13 Outubro 2012
A Palavra de Deus deve necessariamente ser reescrita, reinterpretada e atualizada hoje, em nossa história e nas novas realidades de nossas vidas. Senão, recusamos a Deus o direito à Palavra, que Ele só pode exercer através de nós, os crentes.
A reflexão é de Raymond Gravel, padre da arquidiocese de Quebec, Canadá, publicada no sítio Réflexions de Raymond Gravel, comentando as leituras do 28° Domingo do Tempo Comum - ciclo B (14 de outubro de 2012). A tradução é de Vanise Dresch.
Eis o texto.
Referências bíblicas:
1ª leitura: Sb 7,7-11
2ª leitura: Hb 4,12-13
Evangelho: Mc 10,17-30
Quanto mais nos engajamos na busca de Cristo, mais se particularizam as exigências do Reino: há duas semanas, era acolher o outro, o outro diferente; na semana passada, era a não exclusão do outro, quem quer que ele fosse; e nesta semana, é o nosso modo de ser para o outro, para seguir Cristo. Para ser, é preciso passar do ter e do fazer ao ser. Que isso significa?
Durante muito tempo e ainda hoje, são numerosos aqueles e aquelas que dizem que a primeira qualidade de um crente, de um cristão, se verifica pelo que ele faz ou tem; é o que chamamos de atitude farisaica, ou seja, são aquelas e aqueles que possuem as virtudes e as praticam: o jejum, a oração, a esmola caracterizam muitas vezes esses bons cristãos. Por outro lado, o que o evangelho quer não é ter ou fazer, e sim ser, mas isso exige muito. O exegeta francês Jean Debruynne escreve: “Um homem corre para Jesus e se põe de joelhos diante dele. Manifestamente, este homem quer agir bem ou mesmo fazer o que houver de melhor, mas ele está, justamente, no fazer. Fazer é ainda ter, ter feito, ter realizado, ter conseguido, ter resultados... enquanto o evangelho é ser. O evangelho não é para fazer. É para viver. Não se trata de colecionar os resultados, mas, ao contrário, de desapossar-se de todas as bagagens que carregamos conosco para sermos livres para seguir Jesus.”
Eis o próprio sentido daquele episódio do Evangelho que dizemos do jovem rapaz rico. Este Evangelho de Marcos possui três partes: 1. O encontro com o homem rico (vv. 17-22); 2. A conversa com os discípulos (vv. 23-27); e 3. A recompensa (vv. 28-30).
1. O encontro com o homem rico.
A história contada por Marcos quer levar o leitor cristão a ir além da Lei, a qual é simplesmente traduzida pelo fazer ou não fazer. Jesus disse: “Você conhece os mandamentos: não mate; não cometa adultério; não roube; não levante falso testemunho; não engane; honre seu pai e sua mãe” (Mc 10,19). Em relação à Lei com suas permissões e, sobretudo, suas proibições, o homem afirmou: “Mestre, desde jovem tenho observado todas essas coisas” (Mc 10,20). Em outras palavras, ele seguiu a Lei com todo o rigor, fez tudo o que um bom cristão deve fazer. Tanto é verdade que o evangelista acrescentou: “Jesus olhou para ele com amor” (Mc 10, 21 a).
Mas preste atenção! O amor é perigoso, exigente, contagioso, ele transforma, libera, interpela, é ilimitado: “Falta só uma coisa para você fazer: vá, venda tudo, dê o dinheiro aos pobres, e você terá um tesouro no céu. Depois venha e siga-me” (Mc 10, 21 b). Mas espere um instante: para ser cristão, é proibido possuir bens, ter talentos, deter poder, ser bem-sucedido, possuir diplomas e competências? Eu penso que não! O evangelho, afinal, não louva a pobreza; não faz dela uma virtude. O que São Marcos diz, por outro lado, é que é preciso ser livre para seguir Cristo. Podemos muito bem ser ricos, cheios de talentos, ter adquirido muitos diplomas e conhecimentos, exercer a autoridade em nossas funções. No entanto, precisamos ser capazes de nos liberar para amar verdadeiramente. Um homem rico e famoso afirmou: “Sou rico de bens dos quais sei prescindir”.
Todavia, a riqueza pode se tornar um obstáculo para amar, um impedimento para viver o evangelho e seguir Cristo. Não é à toa que o evangelista afirma que, diante do convite de Cristo, aquele homem virtuoso, bom crente, praticante da Lei ao pé da letra, “ficou abatido e foi embora cheio de tristeza, porque ele tinha muitas propriedades” (Mc 10, 22). Ele era incapaz de se liberar para amar, portanto, incapaz de seguir Cristo. Seguiu e vai continuar a seguir a Lei, mas é incapaz de seguir Cristo.
2. A conversa com os discípulos.
Essa história do homem rico dá a oportunidade ao Cristo do Evangelho de Marcos de dispensar um ensinamento sobre ser cristão e a exigência que disso decorre. Não é fácil ser cristão, diz o Evangelho, principalmente quando alguém possui muitas riquezas: o talento, o poder, o dinheiro, a competência, o conhecimento, etc. “Como é difícil para os ricos entrar no Reino de Deus!” (Mc 10, 23). Mas por quê? Simplesmente porque ser cristão exige o desapossamento de nós mesmos, a renúncia a nós mesmos. Quanto mais possuímos, mais difícil se torna nos separarmos do que temos. E é clara a imagem utilizada pelo evangelista para ilustrar tal dificuldade: “É mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!” (Mc, 10, 25). Marcos fez alusão à portinha que se encontrava nos edifícios. Uma portinha pela qual as pessoas passavam se curvando, mas os animais não conseguiam passar por ela. No entanto, não era impossível fazer com que um animal passasse por essa porta; bastava desvencilhá-lo de sua carga, desatrelá-lo e fazê-lo dobrar as patas. No fundo, a mensagem de Marcos consiste em afirmar que a mesma coisa vale para os ricos: eles devem desvencilhar-se de seus bens, libertar-se de suas riquezas, desapossar-se de si mesmos, dobrar as pernas, para viver o evangelho e seguir Cristo: “Para os homens isso é impossível, mas não para Deus. Para Deus tudo é possível” (Mc 10, 27).
3. A recompensa.
A observação de Pedro visou todos os cristãos do século I e aqueles de hoje que tiveram e que ainda têm de renunciar a muitas coisas para seguir Cristo. O evangelista explicou que tais renúncias são feitas por causa de Jesus, mas também por causa da Boa Notícia, e a Boa Notícia diz respeito a todos os cristãos de todos os tempos (Mc 10, 29)*. Infelizmente, a tradução francesa não faz jus ao texto grego. Na enumeração das renúncias, “ou” significa que não precisamos sacrificar ou abandonar tudo: «Une maison ou des frères ou des sœurs ou une mère ou un père ou des enfants ou une terre» (Mc 10,29)**, enquanto as recompensas são enumeradas no plural pela conjunção aditiva e, para significar a multiplicação das recompensas aqui e agora: «Des maisons et des frères et des sœurs et des mères et des enfants et des terres, avec des persécutions (referindo-se aos cristãos de Roma do fim do século I aos quais Marcos se dirige), et, dans le monde à venir, la vie éternelle» (Mc 10,30).
Em suma, abandona-se uma coisa e recebem-se muitas coisas, pois cresce a família cristã. Também, como Marcos é realista, ele sabe que a perseguição faz parte da condição de ser cristão em seu tempo.
Para concluir, a exigência de ser cristão pode ser facilitada pela Sabedoria que a primeira leitura de hoje personifica em Deus mesmo. Preferi-la ao ouro, à prata, à beleza e à saúde nos permite a superação de nós mesmos e nos guia pelo caminho da fé. Esta sabedoria é mais que a luz, porque o brilho dela nunca se apaga (Sb 7,10). E se a Palavra de Deus está viva, como diz a carta aos Hebreus, nossa segunda leitura de hoje, ela não pode estar encerrada ou petrificada num livro, por mais belo que este seja. A Palavra de Deus deve necessariamente ser reescrita, reinterpretada e atualizada hoje, em nossa história e nas novas realidades de nossas vidas. Senão, recusamos a Deus o direito à Palavra, que Ele só pode exercer através de nós, os crentes.
O exegeta francês Alain Marchadour afirmou: “A Palavra de Deus não é uma escritura morta, petrificada para sempre no passado em que foi pronunciada. A Palavra de Deus antecede cada um de nós e vem ao nosso encontro para estabelecer um diálogo, despertar o desejo, conduzir ao caminho da conversão... Esta Palavra revela nossas fragilidades, mas, ao mesmo tempo, traz com ela luz e força para nos fazer seguir adiante. Denuncia também as forças que pesam sobre nós, contestando-as e nos incentivando à conversão”.
* N.T.: Na tradução para o português, as renúncias são separadas por vírgulas, cf. Bíblia Sagrada. Edição Pastoral. Editora Paulus. “...casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos, campo” (MC 10, 29)
** N.T.: Na versão em português: “...casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, junto com perseguições. E, no mundo futuro, vai receber a vida eterna.” (Mc 10,30) cf. Bíblia Sagrada. Edição Pastoral. Editora Paulus.
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Livre para seguir a Cristo (Mc 10,17-30) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU