04 Janeiro 2017
“Cada vez que a sociedade acaba com o divino, o vemos retornar sob as vestes de deuses pouco agradáveis; todos exigem um sacrifício humano”. Com esta advertência, o professor Rémi Brague, filósofo francês, ganhador do prêmio Ratzinger 2012, sintetizou o que considera ser a origem do fracasso do projeto moderno. Ele estava participando de uma conferência – promovida pelo Instituto Acton para o estudo da religião e da liberdade junto à Saint Mary’s University of London e o Benedict XVI Center for religion and society – realizada em 1º de dezembro último a Londres sobre o tema “A crise da liberdade no Ocidente”. Buscando recurso em suas numerosas publicações, entre as quais o recente volume Le règne de l’homme. Gênese et échec du projet moderne (“O reino do homem. Gênese e malogro do projeto moderno”, Paris, Gallimard, 2015, 416 páginas, Euros 25), Brague concentrou-se nos fundamentos do humanismo que prefiguram uma mudança radical na percepção que o homem tem de si mesmo e de seu relacionamento com a natureza e com o cosmos. Uma constatação desenvolvida pelo filósofo nessa entrevista concedida ao jornal L’Osservatore Romano, durante a conferência.
A entrevista é de Solene Tadié, publicada por L’Osservatore Romano, 17-12-2016. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista.
A sua obra chama em causa o próprio conceito de valor, que parece ter sofrido tanto abuso nesse momento em que quase todos invocam os valores para defender tudo e o contrário de tudo. Seria uma expressão daquilo que G.K.Charleston chamava de “virtudes cristãs enlouquecidas”?
O conceito de valor é meu inimigo preferido. O que hoje se exprime em termos de valores, em outro tempo era expresso pelas duas fontes da civilização ocidental, ou seja, a fonte pagã e a fonte cristã, porém com outro vocabulário. Os pagãos falam de virtude, enquanto os judeus e os cristãos falam de mandamentos. Mas o conteúdo é exatamente o mesmo. Seria possível reescrever o Decálogo pela tônica das virtudes. “Não matarás” seria, então, a virtude da justiça. “Não adulterarás” seria a virtude da temperança. E, da mesma forma, seria viável reescrever também a Ética Nicomaqueia de Aristóteles transportando-a para um contexto judaico ou cristão. Aliás, é o que vem sendo feito historicamente. Os grandes moralistas cristãos da época patrística e da Idade Média retomaram sem titubeios conceitos morais presente em Cícero ou em Sêneca, e reproduziram trechos inteiros. Refiro-me, por exemplo, ao tratado de Roger Bacon, o moralista franciscano do final do século XIII, onde aparecem trechos de Sêneca transcritos palavra por palavra. A partir dessas virtudes e mandamentos passamos, mais tarde, a falar de valores.
Quando se fala de valor, pressupõe-se que tenha havido uma avaliação. Isso implica que em determinado momento, em uma instância – não se sabe precisamente qual – decidiu-se dar valor a alguma coisa, dizer que tal coisa custaria tanto, o que é em parte um conceito de ordem econômica. Trata-se daquilo que é dado em troca de alguma coisa. O conceito de valor tem o grande inconveniente de presumir que a realidade por si só não vale nada e que somos nós que lhe atribuímos um valor. Basta olhar no campo econômico a maneira com que John Locke explica que o valor das coisas, dos produtos, deriva do trabalho humano. O que a natureza nos dá não possui praticamente nenhum valor. É o trabalho humano que lhe confere valor.
E hoje, o que define um valor?
Esse conceito atingiu seu apogeu com Nietzsche, que soube introduzir os valores no mercado das ideias, o que lhe conferiu nobreza, e que procurou determinar qual era a instância que conferia o valor. Acreditou então ter feito uma descoberta muito interessante, ou seja, o valor seria atribuído pela vontade de potência. É a vontade de potência que confere valor às coisas. Preciso ter uma determinada coisa porque assim afirmo e aumento o campo de ação e a profundidade de influência da minha própria vontade de potência. O inconveniente é que, por esse ponto de vista, os valores entram numa dialética que os destrói, pois se o que tem valor é aquilo ao qual eu dei valor, a atividade mediante a qual valorizo uma coisa terá mais peso do que o próprio valor. “O fato de avaliar é, entre todas as coisas que se avaliam, o valor supremo” explica Nietzsche em Assim falou Zaratustra.
Isso significa que com o próprio gesto de atribuir valor a alguma coisa, eu a desvalorizo porque a atividade da vontade de potência em mim que fixa o valor, vale mais que o próprio valor. Consequentemente, o conceito de valor é arrastado, pela sua constituição, na autodestruição. Isso gera uma espécie de corrida em direção a um valor cada vez maior, pois, a partir do momento em que um valor é fixado, observa-se que no final das contas não é grande coisa e que é necessário ter um novo. É estranho que este conceito tenha entrado no discurso cristão. No mundo político, hoje se fala dos “nossos valores” – sem saber realmente do que se trata – e eu acredito que seria melhor mudar a lógica e parar de falar de valores, para voltar a falar de virtudes ou de mandamentos, ou mais simplesmente do bem. Não somos nós que fazemos com que uma coisa seja boa. Em minha opinião, os valores poderiam ser eliminados.
O senhor situa perto do final do Renascimento uma reviravolta na ideia que o homem tem de si mesmo, em relação ao cosmos e a Deus, e na concepção da própria dignidade. Como aconteceu essa mudança de paradigma?
A verdadeira mudança aconteceu no início do século XVII. É a terceira etapa do desenvolvimento da ideia humanista da qual tratei na conferência. Suponho que exista uma transição de uma dignidade e de uma nobreza tranquilamente possuídas para uma superioridade que é preciso conquistar, para isso submetendo todo o restante, consequência de uma evolução de caráter psicológico. É possível comparar esse fenômeno com uma imagem, ou seja, com uma personagem que precisa mostrar que vale mais que os outros: é o parvenu, o “novo rico”. Basta pensar ao exemplo de Lorde Grantham da série Downton Abbey: é o homem mais modesto que existe, porque para ele a sua nobreza é um dato de fato. O parvenu, ao contrário, não possui nobreza. Isso é demonstrado pela origem da palavra ‘esnobe’, sine nobilitate. Quem não tem nobreza deve “esnobar” os outros para demonstrar o próprio valor. Fica a sensação que o desejo do homem moderno – ou seja, o homem a partir do XVII século – de conquistar o restante da natureza poderia ser efetivamente devido a uma perda de consciência da própria dignidade.
É interessante observar a tradição dos tratados como o De nobilitate: nascem em meados do século XV e atravessam todo o século XVI e são interrompidos quando são substituídos pelo projeto de uma dominação técnica da natureza. O homem moderno é corroído pela dúvida sobre si mesmo, não tem mais certeza que Deus lhe tenha conferido uma dignidade superior àquela dos outros objetos da natureza e, portanto, remedia a isso procurando dominá-los. Nós estamos ainda parados nesse tipo de figura, embora o movimento ecológico tenha atenuado levemente essa tendência. Tal movimento tentou desenvolver uma consciência do débito que temos para com a natureza, mas lhe falta o fundamento metafísico segundo o qual a natureza é uma criação. Pois bem, se a natureza não é criação não se entende porque seria necessário demonstrar por ela alguma espécie de respeito. Mas, se ela for entendida como uma criação dentro da qual o homem teria uma função, principalmente a de organizá-la, arrumá-la, cuidar dela como se cuidaria de um jardim, as coisas mudam. No caso contrário, oscila-se entre uma atitude de dominação brutal e violenta da natureza e uma espécie de idolatria da mesma, que poderia chegar ao ponto de desejar a extinção do gênero humano para que a natureza possa ser restituída a si mesma.
Isso marcaria o surgimento de um novo paradigma que se originaria do fracasso do projeto moderno ou se trata, ao contrário, de uma espécie de canto do cisne desse mesmo projeto?
O projeto moderno tem do seu lado grandes sucessos. Temos uma dívida de reconhecimento com ele; refiro-me principalmente ao projeto da medicina ou da agricultura, que permitem alimentar um grande número de pessoas que no passado nem teriam tido chance de nascer. Também ofereceu a possibilidade de uma ciência da natureza séria, muito mais focada do que as representações que existiam dela na Antiguidade. Até mesmo Aristóteles, que é a maior referência da física antiga, não é lá grande coisa quando comparado a Galileu. Não sei se está se delineando um novo paradigma, mas acredito que deverá se delinear.
O que espera nesse sentido?
Se não for possível legitimar o humano e angariar razões válidas à sua subsistência, não teremos mais motivo para continuar a existir. A única opção possível, nesse sentido, seria organizar a coexistência das pessoas que já estão aqui, mas proibindo a nós mesmos de lançar um apelo à existência das gerações futuras, às quais não é possível solicitar opinião. Não seria de forma alguma possível confiar a continuação do projeto humano ao instinto, como alguns fazem, pois já temos condições de decidir se irão existir ou não gerações futuras. O instinto funcionava, no sentido que era, para a espécie humana, uma maneira de manifestar que queria sobreviver. Assim, se é de fato como se fala, ou seja, que é a evolução que produziu tudo isso (o que, aliás, é um modo inapropriado de falar, pois não se diz que foi a história que produziu Napoleão), deduz-se que a interferência de forças cegas tenha produzido um ser inteligente. Mas justamente este ser inteligente não tem o direito de continuar a fazer conscientemente e livremente o que produziu de forma inconsciente e sem liberdade. Seria realmente uma alta traição em relação à nossa razão...
A coisa difícil seria, se posso dizer, oferecer uma versão concreta para a definição mais clássica do homem: um animal racional. Trata-se de conservar as duas dimensões sem que a racionalidade atue contra a animalidade. Acredito que a nossa função atual consista justamente em reconciliar essas duas dimensões, que possuem certa tendência a se afastarem. Vamos tomar como exemplo o trans humanismo, a respeito do qual não tenho opinião precisa, pois não estudei a fundo. Nem mesmo sei se a ideia seja realizável, mas o fato mais interessante é que testemunha uma forma de desespero em relação ao homem assim como é na atualidade, e se propõe a transcendê-lo. Houve um tempo em que se procurava desenvolver o ser humano, aumentar sua potência e qualidades morais; disso deriva o duplo sentido do adjetivo humano: fala-se, por exemplo, de tratamento humano para os animais, o que tem um significado bem preciso. Mas existe a impressão que chegamos ao ponto, como Nietzsche formulou pela primeira vez, que o homem deva ser transcendido. É a famosa fórmula de Zaratustra, embora eu não saiba exatamente o que pretendia com ela: ele flerta com Darwin, que estava presente em toda a vida intelectual europeia, para declarar no final de sua vida nunca ter pretendido dizer que era necessário substituir o homem com uma nova espécie. Em tal caso deveria ter se expressado de maneira um pouco mais clara! Em especial quando declara: "Percorrestes o caminho que medeia do verme ao homem, por que não ir além?”.
Trata-se, indiscutivelmente, de uma alusão bem clara à biologia. Em todo caso, o que interessa aqui é constatar que existe uma perda de confiança no homem porque se pretende substituí-lo por outra coisa. Ou, de toda forma, se deseja melhorá-lo, para que não seja mais necessária a moral, pois para o homem refeito nem passaria pela cabeça agir de forma maldosa, contrária às regras do bem e do mal. No meu livro menciono principalmente exemplos curiosos, entre os quais o de Robespierre, para quem o ideal seria fabricar um homem espontaneamente virtuoso, que não precisasse se questionar. Os nossos sonhos, hoje, são um pouco assim. Não sei se a virtude é aquilo que os corifeus do trans humanismo querem em primeira instância, mas o projeto insere-se um pouco nessa tendência, e é bem mais antigo do que se pensa.
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Legitimar o humano. Entrevista com Rémi Brague - Instituto Humanitas Unisinos - IHU