A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 7º Domingo de do Tempo Comum, ciclo C do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Lc 6,27-38.
“... e sereis filhos do Altíssimo, porque Deus é bondoso também para com os ingratos e os maus”
No domingo passado, Jesus proclamou as bem-aventuranças como atitude inspirada dos seus seguidores(as). Neste domingo, podemos dizer que Jesus desce ao chão da vida para explicitar a vivência das bem-aventu-ranças. Como vivê-las? Basta ativar as atitudes oblativas presentes no evangelho indicado para este dia.
O “modo de proceder” do seguidor(a) de Jesus está centrado no coração, ou seja, viver a “cordialidade”, com todos e com tudo. Coração cristificado! A falta de cordialidade está matando nossa sociedade, nossas famílias e comunidades; quando não vivemos a partir do coração, petrificamos nossas relações, emitimos juízos de morte sobre os outros, envenenamos toda possibilidade de encontro.
Jesus não está preocupado em fundar uma nova religião, com seus ritos, doutrinas, leis. Ele inicia um “mo-vimento de vida” e este está centrado na maneira de viver a relação com os outros: “amai os vossos inimi-gos”, “fazei o bem aos que vos odeiam”, “bendizei os que vos amaldiçoam”, “rezai por aqueles que vos caluniam”. Tudo isso é expressão da bondade, a marca divina presente nas profundezas de nosso ser.
A bondade é o atributo divino que nos diviniza.
“A bondade é mais profunda que o mal mais profundo” (Paul Ricoeur). Todos entendemos o que quer dizer “bondade”: uma pessoa boa, uma atitude boa, uma ação boa, uma palavra boa... Não é preciso definir a bondade, pois as definições tornam-na estreita; a bondade é concreta e expansiva.
A bondade alarga a vida. A humildade, a ternura, a compaixão, a tolerância, a confiança... são atributos que dilatam nosso interior, proporcionam ao próximo amplitude e alívio, abrem nele as fontes do bem, tornam-no livre para fazer emergir o melhor de si.
Pelo contrário, a inimizade, o ódio, a vingança, a insensibilidade, a soberba... nos atrofiam e nos afogam, asfixiam no próximo seu alento vital, o bem-estar indispensável para ser bom. Nisto consiste a verdadeira espiritualidade, independente de praticar ou não uma religião. A bondade não equivale a conformidade com cânones e leis; estas só valem se ajudam as pessoas a serem boas. Não é preciso dogmas, ritos e nem leis religiosas para ser bom. Pelo contrário, o valor de uma religião se mede por sua capacidade de alimentar a bondade, uma bondade feliz.
Insistir na bondade em um mundo tão injusto e violento dá a impressão de ser algo irresponsável. No entanto, só ela é criativa e criadora, subversiva. Que mundo global novo podemos construir sem essa bondade como base inspiradora? Não conseguiremos vencer o mal com o mal, aumentando as penas, afogando liberdades, fechando fronteiras aos refugiados e abrindo-as aos fluxos financeiros, endurecendo o controle sobre as pessoas, alimentando atitudes preconceituosas, racistas e xenófobas... Nada conseguiremos se não somos movidos e inspirados pelo princípio bondade. Falamos da bondade não de maneira abstrata, mas em ato: a bondade do olhar, a bondade do gesto, a bondade do samaritano, a bondade da fé no outro.
A bondade é sempre “relacional”. É na forma de relacionar-se com os outros, sobretudo com aqueles que menos podem corresponder, que melhor se pode detectar a presença da bondade, que não atua por interesse, mas por pura gratuidade; a bondade é o melhor que brota espontaneamente das entranhas quando não é abafada. Há uma prova muito simples para ver até onde chega a bondade de uma pessoa. “O espelho do comportamento ético não é a minha própria consciência, mas o rosto daqueles que convivem comi-go. Quando este rosto expressa paz, esperança, alegria e felicidade, porque meu comportamento gera tudo isso, então é evidente que minha conduta é eticamente correta” (José Maria Castillo).
E uma bondade que não está edificada sobre a verdade, a justiça, a honradez, a sinceridade e a transparência, não é bondade, mas hipocrisia. Quando desaparece a bondade como conduta libertadora e solidária, então se congela a convivência e a desumanização revela suas consequências trágicas.
Não se prega a bondade, nem se ensina, nem se impõe. A bondade flui, contagia. Quem é bondoso(a), cria um clima e um ambiente de bondade. E isso muda a vida, a de si mesmo e a dos demais. Ser sempre bondoso(a), reconhecendo os próprios limites e as próprias contradições. Só assim poderemos viver melhor, passe ou não passe por crises. E nos sentiremos melhores.
O seguidor ou seguidora de Jesus vive sempre orientado(a) e guiado(a) pela mais desconcertante bondade. Porque, de fato, a bondade é a que mais nos assusta e nos desconcerta. Esta é a experiência que devemos buscar e expressar como atitude permanente, onde cada um(a) busca, no mais profundo de si mesmo, a bondade infinita que ali se aninha.
Só a bondade como atributo divino nos capacita para “amar o inimigo”. E o amor ao inimigo é a única garantia de que está em nós o amor e a bondade de Deus; a falta de amor para com um só dos seres humanos é a certeza de que nosso Amor (ágape) é vazio; se ainda se esconde um resquício de ódio a uma só pessoa, então é evidente que estamos no lado oposto do evangelho. Tudo o mais, sem esse amor ao inimigo, é egoís-mo camuflado, e nossa vida espiritual será uma farsa. Tudo o que normalmente chamamos amor não passa de ser apenas instinto, paixão, interesse, amizade, que buscamos para potenciar o eu periférico, superficial.
Neste assunto, não serve para nada enganar-nos a nós mesmos.
Da mesma forma, só a bondade cristalina nos possibilita “bendizer”, ou seja, “dizer bem” das pessoas, dos acontecimentos, do cotidiano... Fazer da vida uma benção.
É “pensar e dizer” a cada pessoa: “Que bom que você existe!” É alegrar-se por ela: pelo mistério de sua vida e a beleza de suas capacidades; é dar graças por sua existência; é desejar-lhe todo bem.
A benção está intimamente unida à gratidão. Não é possível viver uma sem a outra. E, como diz um conto oriental, a gratidão é o melhor antídoto contra o desânimo. Ativar a gratidão, vivendo a partir deste sentimento tão nobre, nos põe em caminho para assumir a vida a partir de benção.
A benção pode ser vivida também no sofrimento, como também a gratidão. Não se agradece o mal, agradece-se a vida que nos permite enfrentar o mal. Ou, em termos de fé, não se dá graças a Deus pelo mal, mas porque, em meio ao mal, Ele está ao nosso lado, como nosso melhor amigo e aliado.
Segundo Jesus, a benção deve alcançar também àqueles que nos causam danos: “Bendizei aos que vos amaldiçoam”. Isto requer viver a partir de nosso eu profundo, iluminado e cristificado.
Outro modo de proceder que tem sua fonte na bondade é o do perdão. Vivemos em um contexto social e religioso que está em clara contradição com este princípio evangélico, ou seja, há um discurso do ódio que campeia pelas redes sociais e que não tem nada a ver com a orientação libertadora, igualitária e acolhedora do outro, das pessoas diferentes. A construção do discurso do ódio está possibilitando o nascimento de uma nova religião, a da morte. Ódio que se expressa nas atitudes petrificadas contra pessoas migrantes, refugiadas, deslocadas, LGBT+, negras, pobres... Não são reconhecidos seus valores, sua cultura, sua laboriosidade e, menos ainda, sua situação de marginalização social e discriminação cultural.
E o mais escandaloso é que tal discurso está sendo propa-gado por pessoas que se dizem seguidoras de Jesus. Quanta contradição!