23 Março 2018
Jesus não ia com frequência a Jerusalém. Mas foi lá que cumpriu o gesto mais importante da sua carreira profética. Aclamado e rejeitado pelo povo, vítima de um processo dos mais injustos, deu a sua vida por amor ao seu Pai e ao mundo.
A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando as leituras do Domingo de Ramos do Ciclo B. A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
Procissão dos Ramos
Evangelho: “Bendito o que vem em nome do Senhor” (Marcos 11,1-10)
Missa da Paixão
1ª leitura: “Não desviei o rosto dos bofetões e cusparadas; (...) sei que não sairei humilhado” (Isaías 50,4-7).
Salmo: Sl. 21(22) - R/ Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?
2ª leitura: “Humilhou-se a si mesmo (...), por isso Deus o exaltou” (Filipenses 2,6-11).
Evangelho: Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo (Marcos 14,1-15,47)
Vem montado num jumento, animal que nada tem a ver com montaria real. Jumento, aliás, é besta de carga, não montaria de combate. E este sequer lhe pertencia, tanto que prometeu mandá-lo de volta. Mateus, como de hábito, não esqueceu de sublinhar que Jesus fez tudo isso para cumprir as Escrituras. Isaías insiste de fato na humildade com que entra o rei em Jerusalém: não veio para governar, mas para servir. A «multidão» que o acompanha, claro, está totalmente equivocada: aclama um libertador político, enquanto deveria pôr sua fé num Cristo crucificado. Não se trata aí de tirar vidas, mas de dar a própria vida. Dali em diante, todo ser humano viverá dele, da sua carne e do seu sangue, entregue em nossas mãos. O Todo poderoso usa a sua onipotência para fazer-Se Todo fragilidade. E eis-nos aqui, da mesma forma que em Gênesis 2 (comentado em Deuteronômio 30,15-19), livres para escolher entre o melhor e o pior, entre a vida e a morte. Isto que aconteceu com Jesus, no decurso da Paixão, reproduz-se em cada uma das nossas escolhas, mesmo podendo variar a importância de cada uma das nossas decisões. Jesus, na Cruz, nos ensina que Deus não se defende. Deixa-Se devorar. E esta vida devorada é finalmente o que nos torna vivos: «Onde avultou o pecado, o amor superabundou» (Romanos 5,20). A Cruz, que surpreende e até mesmo escandaliza muita gente, é a mais absoluta expressão do amor: Deus nos deixa tomar tudo o que Ele tem e tudo o que Ele é. Jesus aceitou com toda a liberdade viver o que muitos humanos por todo o mundo têm de sofrer a contra gosto. E a todos estes, pela Cruz, Ele os reúne, esposa-os e os habita. Não podemos esquecer, contudo, que o Cristo faz tudo isso para assegurar o triunfo da vida até mesmo ali onde a morte se impõe.
Por toda parte e em todos os tempos, os homens levantam cruzes para os seus semelhantes das formas as mais variadas. Populações inteiras são levadas a passar fome, para produzirem riquezas e dinheiro; povos inteiros são condenados à incultura e à miséria; verdadeiros massacres se organizam, para que se tome ou se conserve o poder. Incontáveis são os modos que temos de crucificar os outros. «Devoram meu povo, como se comessem pão» (Salmo 14,4). E o Cristo, com toda a sua liberdade, veio reunir-se a estes que se fazem comer. Não quis Deus deixar-nos sozinhos, sem Ele, em nossas provações; fez deste, então, o caminho da vida. Isto nós sabemos, mas não nos pode servir de consolo. Jesus mesmo não foi consolado; nem ele, de quem ouvimos: «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?» Cristo, portanto, veio fazer-se um só conosco, até mesmo nos nossos maiores sofrimentos, e, finalmente, teve uma morte ignominiosa. Daí que todas as nossas misérias e todas as nossas mortes se juntam à sua, tornando-se sofrimento e morte do Filho de Deus. É por isso precisamente que Deus não pode permanecer na morte sem que se abram então para nós as portas da vida. A fé cristã foi acusada com frequência, às vezes com razão, de colocar no primeiro plano o culto ao sofrimento e à morte. Mas é o contrário: nós proclamamos ao mundo inteiro que os sofrimentos e a morte estão por fim condenados a produzirem vida, tal como o nascimento e as alegrias que nos vêm visitar. A cruz de Cristo afixa que o amor supera o ódio; exatamente o que Cristo faz, ao dar sua vida aos que dele querem tirá-la. Ordenando ao discípulo, que havia tirado a espada para defendê-lo, no momento da sua prisão, para guardá-la na bainha, ele nos ensina que resistir à violência pela violência só faz redobrar a violência.
Por que sinto este reflexo de recuo dentro de mim, no momento mesmo de abordar a redação deste comentário sobre a Paixão de Cristo? Porque, sem dúvida, é preciso superar todo o folclore, para podermos olhar de frente este espetáculo de horror. A Cruz? Ora, fizemos dela joias, obras de arte... Talvez, para domesticar e esconjurar o intolerável? E nos é dito que aí é que se revela a última verdade sobre Deus e sobre o homem! Como não querer virar a página e nos entregarmos a alguma atividade mais divertida? Estamos aqui bem longe do entusiasmo da multidão, quando da acolhida de Jesus em Jerusalém! Multidão inconsciente, que aclama um homem que, pensava ela, iria tomar o poder e restaurar a realeza de Davi. E são as mesmas pessoas que, dias depois, gritarão decepcionadas: «Crucifica-o»? Ou será que estamos assistindo à reedição daqueles arcaicos rituais que prescreviam regalar a vítima antes da sua execução? E têm razão, no entanto: a entrada de Jesus na cidade que mata os profetas (Mateus 23,37) inaugura a sua glorificação. Mas, desta glorificação, eles ignoram os caminhos. O que, também a nós, deixa-nos desconcertados. Por que o Cristo deve passar por aí? Se um dia devia morrer, por que não de uma morte serena, pacífica? Por que o horror de um sofrimento inútil? Sim, a Cruz é antes de tudo um escândalo, ou seja, uma pedra de tropeço, que pode nos fazer tropeçar...
Mas será que sabemos o que nos desorienta a ponto de nos fazer tropeçar, quando olhamos o Cristo crucificado? Primeiro, é o espetáculo do que chamamos de pecado. O pecado do homem, a negação do amor, é sempre uma variante do assassinato. Toda conduta que vai no sentido de diminuir ou de ignorar outra pessoa, toda recusa de perdão são eliminação de Cristo e do que ele nos traz. Negar e renegar o Cristo passa pela nossa recusa ao outro; o que pode ganhar formas aparentemente inócuas. Por exemplo; quando nos esquivamos, para não nos aborrecermos com os problemas do outro; quando nos fechamos aos modos de ver ou de viver dos outros. Deboche, desprezo, negligência… São inumeráveis as maneiras de expulsar o Cristo das nossas vidas! Tudo isso, e outros comportamentos bem piores, permanecem escondidos, mais ou menos voluntariamente esquecidos. Somos exímios na arte de colocar o Cristo e sua palavra entre parênteses. Eis que agora todas as nossas evasões (pensemos nos discípulos no decurso da Paixão) e todas as nossas malícias aparecem à luz do dia, levantadas no calvário. «Ele foi trespassado por causa das nossa transgressões, esmagado por causa das nossas iniquidades» (Isaías 53,5).
Não podemos dizer, portanto: «Eles crucificaram o Cristo», mas sim: «Eu crucifiquei o Cristo». Pois fomos nós que o eliminamos, não Deus. Aí é que encontramos outra causa do nosso mal estar diante da Cruz. Repete-se que Deus é Amor e, ao mesmo tempo, que ele foi quem quis a crucifixão. Estamos acostumados, ao menos os mais idosos, com o clichê da satisfação da justiça divina. Resumindo: os homens ofenderam a Deus. E Deus visto como soberano onipotente exige que a ofensa seja reparada. Ora, o homem, se é grande o bastante para produzir malfeitos que ofendem a Deus, é pequeno demais para repará-los. O Filho, então, vai se encarregar disto. Ou seja, Deus nos pede para perdoar, mas não é ele mesmo capaz de perdoar! É preciso que alguém pague a dívida, para que a justiça seja feita. É preciso que isto sangre! Assim, Deus é apresentado como responsável pela crucifixão. Com certeza, poderíamos apresentar alguns textos das Escrituras que parecem ir neste sentido, inclusive o «que se faça a tua vontade e não a minha». Mas, felizmente, outros textos inocentam Deus, em particular Atos 4,10: «Este Jesus que vocês crucificaram, Deus o ressuscitou» (ver também Atos 2,36 e 5,30). Conclusão: somos nós que levantamos as cruzes, no Meio-Oriente, na África, na América Latina, aqui no Brasil e por todo o mundo. E estas cruzes, o Cristo as assume todas. O amor unifica, para o melhor e para o pior. Deus quis vir conosco até no pior; mas é para daí conduzir-nos ao melhor. Por toda parte em que o homem possa ir, Deus virá encontrá-lo. Ele desce até aos nossos infernos, para arrancar-nos deles. Ei-lo aqui arrolado entre os malfeitores e as suas vítimas. Jamais, em lugar algum, estamos sós. Esta é a vontade de Deus, do Pai.
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Jerusalém, cidade das aclamações e das condenações - Instituto Humanitas Unisinos - IHU