21 Junho 2016
Nunca antes a humanidade tinha experimentado de tão perto a mudança, nem tão rapidamente. As transformações se sucedem, já não de uma geração para outra, mas de uma década para outra. Os idosos, cujas vidas foram se estendendo até registros históricos, veem como seu mundo, de repente, é irreconhecível. O historiador Felipe Fernández-Armesto (Londres, 1950), que desenvolveu grande parte de sua carreira docente em Oxford e agora é professor da Universidade de Notre Dame (EUA), investiga as razões dessa mudança frenética, suas causas e suas consequências em seu mais recente livro, Un pie en el río. Sobre el cambio y los límites de la evolución (Turner) [Um pé no rio. Sobre a mudança e os limites da evolução], sobre o qual conversou em Madri, na Fundação Rafael del Pino, horas antes desta entrevista. Para entender o ser humano, diz ele, “devemos compará-lo com outros animais”.
A entrevista é de Cristina Galindo, publicada por El País, 20-06-2016.
Eis a entrevista.
Como essa vida cambiante, cada vez mais acelerada, desperta receios?
Mudamos num ritmo sem precedentes na história do mundo. Isso preocupa as pessoas, que sentem que podem perder o fio de sua identidade, de suas tradições, de sua cultura... Para alguns, a chegada de imigrantes representa uma ameaça. Esta é uma era de ansiedade irracional. Deveríamos nos ajustar mentalmente à nova situação.
Como?
Precisamos tentar entender a mudança e as causas de sua aceleração, que se deve principalmente aos intercâmbios culturais provocados pela globalização. Depois de nos dar conta disso, talvez nos tranquilizemos. Quando compreendemos algo, isso já não nos dá tanto medo. As pessoas ficam mais tranquilas. Por exemplo, ninguém entende o fenômeno Trump. É surpreendente que tenha tanto apoio. Fico horrorizado com a ideia de que haja pessoas que votem em partidos nacionalistas ou formações com ideias simplistas. São pessoas que pensam que podem sair dos seus problemas culpando os outros.
Vivemos uma época turbulenta: crise, desemprego, alterações climáticas, terrorismo... É difícil não se preocupar.
Sim, nos sentimos muito ameaçados. Há mais milenarismo no mundo atual do que no da Idade Média. O temor de que tudo se acabe é mais difuso do que nunca. E, objetivamente..., o mais provável é o desastre.
A mudança se acelera, mas está presente na vida dos seres humanos há milhares de anos. Em seu livro o senhor pergunta por que os seres humanos têm história e os animais não.
Para entender o ser humano devemos compará-lo com outros animais. Os animais têm história até certo ponto. É uma questão de grau, não de essência. Mas nada comparado à nossa: tão intensa, tão variada, tão cheia de acontecimentos. Cheguei à conclusão de que o motor da mudança é a imaginação, e ela desempenha um papel importante na cultura. Nós, seres humanos, imaginamos um mundo diferente do qual vivemos e trabalhamos para alcançá-lo. Defendo a tese de que essa incrível imaginação humana resulta da união de duas faculdades que evoluíram. Uma delas é a memória, que é a capacidade de ver o que já não existe. No caso de memória humana, sua magia é que ela é muito enganadora. Distorcemos os fatos que lembramos. Por isso a falsa memória é criativa. O segundo ingrediente é a antecipação, uma faculdade que nos permite ver o que ainda não existe. Enquanto a memória humana é débil e falaciosa, nossa faculdade de antecipação é superdotada, está acima daquela de outros animais. Os caçadores têm de antecipar a situação da presa e os movimentos dela. Essa combinação de falsa memória e antecipação aguda nos leva a ser o que chamo de animais imaginativos.
Os grandes predadores não desenvolveram essa antecipação e caçam há milhares de anos.
Porque não precisam dela. Tigres e leões são fisicamente superdotados para a caça, enquanto os seres humanos são frágeis, lentos...
Alguns diriam que o que distingue os humanos dos animais é a inteligência e a linguagem.
Não sinto isso. A doutrina tradicional que diz que os seres humanos são superiores é altamente questionável. Temos que nos ajustar mentalmente a uma nova situação, mais igualitária, entre as espécies. Acredito que os seres humanos têm certas habilidades mais bem adaptadas à vida humana, mas se fôssemos para a floresta, nós seríamos os tolos. A inteligência é uma qualidade muito relativa. Os chimpanzés dominam a nossa linguagem com grande certeza, enquanto nós parecemos surdos-mudos quando tentamos nos comunicar com eles com sua própria linguagem. Nem em termos de inteligência e de linguagem é o caso é tão claro. Há animais culturais, no sentido de que têm comportamentos que não são instintivos, mas desenvolvidos pela aprendizagem.
A memória humana falha mais?
Depende da definição de memória. No caso de alguns animais, suas memórias superam as nossas. Por exemplo, o ser humano é capaz de se lembrar de uma série de sete números. Enquanto os gorilas e chimpanzés se lembram de nove. Além disso, eles gastam menos tempo para memorizá-los e se lembram por períodos mais longos. A razão disso é provavelmente que, de acordo com o grande neurocientista de Harvard Daniel Schacter, os seres humanos habitam grandes sociedades e lembrar-se de tudo seria insuportável. Temos o vício de pensar que tudo o que é nosso é superior, e não é verdade.
Como historiador muito interessado em ciência, o que o senhor pensa da relação entre a ciência e as humanidades?
Até bem recentemente a ciência era a norma acadêmica. As humanidades tentavam se qualificar cientificamente: falava-se de ciência histórica, ciência literária... Hoje vemos certa convergência conceitual entre as diferentes disciplinas. As humanidades estão se aproximando das ciências e vice-versa.
Com tantas mudanças, a história parece cada vez menos algo do passado. O que os historiadores estudam: o passado, o presente, o futuro?
Não há diferença: o presente é o passado que acaba de acontecer, e o futuro é o passado que ainda não aconteceu.
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“Vivemos uma era de ansiedade irracional” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU