30 Agosto 2019
De toda a Bíblia, o Antigo e o Novo Testamento reunidos, podemos concluir que Deus é «o Todo Poderoso» e o «Altíssimo». Mas estes atributos incontornáveis não dizem tudo a respeito deste Deus revelado no Livro. Porque Deus é humilde, escondido, discreto, e só os humildes podem descobri-Lo. "Na medida em que fores grande, deverás praticar a humildade": a advertência de Ben Sirac faz eco à observação de Jesus sobre os convidados que escolheram o primeiro lugar. E encontra a sua realização em cada Eucaristia, na qual Jesus, "o mediador de uma nova aliança", torna-se o nosso alimento, o pão e o vinho que fazem de nós o seu Corpo.
A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando o evangelho do 22º Domingo do Tempo Comum - Ciclo C (01 de setembro de 2019). A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
Referências bíblicas
1ª leitura: “Pratica a humildade e assim encontrarás graça diante do Senhor” (Eclesiástico 3,19-210.30-31).
Salmo: Sl. 67(68) - R/ Com carinho preparastes uma mesa para o pobre.
2ª leitura: “Vós vos aproximastes do monte Sião e da cidade do Deus vivo” (Hebreus 12,18-19.22-24).
Evangelho: “Quem se eleva será humilhado e quem se humilha será elevado” (Lucas 14,1.7-14).
A cena evocada pela parábola do evangelho de hoje tem pouca chance de acontecer na atualidade. E nos tempos de Jesus? Não é tão certo. Mas pouco importa, o essencial não está aí. Jesus estranhamente nos convida a infringir a justiça e a lógica, pois, afinal, não é normal que o convidado vá tomar o último lugar, se seu anfitrião julga que deva «vir mais para cima». Foram os homens que impuseram a injustiça no mundo. Iria Deus então, autoritariamente, restabelecer a ordem? De maneira alguma! Ao contrário, irá entrar na injustiça humana e nela se tornar injusto. De fato, se Deus se ativesse à justiça, todos estaríamos condenados. A injustiça de Deus chama-se perdão: um perdão sem razão, injustificado.
Por isso o Filho, que logicamente deveria ocupar o primeiro lugar, veio ocupar o último. E outra vez é preciso lembrar Filipenses 2,5-11: «Ele, sendo de condição divina, não quis fazer valer a sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo». Por isso, continua o texto, “Deus lhe deu o nome que está acima de todo nome”, o Nome divino, impronunciável.
Notemos que esta passagem da carta aos Filipenses está construída conforme um esquema absolutamente idêntico ao da parábola de hoje. A injustiça dos homens vai conduzi-los à crucifixão de Jesus; a injustiça de Deus vai consistir em vir Ele mesmo, em seu Filho, tomar este lugar que para Ele foi escolhido pela injustiça humana.
O primeiro lugar? Mas o que se esconde por trás da busca do primeiro lugar? A primeira leitura nos responde: é o orgulho. E o que é o orgulho? Em muitas obras literárias, o orgulho é louvado como uma virtude. Ora, de fato, o orgulho é o resultado de um processo mental para esconjurar o medo primordial de estar em falta, de não ser suficiente, de não se ter bastante consistência.
O orgulho é um falso remédio para o medo, sendo a fé o remédio verdadeiro. O orgulho nos dá a ilusão de que valemos por nós mesmos, enquanto a fé faz com que contemos com o outro, com os outros. O orgulho nos isola, enquanto a fé nos religa. O orgulho nos faz acreditar que o nosso valor supera o valor de todos os outros (o primeiro lugar), que tudo o que não conhecemos, ou que conhecemos mal, seja desprezível. O orgulhoso tem sempre razão.
Para o orgulhoso, de alguma forma os outros todos são vassalos. Sim, encontramos tudo isso em nossas leituras, mas a última frase do texto de Sirac pode nos desconcertar: «O ouvido que o escuta é o sonho do sábio.» É que, ao contrário do sábio, o orgulhoso encontra tudo em si mesmo, acredita encontrar tudo em si mesmo.
Já o sábio sabe que tem necessidade do outro, do diferente, e deixa-se instruir, deixa-se modificar pela palavra do outro. Estamos longe de uma lição de moral sobre o orgulho e a humildade; trata-se, na verdade, de existir ou de ser cegado pelo erro. Maior é aquele que escuta.
O orgulhoso já tem sua recompensa: é ele mesmo, em seu valor. Ora, como poderá alguém perder de vista que estamos destinados à morte, e que somente em certo Outro muito bem determinado é que poderemos encontrar a nossa permanência?
Tomemos a palavra recompensa no sentido de compensação, de restabelecimento de uma equidade perdida. É evidente que o primeiro que se faz o último, o senhor que se põe na condição de escravo, coloca no mundo uma «injustiça». A balança, cujos pratos deveriam estar equilibrados, passa então a pender mais para um lado. A conduta daquele que, à imagem do Cristo, se põe na situação de quem serve, cria um desequilíbrio que deve ser compensado, para que tudo encontre seu justo lugar. É um vazio que deve ser preenchido, assim como será preenchido o vazio que precede, se assim podemos dizer, a criação.Deus irá compensar, re-compensar, a lacuna que foi aberta por quem não quis tomar para si tudo aquilo a que tinha direito. É o que acontece com o convidado que se põe no último lugar.
Este tema encontra-se longamente desenvolvido no Sermão da Montanha, em Mateus 6,1-18. Os que dão esmola, que rezam ou que jejuam para se fazerem admirar já obtiveram a admiração desejada: têm já a sua compensação. Mas, ao contrário, aqueles que agem em segredo diante de Deus e dos outros, estes criam um desequilíbrio. Será o Pai que os compensará. E assim estará restabelecida a justiça. Mas, para isso, como já dissemos, será preciso que o Pai se submeta à nossa injustiça. Imitemo-Lo.
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A humildade que Deus tanto ama… - Instituto Humanitas Unisinos - IHU