19 Abril 2016
Os meus dedos já se cansaram de escrever isto, mas a) o Papa Francisco é um católico, b) ele não tem o poder de mudar dogmas católicos e há poucas provas de que ele deseja fazer isso, e c) os progressistas e os tradicionalistas precisam se acalmar quanto ao seu papado. Eu só escrevo estas coisas mais uma vez (a última vez?) porque nos últimos dias fomos presenteados com um exemplo clássico onde as pessoas entenderam errado o pontífice.
A reportagemé de Tim Stanley, publicada por The Telegraph, 18-04-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
No dia 8 deste mês, uma sexta-feira, Francisco publicou Amoris Laetitia – um tratado pessoal sobre a família moderna que soa como o nome de uma das escravas em Up Pompeii [1]. Como quase sempre acontece com o que o papa diz, os comentadores puseram-se imediatamente a “buscar” pela palavra “divórcio” no texto apresentado. Eles não encontraram um capítulo ou parágrafo, e sim uma nota de rodapé: foi o suficiente para sugerir que o papa estava determinado a permitir que os católicos divorciados que voltaram a se casar recebam a Sagrada Comunhão. Eis as palavras da infame nota n. 351 sobre o tratamento dispensado a pessoas divorciadas em novos relacionamentos:
“‘(…) aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor’ (…) E de igual modo assinalo que a Eucaristia ‘não é um prêmio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos’”.
Tanto os progressistas como os liberais inferiram que os padres deveriam pegar leve com os fiéis recasados no momento da Confissão e acolhê-los de volta à vida plena da Igreja através da recepção da Comunhão. Se isso for verdade, então tal prática representará uma ruptura não só com as crenças católicas como também com os ensinamentos do próprio Cristo. Em Mateus, ele assim diz das uniões conjugais: “O que Deus uniu, o homem não deve separar”.
O papa não desenvolveu publicamente a ideia presente na nota 351; permitiu-se que a polêmica apodrecesse. A CNN escreveu uma bela manchete para retratar esta história: “O Papa diz à Igreja: tenhamos uma maior aceitação aos católicos divorciados, gays e lésbicas”. Em seguida, no sábado, 16 de abril, um repórter pediu finalmente que o papa respondesse. Reproduzo aqui a sua resposta por inteiro, pois é bastante reveladora:
“Escute, um dos últimos Papas, falando sobre o Concílio, disse que havia dois Concílios: aquele Vaticano II, que se fazia na Basílica de São Pedro, e o outro, o Concílio da Mídia. Quando convoquei o primeiro Sínodo, a grande preocupação da maioria da mídia era: ‘Ah, poderão comungar os divorciados e os recasados?’. E como não sou santo, isso me incomodou um pouco e, depois, até um pouco de tristeza. Porque penso: Mas aquela mídia diz isso, aquilo e tudo, não se dá conta que não é um problema importante? Não se dá conta que a família, no mundo inteiro, está em crise? E a família é a base da sociedade! Não se dá conta que os jovens não querem se casar? Não se dá conta que a queda da natalidade na Europa faz chorar? Não se dá conta que a falta de trabalho e que as possibilidades de emprego fazem sim que o pai e a mãe tenham dois trabalhos e as crianças cresçam sozinhas e não aprendem a crescer em diálogo com o pai e a mãe? Estes são os grandes problemas! Eu não recordo daquela nota, mas com certeza se algo do gênero está em uma nota é porque foi dita na Evangelii Gaudium...com certeza! Deve ser uma citação da Evangelii Gaudium, com certeza! Não recordo o número, mas com certeza é!”
“Não recordo o número”. Suspeito que de isso significa que ela, a nota, não fora escrita com a finalidade de mudar a doutrina.
Esta resposta do papa nos diz duas coisas.
Em primeiro lugar, ele está cansado com a obsessão da imprensa a esta polêmica doutrinal. Este circo chegou a um ponto onde o papa, um padre ou mesmo um católico leigo comum não podem falar sobre religião sem que as suas manifestações sejam analisadas cuidadosamente por aquilo que eles dizem – ou mesmo não dizem – sobre o sexo. Este julgamento constante pela imprensa está enfraquecendo a missão evangélica da Igreja, distraindo-nos de sua mensagem central a respeito da caridade espiritual e material para com o próximo. Pior: nós jornalistas católicos corremos o risco de nos tornar parte do problema. Em vez de darmos as boas-vindas a Amoris Laetitia como uma reflexão pessoal sobre a “alegria do amor”, nós a rasgamos em pedaços como se fosse um manifesto escrito por um partido político.
Em segundo lugar, o papa continua sendo um conservador social – ou mais precisamente: um “católico”. Notemos que ele é levado à beira das lágrimas pela “taxa de natalidade em baixa”, pelo fato de que as mães não podem se dar ao luxo de permanecer em casa com os seus bebês e que os “jovens” não veem a necessidade de uma relação sacramental com Deus por meio do matrimônio. A ênfase no magistério de Francisco está em curar a ruptura por meio da compaixão. Às vezes ele expressa esta ideia de uma maneira desajeitada – e há um entusiasmo precipitado por um compromisso que pode sair pela culatra.
De fato, poderíamos sustentar que o papa deve ser o culpado pela falta de clareza em Amoris Laetitia, que ele não precisava escrever uma nota de rodapé vaga ou que deveria ter percebido que alguém lhe perguntaria sobre o assunto. Mas ele também poderia facilmente responder dizendo que uma leitura atenta das 60 mil palavras deste documento revela que ele, o papa, não é Lutero. Pelo contrário, Amoris Laetitia é uma palestra sensata e belamente escrita sobre o significado do amor que se constrói inteiramente sobre o magistério católico. É um documento bem ao estilo Francisco em termos de sua humanidade e, eu arriscaria a dizer, de sua sentimentalidade. Lemos em uma passagem desconcertante: “A mulher grávida pode participar deste projeto de Deus, sonhando o seu filho”.
Mas é também um documento prático. As seções sobre a necessidade das mães e dos pais de serem bem-sucedidos na criação dos filhos vão no cerne de cinco décadas de sociologia conservadora. Mais do que isso, existe um tradicionalismo essencial – crença segundo a qual a humanidade define-se pelo que veio antes. Consideremos esta bela passagem: “A falta de memória histórica é um defeito grave da nossa sociedade. É a mentalidade imatura do ‘já está ultrapassado’. Conhecer e ser capaz de tomar posição perante os acontecimentos passados é a única possibilidade de construir um futuro que tenha sentido. Não se pode educar sem memória”. Nós estamos correndo o risco, conclui Francisco, de nos tornarmos “órfão, em termos de descontinuidade, desenraizamento e perda das certezas que dão forma à vida”.
Como alguém pode ler estas palavras e concluir – positiva ou negativamente – que ele é um “guerreiro pela justiça social” ou um cripto-marxista? A mensagem central e Amoris Laetitia é que existem uma família ideal, existe uma realidade desfacelada e que a ponte entre as duas deve ser a Igreja Católica. A reconciliação com a Verdade irá salvar não só as pessoas e suas famílias, mas a sociedade mais ampla. Amém a isso.
Nota:
[1] “Up Pompeii!” é uma série britânica de comédia transmitida nos anos de 1969 e 1970
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O Papa Francisco é um conservador social - Instituto Humanitas Unisinos - IHU