17 Janeiro 2017
Dentro da Igreja Católica, há um debate, entre os adeptos aos trabalhos, sobre a liturgia. Um tema importante para a Igreja do pós-Concílio Vaticano II. Nos últimos anos, o debate também continuou. Um dos pontos de debate é o documento Liturgiam authenticam. Falamos sobre isso, nesta entrevista, com o teólogo Andrea Grillo, professor de liturgia no Sant’Anselmo, de Roma.
A reportagem é de Pierluigi Mele, publicada por Confini, 15-01-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
Professor, há um debate na Igreja de Roma que parece dizer respeito mais aos “adeptos aos trabalhos”, mas, na realidade, é do interesse de todo o povo de Deus. Estamos falando da tradução na liturgia. Como se sabe, com o Concílio Vaticano II, ocorreu a revolução copernicana na liturgia católica. Sob o pontificado de João Paulo II, foi emitido um documento, Liturgiam authenticam, que põe critérios de tradução do latim para as diversas línguas. Sabemos que o atual prefeito da Congregação para o Culto Divino é o ultraconservador cardeal Sarah, que sonha com uma “reforma da reforma” da litúrgica católica. Quais são os limites, de acordo com você, do documento Liturgiam authenticam?
A primeira coisa a se dizer é que o documento de 2001 se insere em uma longa corrente de textos, produzidos pelo magistério central – papal e curial – entre o fim dos anos 1980 até toda a primeira década do novo século. São todos documentos unidos por uma característica: são fruto do medo. Reagem à confiança e à confidência que o Concílio Vaticano II tinha introduzido na Igreja dos anos 1960 e 1970, superando o trauma antimoderno que tinha paralisado a Igreja por mais de um século. Agora, movemo-nos novamente com a antiga desconfiança e suspeita. Retomam-se estilos do século XIX.
No nosso caso, é a desconfiança e a suspeita em relação às línguas e às culturas modernas. Despojamo-nos da autoridade de traduzir e, para nos tranquilizarmos, impõe-se um modo para traduzir do latim que tem um resultado que não é exagerado definir como cômico: se forem seguidas as regras estabelecidas teoricamente, o texto resultante parece ser incompreensível; mas, se quisermos torná-lo compreensível, somos obrigados a violar as regras. E não se sai disso. Essa é a experiência de todas as Conferências Episcopais nos últimos 15 anos. Os eventos do missal para os anglófonos, dos bispos alemães e dos franceses e italianos são os exemplos mais conhecidos.
Como é possível que uma “Igreja em saída” esteja preocupada com a fidelidade textual ao latim?
A questão é que o latim se torna o símbolo de uma tradição intocável e mumificada. Apegam-se ao latim por não fazer as contas com a realidade. Mas é preciso reconhecer que o latim, que é a língua em que a Igreja se expressou por 1.500 anos, não é nem a língua original da Igreja, nem a que está em uso hoje. A língua latina não está mais viva, porque não é mais falada pelas crianças. Dante tinha entendido isso há 700 anos. Isso não justifica a ignorância do latim. Mas também não justifica as ilusões reacionárias daqueles que gostariam de “recomeçar pelo latim”. Hoje, deve-se poder começar do francês, do inglês, do italiano...
Em nível litúrgico, na sua opinião, quais podem ser as melhorias para tornar a liturgia mais ligada à inculturação do Evangelho?
Justamente no plano da “tradução”, devemos reconhecer que as “línguas modernas” podem expressar aspectos da tradição que o grego e o latim não conseguiam expressar. Cada língua tem os seus prós e os seus contras. O latim e o grego também têm limites que o francês ou o inglês podem superar. De todos os modos, a tradução deve ser sempre fiel e respeitosa. Mas é preciso definir bem o que isso significa: a fidelidade e o respeito para com um texto devem ser dirigidos para dois sujeitos: quem o escreveu e quem o lê. Por isso, uma tradução boa nunca é apenas literal. A linguagem é sempre muito mais complexa do que uma pura sequência de palavras. Para traduzir palavra por palavra, já temos o Google Tradutor: a Igreja deveria olhar mais longe, como sempre fez.
Há exemplos nesse sentido?
Na realidade, não é preciso inventar inculturações estranhas ou extraordinárias. O ato de culto é, por si só, necessariamente inculturado. Essa foi a experiência dos apóstolos Pedro e Paulo, do Papa Gregório Magno e do teólogo São Tomás. Quem quer bloquear a Igreja em uma tradução literal do latim não conhece a história bimilenar e se deixa condicionar apenas por um antimodernismo tão visceral quanto rude.
Sabemos que, com Bento XVI, foi promulgado o documento Summorum pontificum, que liberou a oportunidade de celebrar com o rito tridentino. Você não acha que isso foi contraditório com o espírito do Concílio? O que o Papa Francisco pensa disso?
Você me pergunta “o que o Papa Francisco pensa”? Eu lhe respondo simplesmente: Francisco pensa. Basta isso. Se você realmente pensa na questão, não pode deixar de pé esse pastiche teológico e pastoral, esse paralelismo de formas não coerentes e conflitantes. Como implementar essa mudança, com que tempos e modalidades, faz parte de escolhas de oportunidade que não dependem apenas da coisa, mas também do contexto. E o papa também sabe disso e pensa adequadamente a respeito.
Qual a presença dessas posições tradicionalistas na Igreja?
Estão pouco presentes do ponto de vista dos números, mas muito do ponto de vista da presença midiática. No entanto, é preciso distinguir bem entre nações e Igrejas diferentes. Nem todos os países são iguais, e nem todas as Igrejas estão no mesmo plano. A questão dos tradicionalistas torna-se não gerível se pensarmos em enfrentá-la com “normas gerais”, que valham para toda a Igreja. Só a competência dos bispos individuais, que conhecem as diferenças locais, aqui, é capaz de se mover adequadamente.
Quer acrescentar algo?
Quero contar uma história que pode ajudar a compreender a questão. Eu a ouvi de Rita Levi Montalcini, na televisão. Inauguraram, há muitos anos, um grande software de tradução, que sabia traduzir tudo, de qualquer língua. Mas literalmente. Um provocador afiado foi à inauguração e pôs o sistema em crise. Ele pediu para traduzir para o chinês o provérbio inglês “out of sight, out of mind” (que, em português, corresponde, não literalmente, a “o que os olhos não veem, o coração não sente”). O computador traduziu em caracteres chineses. Depois, o mesmo personagem pediu para traduzir para o italiano. E o resultado foi “invisível imbecil”. Se perdermos o sentido metafórico, entende-se tudo mal.
Nós, com base na Liturgiam authenticam, corremos o risco de produzir continuamente traduções como “invisível imbecil”. A liturgia usa 90% de linguagem metafórica. Pensar para traduzi-la com o método literal é puramente ilusório. Por medo, fazem-se desastres. Demonizam-se a liberdade e a criatividade. Mas, sem liberdade, não se entendem as metáforas. Seria suficiente ler na Liturgiam authenticam aquela regra que impõe que se respeitem as figuras retóricas latinas na língua de tradução. Mas isso é precisamente o que nunca se pode fazer. Cada língua tem as suas figuras particulares. Traduzir não é impor as figuras retóricas de uma língua para a outra, mas mediar entre uma e outra. E, para isso, é preciso liberdade. Que nunca pode ser barateada com um prato de lentilhas.
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"A Igreja não é o Google Tradutor": os limites da Liturgiam authenticam. Entrevista com Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU