30 Agosto 2016
É na casa de reza da Tekoa Ytu, no Jaraguá, que índios guarani no menor território indígena do Brasil conseguem vivenciar a plenitude do modo de vida de seus antepassados. Em meio à fumaça da fogueira, do fumo de corda queimando e das canções embaladas por timbres de instrumentos como rabeca, maraca mirim e takuapu, membros do grupo mbya transmitem aos mais novos cultura, conhecimento e força.
A reportagem é de Marsílea Gombata, publicada por CartaCapital, 30-08-2016.
Os 354 troncos que formam as paredes do espaço de 60 metros quadrados guardam uma espécie de tesouro, que resiste a tentativas de mudança impostas pelo modo de vida do homem branco ocidental.
Pressionados por uma morosidade do governo em reconhecer de fato os 532 hectares reivindicados e por uma especulação imobiliária que acompanha a expansão da cidade para a periferia (estima-se que a região do Pico do Jaraguá terá um crescimento demográfico de mais de 50% nos próximos 25 anos, passando dos atuais 208.054 para 317.439 habitantes), os guarani no Jaraguá lutam para manter seu modo de vida tradicional, mas enfrentam um obstáculo de proporções épicas: no estado mais rico da federação, uma lei entrega às mãos da iniciativa privada a gestão de parques estaduais como a reserva do Pico do Jaraguá, que se sobrepõe à área reclamada.
No fim de junho, o governador Geraldo Alckmin sancionou o projeto que autoriza o governo estadual conceder à iniciativa privada 25 parques estaduais, como o do Jaraguá (488,84 hectares) e o da Cantareira (7.900 hectares) na capital e o de Campos do Jordão (8.341 hectares) na região do Vale do Paraíba, assim como áreas de manejo florestal no estado.
O texto prevê concessão por 30 anos para “a exploração dos serviços ou o uso de áreas inerentes ao ecoturismo e à exploração comercial madeireira ou de subprodutos florestais”, o que é justificado pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente pelo interesse público para que o governo obtenha recursos para a recuperação da natureza.
Os Guarani mbya, por sua vez, argumentam que as matas da Terra Indígena Jaraguá representam um dos últimos fragmentos da Mata Atlântica na cidade de São Paulo e não se resignarão diante da disputa por parte do território que reivindicam dentro do Parque do Jaraguá.
A resistência não vem de hoje: a terra guarani na porção noroeste da capital é cercada pela Rodovia dos Bandeirantes, pela Anhanguera e também pelo Rodoanel, que trazem barulho e poluição aos que vivem ali, mas se recusam a sair.
“O caso do Jaraguá é um pouco diferente dos outros territórios indígenas, porque a periferia, com toda especulação de terra, fragmentação e valorização do solo, chega até os indígenas”, explica Camila Salles de Faria, professora da Universidade Federal de Mato Grosso e autora da tese A Luta Guarani pela Terra na Metrópole Paulistana: Contradições entre a propriedade privada capitalista e a apropriação indígena, defendida em dezembro no Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo.
“Com isso, há tentativa de expulsão ou de não ampliação da área de demarcação. Ao limitar esse direito à terra, acaba-se tirando a relação essencial com a natureza, necessária para o plantio. A privatização do parque agrava isso, pois seu cerco impossibilita os guarani de entrarem no parque como estavam acostumados a fazer.”
A Terra Indígena Jaraguá é composta por quatro aldeias: Pyau, Itakupé, Itawerá e Ytu. Destas, três são reconhecidas pela Funai, mas apenas a Ytu tem 1,7 hectare demarcado, além de uma Unidade Básica de Saúde precária (onde um pediatra e uma ginecologista atendem semanalmente sem uma sala reservada) e duas escolas.
Pedro Karai Yrapuá, de 51 anos, auxiliar de coordenação de cultura na aldeia, explica que na Ceci são ensinados elementos da cultura indígena, mas a escola não é a base da educação guarani. “Ser guarani é ter um modo de vida em torno do observar e aprender com o universo. Enquanto o jurua (homem branco) só olha o mundo como um objeto de valor em termos de riqueza e sabedoria desde que traga algo para ele, para o guarani o valor está em aprender com a natureza”, explica. “Não existe a preocupação em se beneficiar e ganhar com o território. É mais sobre o que a terra ensina, a importância de apreender e conservá-la.”
A TI Jaraguá é povoada por 200 casas simples de pau a pique ou cimento, ruelas de barro, cachorros diariamente abandonados ali, galinhas e crianças que brincam do lado de fora das casas, em uma vivência em comunidade impensável para os centros urbanos de hoje. O território indígena carece de saneamento básico e infraestrutura, mas é cercado por casarões e vizinhos que também buscam viver em comunhão com a natureza.
Andando por ali, o jovem guarani Herbert Martins, de 20 anos, aponta para a mansão vizinha e lembra que na piscina que ostentam há festas com frequência. Orgulhoso, ele conta fazer parte de um grupo de rap batizado de Xondaro MC’s (Guerreiros MC’s em guarani). “A gente faz letras sobre como o Brasil era habitado e passou a ser invadido”, explica, sobre a opressão vivida por seu povo na pele.
Delimitada em 1987, a aldeia Tekoa Ytu, conhecida como “Aldeia de Baixo”, é a menor terra indígena do país e é cortada pela Estrada Turística do Jaraguá antes de fazer fronteira com a Tekoa Pyau, também chamada de “Aldeia de Cima”. Nela, reclamam, vizinhos deixam gados e outros animais soltos avançarem em hortas tímidas como as de milho.
Uma plantação de eucalipto próximo dali contribuiria para a seca das nascentes do Rio Ribeirão das Lavras. Além da Ytu e Pyau, a Terra Indígena Jaraguá abriga as aldeias Itakupé e Itawerá. Embora sejam terras reconhecidas pela Funai, apenas a Ytu é homologada.
A Funai lembra que a reivindicação pelo reestudo dos limites territoriais é antiga e em junho de 2015 a Portaria Declaratória nº 581 do Ministério da Justiça reconheceu os 532 hectares que configuram a Terra Indígena Jaraguá como de ocupação tradicional dos guarani.
“Embora tenha sido uma importante conquista do povo guarani mbya de São Paulo, hoje a eficácia da Portaria nº 581 está suspensa, de modo que a tramitação pela regularização do território indígena restou paralisada aguardando apreciação do mérito da ação pelo Supremo Tribunal Federal”, lembra o órgão de proteção ao índio por meio de sua assessoria.
Além da paralisação da portaria, os índios do Jaraguá convivem com o fantasma de um retrocesso ainda maior com a possibilidade de esmagamento imposta pela lei de concessão dos parques estaduais.
A diminuição forçaria os índios a delimitarem não apenas o seu território, mas práticas da cultura guarani como a agricultura para o autossustento, o manejo de nascentes e a extração de plantas medicinais. Tal “confinamento territorial”, observa a Funai, não condiz com o padrão de ocupação territorial guarani.
“Esse é o maior desafio da comunidade hoje e a causa de muitos outros problemas. Com essa área, não é possível levar adiante um programa habitacional por falta de espaço para as casas. O crescimento da metrópole de São Paulo asfixia a aldeia, que persiste em manter vivos o idioma e a religiosidade, além de buscar recriar pequenos nichos de cultivos tradicionais”, observa a Funai, ao culpar a restrição de espaço físico e a aproximação da cidade a cada dia por situações de vulnerabilidade das famílias locais.
“Elas convivem com escassez de alimentos, más condições de habitação e de saneamento, além da entrada do alcoolismo. A suspensão da Portaria Declaratória do Ministério da
Justiça aumenta a insegurança delas”, afirma a Funai, ao alertar que sua Coordenação Regional Litoral Sudeste identifica cerca de 30 aldeias sobrepostas a Unidades de Conservação e vem trabalhando em Planos de Gestão Territorial e Ambiental como meio de uma gestão compartilhada juntamente com os parques.
Membro da Comissão Guarani, Sonia Barbosa, de 42 anos, explica que a perda de espaço implica perda de referência para os guarani. “Sem a terra não há lugar para o cultivo, para brincadeiras tradicionais, para a vivência dos mais velhos”, afirma. “O governo do estado toma toda a área de preservação como se fosse dele e esquece que aqui há pessoas, nascentes, animais silvestres, árvores frutíferas. Olham a mata apenas com o propósito financeiro.”
Foram os elementos dessa mata que propiciaram aos guarani se estabelecerem ali desde o século XVI. “Antes a gente tomava banho no rio, minha avó cozinhava com a água dele. Mas agora tomamos água da Sabesp, e as crianças que entram no rio saem cheias de doenças”, lamenta Jurandir Augusto Martim, de 40 anos, enquanto mostra orgulhoso a horta de manga, milho, abóbora e mexerica, vizinha do apiário de abelhas uruçu e mandaçaia na Aldeia de Baixo.
Thiago Henrique Karai Djekupe, de 22 anos, explica que a noção de pertencimento sobre parte do Parque Estadual do Jaraguá vem de décadas. Quando criança, seu pai o levava desbravar o local em busca de “remédios” da natureza para a fabricação de garrafadas (infusões de álcool com plantas medicinais). “Minha avó sempre lutou muito pela demarcação da nossa terra e em 1987 conquistamos o 1,7 hectare. Continuamos batalhando, mas desde que a nossa luta ganhou força vimos retrocesso atrás de retrocesso.”
Por ser signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, ele lembra, o Estado brasileiro não tem direito de negar a identidade de um povo indígena e deve consultar povos originários sobre qualquer medida que possa afetá-los. “Mas hoje, além de não respeitarem a convenção, aplicam mais leis que ferem a Constituição e nós”, diz, referindo-se aos artigos 231 e 232 da Carta sobre a garantia dos direitos indígenas.
Além da suspensão da Portaria Declaratória nº 581, do Ministério da Justiça, da lei estadual sobre concessão dos parques estaduais, os guarani temem a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215/2000, que transfere do Executivo para o Legislativo a palavra final sobre a demarcação de terras indígenas. Ao transferir o poder de demarcação de terras indígenas, coloca-se tal responsabilidade nas mãos dos parlamentares, cada vez mais representados por bancadas ruralistas.
Para a Funai, a PEC 215 é inconstitucional, já que a definição sobre terras indígenas fica sujeita às “maiorias políticas de ocasião”. “Sabemos que hoje essa maioria representa interesses pessoais e financeiros e atua para que não seja demarcada nenhuma terra indígena”, observou a entidade em comunicado.
Além da pressão no âmbito federal com a PEC 215, o imbróglio na esfera estadual foi marcado por uma denúncia do Ministério Público Federal de São Paulo que fala em uso de drogas e abuso sexual de crianças na aldeia. A denúncia golpeou a luta guarani pela ampliação e reconhecimento de seu território, antes de ela sofrer novo revés com a lei de concessão dos parques estaduais.
Os guarani do Jaraguá reclamam que em nenhum momento foram ouvidos para a formulação da denúncia e que só foram chamados para depor como se fossem criminosos. Por tratar-se de uma minoria, os indígenas estão sujeitos a um fenômeno que não ocorre na sociedade branca ocidental: quando um membro da comunidade comete alguma irregularidade, a mancha se alastra por toda a aldeia, estigmatizando-a ainda mais.
No dia a dia, a denúncia só criou mais obstáculos para os guarani do Jaraguá. “Passamos a ser alvo de racismo e discriminação. Os ônibus deixavam de parar quando dávamos sinal, perguntavam às mulheres se elas faziam programas e mostravam partes íntimas para nossas crianças”, conta Thiago Djekupe. “A denúncia generalizou problemas pontuais que existem aqui e em qualquer comunidade.”
A Funai, por sua vez, garante que sua coordenação técnica auxilia a comunidade da TI Jaraguá desde 2013, promovendo diálogos sobre o enfrentamento à violência e a promoção de saúde, com foco em saúde mental e combate ao uso abusivo de álcool e outras drogas.
Para David Guarani Karai Popygua, uma das lideranças, de 28 anos, a denúncia se coloca como uma tentativa de criminalizar a comunidade indígena, descartando os percalços que os guarani do Jaraguá enfrentam para ter acesso a saúde, educação e alimentação e a batalha centenária por terra.
“Parece que o MPF e o governo do estado se articulam para dificultar nossa luta pela demarcação. Se tirarem nossa terra, como sobreviveremos?”, questiona, entristecido. “As pessoas nos criticam por reivindicarmos uma área dentro da metrópole, mas não conseguem refletir de forma crítica e enxergar: quem invadiu a nossa terra foi a cidade.”
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Indígenas de São Paulo, acossados por todos os lados - Instituto Humanitas Unisinos - IHU