14 Janeiro 2017
Na série de televisão The Young Pope, dirigida por Paolo Sorrentino no canal Sky, um dos episódios mais surpreendentes é a chegada de um canguru de presente da Austrália, que parece instaurar um diálogo mudo, mas eloquente, com o jovem Papa Jude Law, e só com ele. Como acontece outras vezes no cinema de Sorrentino (por exemplo, com os flamingos que respondem ao sopro da “santa” em “A grande beleza”), a aparição de animais remete a uma dimensão da realidade que só uma espiritualidade profunda consegue interceptar: epifanias de uma sistema de vida que se contrapõe visualmente ao pano de fundo sórdido e patético das infelicidades individuais e das ambições de poder.
O comentário é de Francesco Stella, publicada no caderno Alias, do jornal Il Manifesto, 08-01-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Uma ponte entre o imaginário zoológico e a história do mais longevo dos poderes terrenos, o papal, emerge agora em Il bestiario del papa [O bestiário do papa] (Einaudi Saggi, 378 páginas), estudo exemplar sobre o significado simbólico dos animais na representação pontifícia, publicado pelo medievalista Agostino Paravicini Bagliani.
Uma viagem ilustrada nos meandros da semiótica zoomórfica que emerge de fontes variadas e muitas vezes pouco acessíveis: heráldica e sigilografia, figurações pictóricas e escultóricas, bulas papais e crônicas, descrições satíricas e literatura teológica ou herética, sites da internet, até mesmo manuscritos e documentos originais.
Um despojamento que começa a partir do primeiro cristianismo para acabar nos nossos dias, de acordo com o conceito de “longa duração”, santificado pela historiografia francesa e explicitamente referido pelo autor na introdução. Exemplo dessa duração é o retorno da pomba, símbolo da paz e do Espírito Santo, que já aparecia por ocasião da eleição do Papa Fabiano, em 236, para justificar a escolha de um forasteiro, e que continuamente emerge novamente na iconografia de personagens “inspirados” pelo volátil retratado nos seus ombros ou atrás de uma orelha, como Gregório Magno na célebre miniatura de código de Eginone, até as pombas libertadas no Ângelus do último domingo de janeiro por Paulo VI em diante (e que, em 2013, lançadas pelo Papa Ratzinger, foram atacadas por um corvo e por uma gaivota, presságios do escândalo Vatileaks).
Naturalmente, a premissa comum a essa enciclopédia de sinais é a ideia medieval de semiose da criação, que começa no Physiologus grego (o “Naturalista”) e culmina nos bestiários, os repertórios de interpretações alegóricas de plantas e animais sobre os quais, há três anos, foi publicada, na mesma série da editora Einaudi, o vistoso desfile de Michel Pastoureau.
Isto é, a Igreja herda e transmite uma mentalidade semiótica que encontra, principalmente na Idade Média platonizante, a sua mais intensa teorização: a natureza é um texto no qual cada palavra, de acordo com o contexto, é passível a várias interpretações, sempre renováveis. Essa panssemiose da criação, como Eco a definiu, adaptando Peirce a João Escoto, é o mecanismo generativo de uma forma de democracia semiótica, uma permanente polissemia do ser e das suas representações, que inclui e valoriza precisamente também as formas animais.
Dessa atitude hermenêutica, o “bestiário do papa” representa um ponto de observação importante e até agora negligenciado, que reserva surpresas contínuas: tratando do entrelaçamento emblemático em torno do cavalo, por exemplo, Paravicini se detém para reconstruir as motivações para a proibição de comer carne equina, que remonta à Alta Idade Média e à região germânica, mas nunca é verdadeiramente esclarecido no plano teológico (Gregório III se limita a declará-la impuro), nem mesmo recorrendo à passagem do Levítico que proíbe o uso de carnes de quadrúpedes não ruminante e sem casco bipartite.
É diversamente intercultural a panorâmica sobre o elefante, na qual os bestiários identificam qualidades múltiplas (fidelidade e grandeza soberana, força em combate e memória, operosidade e antagonismo com os “dragões”), perfeitamente aptas a fazer dele um símbolo do papa na época do terrível Bonifácio VIII.
Quando o primeiro elefante de carne e ossos chegou à corte de Giovanni de’ Medici, Leão X, em 1514, um presente do Rei Manuel de Portugal vindo da Índia, até mesmo Rafael o retratou sobre a torre da porta do palácio vaticano, hoje desaparecida. O prestígio fabuloso ao qual o animal tinha ascendido na cidade de Roma foi tamanho que Pietro Aretino compôs um testamento dele, graças ao qual o bom Hanno – como tinha sido “batizado” o paquiderme – ridicularizava os vários prelados da Cúria através do legado de partes individuais do seu corpo, incluindo os testículos deixados ao bispo de Senigallia que, aparentemente, era particularmente “gaiardo” (como afirma Pietro).
Também é uma verdadeira descoberta para o leitor não especialista o capítulo sobre as Laudes cornomanniae, uma espécie de festa de carnaval celebrada no sábado in albis [depois da Páscoa], com o papa que recebe guirlandas de flores e três animais (uma raposa, um galo e um cervo) dos arciprestes das 18 diaconias romanas, coroados com um chapéu de chifres e armados com um sistro de bacantes, sentados de costas em um asno, enquanto os sacristães recitam esquetes cômicas e versos “bárbaros”.
Além da anedota, a decriptação das simbologias zoológicas permite introduzir questões socioculturais de maior complexidade, como a atitude do cristianismo em relação à caça, desaconselhada a todos e vetada aos clérigos, e à pesca, tolerada, ao contrário, ou, melhor, iluminada pelo exemplo dos apóstolos, como demonstra o anel do pescador, gravado com cenas de pesca ou navegação, que, pelo menos desde os tempos de Clemente IV, serve para selar as cartas secretas do papa e que, na sua morte, é ritualmente despedaçado.
Mas, talvez, o capítulo mais delicioso é aquele que explica por que existiam no Vaticano uma Câmara e um Pátio do Papagaio. Paravicini inaugura a longa história desses espaços conectando o presente de um pássaro capaz de pronunciar o nome do Papa Leão, no século XI, com a notícia, cantada por Marziale, de um papagaio que cumprimentava o imperador.
O salão hospedava os cardeais à espera do pontífice e foi usada para investiduras, bênçãos e audiências, mas, especialmente, para a vestição do papa, a ponto de exigir um colégio de cubiculares e camerários “papagaiais”. E Rafael, com os seus alunos, pintou na porta do quarto, o Batista que olha justamente para um pequeno papagaio sul-americano branco e verde: recuperando, assim, a função de anúncio da soberania (crística e, por inferência, papal) dos penudos imperiais de Marziale.
Naturalmente, essa mistura de simbologias decorativas é invertida por aqueles que, como os protestantes ou os poetas de cortes rivais, as usavam para ridicularizar os pontífices, de Ariosto a Rabelais, que brinca facilmente com a assonância retratando o único “Papa-gallo” com a sua corte de “Cardin-galli”, até Belli, que faz com que o passarinho profético anuncie, no lugar do papa, a República romana. Ainda em 2003, Eric Till, no filme “Lutero”, faz do papagaio na gaiola dourada uma evocação do papa sem mais majestade.
Os desenvolvimentos satíricos, com efeito, são uma das novidades mais interessantes dessa historiografia abrangente e chegam até o século XX, quando dois jovens socialistas, ao fundarem a revista L’Asino (repudiada pelo partido), retomam nas suas charges a antiga tradição luterana do Papstesel (asno-papa), que institucionalizava o reuso polêmico do “monstro com cabeça de asno”, que emergiu a partir do Tibre em 1496.
Hoje, o Papa Francisco faz com que se projetem as imagens eletrônicas de animais na fachada de São Pedro para criar um visual correspondente da encíclica Laudato si’, muitas vezes redutivamente definida como ecologista, mas, na realidade, politicamente crítica contra as estruturas econômico-financeiras que impõem a homens e animais o mesmo destino de mercantilização.
Mas, talvez, também dessa comunicação profética, assim como de quase todas as pinturas “papagaiais” no Vaticano, não permanecerá no futuro senão uma recordação nas nossas crônicas.
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O papagaio papal e outros “sagrados animais” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU