23 Outubro 2020
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 30º Domingo do Tempo Comum - Ciclo A, que corresponde ao texto de Mateus 22,34-40.
“Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração...”;
“amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22,37-39).
Segundo o teólogo Yves Congar “a essência do farisaísmo é absolutizar coisas secundárias”. E disso todos temos experiências: muitas vezes, a nossa vivência cristã está mais focada nos ritos, nas doutrinas, nas normas morais..., e isso acaba atrofiando aquilo que é mais decisivo no seguimento de Jesus Cristo.
Quando nos afastamos do essencial, facilmente nos desviamos para os caminhos da mediocridade piedosa, do ritualismo estéril ou da casuística moral, que não só nos incapacitam para uma relação sadia com Deus, mas nos esvaziam dos sentimentos mais humanos, desfigurando-nos e nos fechando no intimismo que rompe toda proximidade e comunhão com os outros. Todos corremos este risco.
A cena relatada pelo evangelho deste domingo tem, como pano de fundo, uma atmosfera religiosa na qual os mestres e letrados classificam centenas de normas da Lei divina em “fáceis” e “difíceis”, “graves” e “leves”, “pequenas” e “grandes”. Impossível mover-se com um coração sadio nesta “teia” de leis.
Diante da pergunta dos fariseus pelo maior mandamento da Lei, Jesus rompe com aquilo que eles tão bem tinham aprendido. Ele acolhe a pergunta que lhe fora feita e aproveita para recuperar o essencial, descobrir o “espírito perdido”: qual é o mandamento principal? onde está o núcleo de tudo?
A resposta de Jesus parte da experiência básica de Israel, onde o coração da fé é o amor: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento”.
O primeiro mandamento do decálogo bíblico, confirmado por Jesus, antes que imperativo, é revelação; antes que uma ordem, é uma proclamação. Não impõe a obrigação de amar a um “deus” separado, ciumento de sua honra, que se assemelharia a um soberano narcisista e vaidoso. Uma tal caricatura de “deus”, fruto da projeção humana e condicionada por falsas imagens míticas, se torna claramente blasfema. É um dos “deuses” que precisamos “deletar”.
O “primeiro mandamento” revela algo fundamental, do qual a Bíblia irá tomando consciência progressivamente, até chegar a proclamar com intensidade: “Deus é Amor” (1Jo 4,8). Deus, na sua essência, é puro Amor. Daqui se derivam, como em cascata, toda uma torrente de consequências.
Crer é uma questão de amor, e isso significa que, antes de qualquer outra coisa, o fiel se percebe, em seu núcleo mais íntimo, ser e proceder do Amor. Aquele “em quem vivemos, nos movemos e existimos” (Atos 17,28) é Amor. A fé é, antes de mais nada, experiência de ser amado, que leva a deixar-se alcançar e impregnar mais e mais por esse dinamismo do amor, para descansar nele e possibilitar que ele flua e circule, compassiva e eficazmente, para os outros. Portanto, o essencial da vida é o amor.
O que define o cristão não é dizer “Senhor, Senhor”, mas viver a prática compassiva do “vá e faça o mesmo”. Essa é a razão, também, pela qual a vida e a mensagem de Jesus se condensam na prática do amor.
O amor (ágape) que Deus tem pelo ser humano é totalmente desinteressado, gratuito e livre. Deus envolve a vida de cada um, banhando-a toda de seu amor. O amor nasce em Deus como um rio imenso que envolve o ser humano, iluminando e transformando sua existência; este não se encontra submetido a uma espécie de exigência tirânica, obrigado a cumprir, no limite de suas forças, alguns mandatos alheios a seu ser. O que lhe é pedido consiste, justamente, no que previamente é oferecido a ele: ele é chamado a ser livre e capaz de corresponder ao amor.
Não é o ser humano que é amável; é Deus que é amor. Esse amor é absolutamente primeiro, ativo e criativo, absolutamente livre: não é determinado pelo valor de quem Ele ama. Todo ser humano encontra-se, assim, envolvido pelo amor criativo e providente de Deus.
Esse amor, ativo e primeiro, suscita na pessoa a gratidão, levando-a a corresponder com um amor-serviço. A paixão por Deus implica compaixão pelo ser humano.
Talvez, o que não tem sido totalmente compreendido é que não são dois mandamentos, mas um só: uma mesma realidade, um mesmo amor e um só mandamento. Aliás, se damos um passo mais além, não precisa existir mandamento algum quando há verdadeiro amor.
O amor é raiz e fruto do coração. S. Irineu convida a nos deixar fazer, a permitir que o amor brote do mais profundo de nós mesmos, a ser homens e mulheres unificados e centrados em Deus.
Característica desse amor: voltado para o serviço; o amor sempre se faz serviço, assim como todo serviço é inspirado e sustentado pelo amor. Trata-se da mística do “serviço por puro amor”.
Sabemos que o amor é uma das palavras mais desgastadas e, no entanto, continua sendo a palavra fundante e mais importante do vocabulário humano; mais importante que a palavra fé. Segundo Mateus, os que se salvam não são aqueles que creram, mas aqueles que amaram (Mt 25). “No entardecer da vida seremos examinados sobre o amor”, dizia S. João da Cruz.
Criados à imagem e semelhança do Deus Amor, trazemos este mesmo amor gravado nas profundezas do nosso ser. Podemos dizer que o selo mais profundo na pessoa é o “selo do amor”. Logo, o que precisamos é ativar esse selo interior do coração que carrega os estigmas do amor. O coração de toda pessoa traz esta tatuagem de amor nas profundezas de seu ser. Mas, é necessário reativá-lo, atualizá-lo... ajudar cada pessoa a configurar-se como tal, pois cada um chega à maturidade de si mesmo quando compreende que, vivendo esse amor, que leva gravado em seu coração, realiza o amor.
O amor evoca energia, atitude, sentimentos positivos, proximidade, solidariedade, compaixão, empatia, amizade, erotismo... O amor tem muitos registros e, por isso, também muitas linguagens que vão configurando atitudes, hábitos do coração: surpresa, louvor, respeito, ação de graças, união, serviço...
O amor não é algo abstrato, uma palavra oca, gasta de tanto ser usada, mas algo pertencente à atitude relacional, à experiência, à comunicação, às atitudes, aos gestos, aos atos e às palavras. Quando o experimentamos, sabemos de seu dinamismo em nossas vidas e direção em nossas condutas.
O amor em nossa vida, portanto, é um dom e uma missão. Como dom, é fruto da árvore que cresce em nossa natureza como possibilidade que quer ser atualizada (a maçã é a linguagem amorosa da macieira).
Como missão, o amor é aprendizagem, internalização, maturação e crescimento. A arte de amar é o cume de um processo que flui, dando à pessoa uma das características mais essenciais de sua maturidade.
O amor não é uma lei que se impõe de fora, mas uma resposta pessoal Àquele que é em nós. “Um amor que responde a seu amor”. O amor é “mandamento” porque “emana” de dentro, brota da dimensão mais profunda do nosso ser, morada do Deus Amor. Amar é deixar Deus amar em nós.
Pois o Deus que vem ao nosso encontro é amor sem medida e não nosso rival; se o cristianismo tem um sentido – viver o amor - este consiste em tornar mais leve o peso da nossa existência.
Faça uma leitura das “marcas” do Amor de Deus em sua vida; crie um clima de ação de graças.
- Peça a graça de descobrir profundamente o amor em sua vida. Imagine-se com um cantil ou uma lamparina de azeite percorrendo os caminhos de sua vida, de sua biografia. Ilumina-os, des-velando o amor plantado nos rincões de sua existência: no mais profundo e na superfície de sua história. Pessoas, experiências, circunstâncias, gestos ... Olhe o detalhe, mas também o conjunto de sua existência: você está vivo(a); foi e é amado(a), permanentemente.
- Tome consciência que o Senhor, ao lhe criar, colocou em seu peito um coração capaz de amar. Que você faz com esse amor, semeado em seu interior?
Peça-lhe que sua presença e seu ser lhe permitam amar mais e melhor. Expanda seu coração: você foi feito para amar. Acolha o amor que recebe e no qual acredita, maior do que você possa pensar, e torne-se canal do amor para os outros, para você mesmo, para Deus.
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No amor, nada é obrigação, tudo é dom! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU