Por: MpvM | 23 Outubro 2020
"Deixemos que a luz da Palavra de Deus deste domingo ilumine as leis que regem o capitalismo, a economia de mercado deste nosso tempo. O capital, o lucro é um deus que se alimenta com o sangue e sofrimento dos trabalhadores, das viúvas, dos órfãos, dos endividados, dos pobres, dos migrantes."
A reflexão é de Maria do Carmo de Oliveira, leiga. Ela possui licenciatura em língua e literatura portuguesa pela UNB (1975-1979) e pós-graduação em Planejamento Educacional pela Universidade Salgado de Oliveira (1994); é bacharel em Teologia, com especialização em Bíblia pela Universidade Metodista de SP (1989); é assessora do CEBI e membro da Rede Celebra, com pós-graduação em Liturgia pelo Instituto de Filosofia e Teologia de Goiás IFITEG/GO.
1ª Leitura - Ex 22,20-26
Salmo - Sl 17,2-3a. 3bc-4. 47.51ab (R. 2)
2ª Leitura - 1Ts 1,5c-10
Evangelho - Mt 22,34-40
Estamos chegando ao final do ano litúrgico. Este ano foi marcado por experiências imprevistas que exigiram mudanças conflitivas em nossa convivência diária, familiar, comunitária, social, econômica e política. Neste clima chegamos ao trigésimo domingo do tempo comum, tempo do discipulado, da caminhada diária no seguimento do Mestre Jesus.
No Evangelho de hoje (Mt 22,34-40) o texto da comunidade de Mateus é uma narrativa de conflito, que se encontra também em Mc 12,28-34 e Lc 10,25-28. Jesus está em Jerusalém, após sua entrada na cidade, aclamado como filho de Davi e profeta. Seus adversários armam mais uma cilada, desta vez sobre a Lei. A intenção das lideranças injustas representadas pelos fariseus, saduceus, anciãos e doutores da Lei era testar o conhecimento e a ortodoxia de Jesus na interpretação da Lei, e assim provocar sua autocondenação para acusá-lo publicamente. A elite injusta da época forma um complô político-religioso para eliminar Jesus de Nazaré. Uma elite abastada e corrupta que usa o nome de Deus para condenar e matar o próprio Filho de Deus. Ao perguntar a Jesus qual é o maior mandamento da Lei, os doutores da lei procuram demonstrar que Jesus não sabe interpretar as Leis do Pentateuco e que, portanto, não é digno de crédito.
Jesus, exercendo seu profetismo, desmascara e denuncia a hipocrisia, o fundamentalismo dos fariseus e escribas na interpretação da Lei de Deus. A tradição da sinagoga contava 613 preceitos da lei: 365 proibições e 248 mandamentos para serem cumpridos. Atribuíam a todos preceitos igual peso e importância. Era necessário conhecer e praticar todos eles. Em caso de conflito entre uma e outra lei, era preciso saber estabelecer qual lei era a mais importante, a maior de todas.
Nosso Mestre, Jesus de Nazaré, como Filho amado do Pai, simplifica e concentra toda Lei no amor a Deus e ao próximo, unindo os textos de Deuteronômio e Levítico que falam do que é fundamental: “Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com todo o teu ser, com todas as tuas forças”, diz o Dt 6,5; e Levítico 19,18, completa: “Não te vingarás nem guardarás rancor em relação aos filhos do teu povo: É assim que amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor”. Esses mandamentos podem ser comparados à dobradiça que segura a porta da Lei. Sem eles as outras leis ficam vazias. São duas faces da mesma moeda. O amor a Deus e ao próximo formam o cerne dos mandamentos. Não se consegue amar verdadeiramente a Deus, sem amar os irmãos e irmãs. Do equilíbrio dessas duas dimensões do AMOR é que depende o sentido mais profundo das Sagradas Escrituras, ou seja, da Lei e os Profetas. “Amarás o Senhor teu Deus, amarás o teu próximo” - “Desses dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas”. O amor não é apenas a síntese ou o resumo das Escrituras, mas é a sua própria interpretação. Jesus é Mestre da justiça e deixa claro que saber toda a Lei, citar frases da Bíblia, abusar do nome de Deus ou das religiões, não significa amor ao Senhor, nem amor e respeito ao próximo. Pelo contrário, é uma ofensa ao Senhor Eterno que nos prescreve em Êxodo 20, 7: “Não pronunciarás em falso o nome do Senhor teu Deus. Porque o Senhor não deixará impune quem pronunciar seu nome em falso.” Pior ainda, quem usa a Palavra do Senhor para oprimir, explorar, desprezar os pobres e trabalhadores, como fez o diabo ao tentar Jesus; quem promove a fabricação e o uso de armas por parte dos que são chamados de gente de bem. Não podem pronunciar impunemente do nome do Senhor.
Em Jesus Cristo o amor a Deus Pai e o amor ao povo se tornam seu modo de viver; Ele ouve e ensina a vontade do Pai cumprindo-a com fidelidade e amor filial. “Amar a Deus” é, na perspectiva de Jesus, estar atento, ouvir e concretizar na vida, a Lei de Deus, que é misericórdia com os que sofrem. Jesus faz da vida uma entrega de amor a todos os irmãos e irmãs, até ao dom total de si mesmo. Trata-se de um amor sem limites, sem medidas e que não faz distinção entre bons e maus, amigo/as e inimigo/as.
A primeira leitura (Êx 22,20-26) é um texto que incorpora o Código da Aliança (Ex 19-23). Os hebreus haviam saído do Egito, “casa da escravidão” e estavam acampados, após a Aliança com Deus no Sinai. É uma coleção de leis, de mandamentos que foram elaborados numa tentativa de organização da vida e convivência de acordo com o projeto de Deus e que não aceita um sistema de dominação e opressão como no Egito. São leis de liberdade que garantem a vida para todos, especialmente para os mais desprotegidos: viúvas, órfãos, migrantes, estrangeiros, endividados, pobres.
O Deus de Israel ouve o clamor dos oprimido/as, não aceita a opressão e é defensor dos fracos, pobres e indefeso/as. Quem é pobre não tem condição de negociar com quem lhe empresta alguma coisa para sua sobrevivência. Quem receber uma manta, uma capa como garantia, como fiança da dívida, deve devolve-la antes do anoitecer, para quem é pobre não durma ao relento. Depois dos Dez Mandamentos, este texto traz regras concretas para viver o amor ao próximo, não exigindo juros de um dinheiro emprestado a uma pessoa pobre.
Deixemos que a luz da Palavra de Deus deste domingo ilumine as leis que regem o capitalismo, a economia de mercado deste nosso tempo. O capital, o lucro é um deus que se alimenta com o sangue e sofrimento dos trabalhadores, das viúvas, dos órfãos, dos endividados, dos pobres, dos migrantes. Conforme o texto do Êxodo, se os oprimidos clamarem a Deus, Deus os ouvirá, porque é misericordioso. Deus se oferece como protetor pessoal dos desvalidos e atenderá sua reclamação quando gritarem a Ele. Deus educa muito bem o seu povo, para nunca mais se submeter à escravidão dos faraós do presente e do futuro. A recordação da história vivida, a sabedoria de guardar a memória da resistência assumida no Egito, o fato de terem sido migrantes e estrangeiros em terra estranha e adversa, ensina a ter no presente, atitudes de acolhimento e respeito aos pobres e oprimidos.
Hoje rezamos o Salmo 17, desejando que se faça justiça, numa sociedade repleta de impunidades, necessitada de luzes e forças na luta por justiça, direitos humanos e cidadania.
Na segunda leitura (1Ts 1,5c-10), o apóstolo Paulo não demostra preocupação doutrinal, mas quer manifestar a intensidade de seu afeto e de sua alegria pelas boas notícias recebidas. A comunidade, ainda jovem, está no bom caminho de Cristo. O nascimento desta comunidade cristã aconteceu num ambiente de alegria e de júbilo, apesar da hostilidade provocada pela oposição dos judeus e pela tensão entre os cristãos e as autoridades da cidade. A alegria e o sofrimento fazem parte do dinamismo do Evangelho. Nesta carta temos o exemplo de uma comunidade cristã que, apesar da perseguição, aprendeu a percorrer o caminho do amor e do dom da vida; e essa caminhada cumprida na alegria e na dor, tornou-se semente de fé e de amor, que deu frutos em outras comunidades cristãs do mundo.
Hoje podemos nos perguntar: O que é “amar a Deus”? De acordo com o exemplo e o testemunho de Jesus, o amor a Deus passa antes pela escuta da sua Palavra, pelo acolhimento das suas propostas e mandamentos; pela obediência total ao seu projeto. Passa pelo amor e respeito aos marginalizados e desprezados pela elite social e política. Para chegar ao amor verdadeiro a Deus é preciso passar pela porta estreita do amor ao povo. O que é “amar os irmãos”? O amor ao próximo é a consequência do primeiro amor. É ser o canal do amor de Deus e de sua misericórdia que transborda de nosso coração, irradiando a presença amorosa do Senhor em meio à humanidade sofredora e em todos os seres de nossa casa comum. Amar o próximo é não queimar terra, plantas e animais; é cuidar das nascentes. Amar a Deus é ser capaz de amar todos os seres criados pelo Senhor e não apenas os humanos. E quando não amamos nem nossos semelhantes?
Concluindo vamos deixar que as palavras do nosso querido Papa Francisco, em sua “Carta Encíclica FRATELLI TUTTI sobre a Fraternidade e a Amizade Social”, penetrem em nosso coração. Neste tempo que nos preparamos para escolher prefeito/as e vereadores/as, encontremos tempo para meditarmos e estarmos alertas à fraternidade e amizade social e ecológica. José de Souza Martins analisa a carta do Papa: “O grande conflito da sociedade está inteiramente exposto na Encíclica”. Segundo ele, o novo documento papal “fala pelos milhões que foram calados” e “é uma proclamação de resistência e de insurgência moral e espiritual contra a construção política de uma sociedade à imagem e semelhança da mercadoria e do dinheiro, a dos seres humanos coisificados e privados da consciência de que a sociedade é obra histórica comum dos seres humanos”.
“Não devemos perder a capacidade de escuta». S. Francisco de Assis «escutou a voz de Deus, escutou a voz dos pobres, escutou a voz do enfermo, escutou a voz da natureza. E transformou tudo isso num estilo de vida. Desejo que a semente de S. Francisco cresça em tantos corações». “Em nome dos órfãos, das viúvas, dos refugiados e dos exilados das suas casas e dos seus países; de todas as vítimas das guerras, das perseguições e das injustiças; dos fracos, de quantos vivem no medo, dos prisioneiros de guerra e dos torturados em qualquer parte do mundo, sem distinção alguma. Adotemos a cultura do diálogo como caminho; a colaboração comum como conduta; o conhecimento mútuo como método e critério”.
Senhor e Pai da humanidade,
que criastes todos os seres humanos com a mesma dignidade,
infundi nos nossos corações um espírito fraterno.
Inspirai-nos o sonho de um novo encontro, de diálogo, de justiça e de paz.
Estimulai-nos a criar sociedades mais sadias e um mundo mais digno,
sem fome, sem pobreza, sem violência, sem guerras.
Que o nosso coração se abra a todos os povos e nações da terra,
para reconhecer o bem e a beleza que semeastes em cada um deles,
para estabelecer laços de unidade, de projetos comuns, de esperanças compartilhadas. Amém.
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30º domingo do tempo comum – Ano A – O maior mandamento - Instituto Humanitas Unisinos - IHU