A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 33º Domingo do Tempo Comum, ciclo C do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Lucas 21,5-19.
“Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra. Tudo será destruído” (Lc 21,6)
A mudança de mente, de coração, de esperança, de paradigmas... exige de nós que, de tempos em tempos, revisemos nossas vidas, conservando umas coisas, alterando outras, derrubando ideias fixas, convicções absolutas, modos fechados de viver... que impedem a entrada do sol e da brisa da manhã.
São muitas “pedras”, pessoais-sociais-religiosas, que criam muralhas e que precisam ser destruídas: ódio, intolerância, violência... Coração rígido que se visibiliza na petrificação das relações; rompe-se a cultura do encontro para alimentar a cultura da indiferença; trava-se a abertura ao novo para fechar-se no conservadorismo mais agressivo; bloqueia-se toda possibilidade de racionalidade para cair nas atitudes mais arcaicas e medievais...
Há em todo ser humano uma tendência a cercar-se de muros, a encastelar-se, a criar uma rede de proteção, a fechar-se em guetos. Nada mais contrário ao Seguimento de Jesus que a vida instalada e uma existência estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos, definitivos, tranquilizadores...
Numa vida assim faltaria por completo o princípio da criatividade, a capacidade de questionar-se, a audácia de arriscar, a coragem de fazer caminho aberto à aventura.
Se quisermos que a nossa vida cristã tenha a marca da adesão a Jesus, é necessário compreender que somos chamados a um compromisso diferente e mais profundo: sair da reclusão de nosso mundo para entrar na grande “casa” de Deus; romper com o tradicional para acolher a surpresa; deixar a “margem conhecida” para vislumbrar o “outro lado”; desnudar-nos de ilusões egocêntricas; afastar a “pedra” da entrada do coração para poder viver com mais criatividade...
As respostas do passado às questões atuais já não satisfazem; as velhas razões para fazer coisas novas, simplesmente já não movem os corações num mundo repleto de novos desafios.
Não há razão para permanecer nos castelos e templos quando todas as circunstâncias mudaram.
É muito tarde para reconstruir nossas vidas utilizando moldes antigos.
Estamos vivendo um tempo de mudança, mas também tempo emocionante e santo.
Há um poderoso fogo sob as cinzas. Precisamos avivar a chama, acolhendo o momento presente e vivê-lo até suas últimas consequências. “Este é o tempo de graça, o tempo de salvação”.
Vivemos um momento de densidade única; participamos de uma sociedade rica pela diversidade e pelo pluralismo. No entanto, não teremos nada que oferecer a ela se não nos deixarmos “empapar” pela experiência do discipulado. Com a vida cristificada seremos impulsionados a inventar constantemente, a ousar sem medo, a “deslocar-nos” sem cessar, na busca de um “novo começo” ...
A possibilidade de romper com hábitos que nos atrofiam ou com padrões conservadores que travam o fluir de nossas vidas é a marca do Evangelho deste domingo. A primeira atitude é reconhecer que nossa vida está “estreita”, cercada por pedras e muralhas, e que precisamos nos colocar num horizonte diferente. A lucidez do seguimento nos revela que a utopia de Jesus é possível. N’Ele acontece algo totalmente novo, é Ele que nos revela uma nova maneira de viver que não cabe nos nossos esquemas. O Seguimento é uma novidade que rompe velhos barris. “Vinho novo em odres novos”. Sentimentos novos em um coração ardente; visão nova em olhos ousados; razões inspiradas em uma mente aberta.
Para encontrar Jesus Cristo é preciso “sair”; é inútil permanecer nos “templos” e “bloqueados” nos guetos de fanáticos. É preciso caminhar em direção às “periferias existenciais”, o Grande Templo onde o Vivente se deixa encontrar; vivemos mergulhados na magia do discipulado; esta é a paixão que não nos dá repouso.
Mais uma vez, e evangelho deste domingo nos situa diante de Jesus, homem livre e transparente, que não se deixou “formatar” pelas estruturas sociais e religiosas desumanizadoras de seu tempo. Ele não quis purificar o Templo para reformulá-lo, mas quis destruí-lo para que pudesse surgir um santuário diferente, “não feito por mãos humanas”. As coisas que o ser humano “fabrica” são “ídolos”, algo que pode pôr-se e se põe a serviço do poder e do domínio de uns sobre os outros. Contra isso, o verdadeiro templo deve identificar-se com a humanidade reconciliada, que é o Reino de Deus.
Quem segue Jesus, aos poucos vai descobrindo que permanecem ainda muitos muros por derrubar; é preciso entrelaçar mãos que construam pontes de reconciliação e não de divisão; essas mesmas mãos que, em lugar de empunhar armas, devem pegar em martelos e malhos para derrubar as paredes do ódio e da intolerância.
Não esqueçamos esta dura realidade: também aqueles que constroem muralhas acabam se tornando vítimas de sua sandice; tornam-se prisioneiros das fortalezas que edificam, vítimas do próprio veneno da soberba e da crença de que são “donos” da verdade. Tudo isso é expressão de um coração petrificando.
Na vida, nem sempre é questão de construir. Também, às vezes, é preciso destruir. De fato, a vida e a mensagem de Jesus revelaram uma novidade de tal magnitude que gerou uma radical conflitividade com as estruturas desumanizadoras de seu tempo. Com a presença de Jesus, chega também para nós a “Boa Nova”, não precisamente para pôr remendos no tradicionalismo, moralismo e legalismo, mas para anunciar a possibilidade de uma nova maneira de viver, uma nova atitude que deixa transparecer as “beatitudes originais” e que habitam nosso coração: compaixão, mansidão, paz, busca da justiça, partilha...
Precisamos profetas que vão derrubando nossos muros de ignorância e de resistência à novidade do Espírito e que saibam apresentar respostas criativas aos problemas que a humanidade tanto padece.
Mais cedo ou mais tarde, a vida mesma se encarrega de derrubar muitos desses muros que nos impedem ver a realidade externa com mais claridade. Quando vemos tudo escuro, é sinal de que há algum muro que impede a entrada da luz do discernimento em nossas vidas.
“Constrói pontes em lugar de muralhas, e terás amigos”: pontes de diálogo humanizador, onde o outro possa ser respeitado na sua diversidade, no seu modo de pensar, de ser, de amar; também o outro diferente é possuidor de fragmentos da verdade que podem se integrar aos nossos e, assim, alimentar uma consciência mais plena e expansiva. Que busquemos viver a “cultura do encontro”, confiando no desafio da diversidade que nos enriquece!
É preciso estender pontes de reconciliação que nos permitam ter acesso aos lugares onde ninguém quer estar, para abraçar àqueles que são rejeitados e saborear juntos o mistério da comunhão e da acolhida; pontes que permitam apalpar, na dor solidária e na beleza dos “sacramentos de cada dia”, a presença carinhosa do Deus Pai/Mãe que sempre bendiz a humanidade inteira. No Seu coração a diversidade é aquecida e pacificada.
Viver o Seguimento de Jesus hoje é deixar expandir tudo o que é vida dentro de nós. É contaminar de Luz as trevas que criamos e que sufocam a alegria plantada em nós desde sempre.
Deixemo-nos iluminar, levemos a Luz nas nossas pobres e frágeis mãos, iluminando os recantos de nosso cotidiano. Destruídos os muros e afastadas as pedras… resta caminhar..