perdemos 75% da vida vertebrada.[11]
Felizmente, há muitas e boas iniciativas na direção de condividir a vida com todos os seres ainda vivos. A tese de Roberto Marinho Alves da Silva no Centro de Desenvolvimento Sustentável da UNB reputa a Convivência com o Semiárido Brasileiro, realizada por cerca de mil entidades da sociedade civil, como a mais avançada experiência no Brasil de um outro paradigma de desenvolvimento. Segundo ele, confrontam-se aqui – no que poderíamos aqui chamar as “margens expandidas” – duas concepções opostas de desenvolvimento regional: a produção e a produtividade econômica na região, sobretudo com base na irrigação; e o conviver com o Semiárido (e com o Cerrado, acrescentaríamos), entendida como produção apropriada de bens necessários com a qualidade de vida da população local e com a sustentabilidade ambiental.[12]
Não é novidade. Vindo de São Paulo cheguei a Juazeiro, em 1981, para trabalhar na diocese, o bispo dom José Rodrigues de Souza sugeriu-me visitar o então CPATSA (Centro de Pesquisa Agropecuária do Trópico Semi-Árido), em Petrolina, para conhecer as “tecnologias alternativas”. E insistia que levássemos lá os camponeses. Muito antes da ASA (Articulação Semiárido Brasileiro), conheci lá barragem subterrânea, barragem sucessiva, barreiro-trincheira, poços diversos a cata-vento, irrigação in sito e outras formas simples e acessíveis de captação, armazenamento e manejo das águas do Semiárido, suficientes para uma vida de qualidade, sem as agruras das previsíveis secas. A pergunta era por que não eram difundidas e implantadas nas comunidades. A resposta invariável era: “nós estudamos e mostramos, difundir é com a Emater”. Não acontecia. Depois, a EMPRAPA Semiárido, absorvida pela fruticultura irrigada, pesquisando até eucalipto para a região, acabou abandonando o setor e nem havia mais o que mostrar. Estas tecnologias simples e baratas não são um fim exaustivo e suficiente em si mesmas, mas apenas meio para um outro modo de conceber e dialogar com o meio natural em favor da vida possível e viável.
Porém, adjetivar o desenvolvimento e pensar e querer que seja “alternativo”, “sustentável”, caracterizado apenas pela convivência com os climas e os biomas etc. – antes até que o neoliberalismo e o hiper-neoliberalismo perdessem escrúpulos e reduzissem desenvolvimento a crescimento econômico –, tudo isso, ainda que importante, não atinge o nível de desafio que está posto pela crise geral.
Aqui entram os povos e comunidades tradicionais, que sobreviveram a tantos massacres no passado e resistem às ameaças crescentes do presente, com base em seu modo milenar de conceber e exercer a vida. Viver e deixar viver, conviver, no sentido de não alterar além do mínimo necessário os ciclos vitais da natureza da qual somos parte, poderia ser uma forma de dizê-lo. Porém, é mais complexo e profundo do que isso. Trata-se da busca do equilíbrio e da harmonia entre as 05 dimensões fundamentais do viver: o passado (ancestralidade, identidade), o futuro (continuidade, novas gerações), a natureza da qual se faz parte integrante e não alienante (ecologia), os outros com quem se partilha o espaço (territorialidades, solidariedade), o sagrado (transcendência, religiosidade).
Não se trata de, com todo respeito, zen-budismo ou new age. Nem que estamos importando ideias dos países andinos de maiorias indígenas, Quéchua ou Aymara, da Bolívia ou Equador. Nossos Guarani – etnia decisiva na formação de nossa gente – ainda muito presentes, vivem no Tekoha, “o lugar onde somos o que somos”, e buscam Yvy Maraey, a “terra sem males”.
Nossos povos e comunidades tradicionais, em todos os 05 ou 06 biomas nacionais, têm preservado práticas deste Bem Viver, as quais levantam como força histórica de resistência e nos oferecem como inspiração de alternativa real e possível para todos nós. Para tanto, precisamos “descolonizar o imaginário”[13]. A possibilidade e a potência disto vimos descobrindo no SF (e em outros lugares), junto a indígenas (eram 12 povos reconhecidos em 1980, já somam 42 povos e comunidades, pelo “ressurgimento” ou “etnogênese”)[14], quilombolas, vazanteiros, pescadores, ribeirinhos, catingueiros de Fundos de Pasto, geraizeiros de Fecho de Pasto, brejeiros, veredeiros, chapadeiros...
Talvez seja o querem dizer num dos mais frequentes e antigos ditos populares ribeirinhos do SF, escolhido como epígrafe desta fala... O suficiente vital, sem excessos e supérfluos.
Para terminar. Um livro recente e necessário, “Sapiens – uma breve história da humanidade”[15], do jovem historiador israelense Yuval Harari, dá pelo menos duas dicas essenciais: o homo sapiensse distinguiu dos outros hominídeos pela capacidade de imaginação coletiva e linguagem, pela qual ampliou sua sociabilidade, inventou e dominou o mundo em que vivemos e estamos destruindo; os primeiros sapiens, caçadores-coletores, porque em relação de pertença e integração com a natureza, comiam bem melhor, eram mais inteligentes e felizes do que nós. Não dá, nem em sã consciência se propõe, voltar ao começo da história (à “pedra lascada”, como se diz), mas quem sabe recuperar o que de lá perdemos talvez ainda dê... Se pudemos imaginar e realizar este mundo decadente, havemos de imaginar e realizar outro mais sapiente e sobrevivente.
Grato pela atenção!
Notas:
[2] Da CPT Bahia e da Coordenação Executiva Nacional da CPT, da Articulação Popular São Francisco Vivo e da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, graduado em Filosofia e Pedagogia, MSc em Ciências Sociais.
[3] MAIO, Marcos C.; OLIVEIRA, Nemuel S. & LOPES, Thiago C. Donald Pierson e o Projeto do Vale do Rio São Francisco: Cientistas Sociais em Ação na Era do Desenvolvimento. DADOS – Revista de Ciências Sociais, 56 (2): 245 a 284, Rio de Janeiro 2013. Acessado em: 29-03-2017.
[4] Diário da Região. Em protesto, cisterna de plástico é destruída na sede da Codevasf, em Juazeiro. Juazeiro, 17-10-2013. Acessado em: 29-03-2017.
[5] Remanso Notícias. Violência em Juazeiro e Petrolina assusta a população. Remanso, 20 de fevereiro de 2016. Acessado em: 29-03-2017.
[6] Banco Mundial. Impactos e externalidades sociais da irrigação no semi-árido brasileiro.
[7] SIQUEIRA, Ruben. A morte dos rios não traz desenvolvimento. In: Mundo Jovem, n. 398 (julho). Porto Alegre, PUCRS, 2009.
[8] Estudo revela um falso Eldorado. Salvador, A Tarde, 29-07-2004.
[9] DUARTE, Renata. FIEP realiza em fevereiro o Seminário de Gestão Estratégica das Águas. Acessado em: 29-03-2017.
[10] ANDRADE, Renata. Da transposição das águas do Rio São Francisco à revitalização da Bacia: as várias visões de um rio. Salvador, Fórum Permanente de Defesa do São Francisco & International Rivers Network / Coalizão Rios Vivos, 2002, pág. 14. Acessado em: 29-03-2017.
[11] SOLOMON, Marta. Transposição do Rio São Francisco esbarra no preço da tarifa de água. In: O Estado de S. Paulo, 29 de dezembro de 2011. Acessado em: 29-03-2017.
[12] WWF. Living Planet Report 2014. Ladislau. O drama da água. In EcoDebate, 03-06-2015. Acessado em: 29-03-2017.
[13] SILVA, Roberto M. Alves da. Entre combate à seca e a convivência com o semi-árido – transições paradigmáticas e sustentabilidade do desenvolvimento. Brasília, UNB, Tese de Doutorado, 2006 (mimeo).
[14] DILGER, Gerhard; LANG, Miriam; PEREIRA FILHO, Jorge. Descolonizar o imaginário - debates sobre pós-extrativismo e alternativas ao desenvolvimento. São Paulo, Fundação Rosa Luxemburgo, 1ª. ed., 2016. Acessado em: 20-03-2017.
[15] Bacia hidrográfica do Rio São Francisco Povos indígenas e barragens e Povos indígenas no Nordeste do Brasil. Acessados em 01-09-2011. Com reparos do autor. Disponível na internet uma parte do estudo do professor Juracy Marques, traz informações e imagens vários povos indígenas do São Francisco (Juracy MARQUES. Cultura imaterial e etnicidade dos povos indígenas do São Francisco afetados por barragens – Um estudo de caso dos Tuxá de Rodelas, Bahia, Brasil. Salvador, Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade / UFBA, 2008):
[16] HARARI, Yuval N. Sapiens: uma breve história da humanidade. Porto Alegre, L&PM, 2015.
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A transposição do Rio São Francisco: águas e falácias do desenvolvimento - Instituto Humanitas Unisinos - IHU