10 Setembro 2018
A escritora e colunista do L'Osservatore Romano: “Muitos sacerdotes estão convencidos de que a castidade é uma repressão que provoca neuroses e que, para curá-las, tudo é permitido". “Eu continuo feminista, mesmo trabalhando para o papa Francisco".
No portão de sua casa de férias, em Todi, está afixada uma plaqueta recebida de presente do diretor Pupi Avati: "Vocatus atque non vocatus Deus aderit". São as palavras do oráculo de Delfos - "Invocado ou não invocado Deus está presente" – que Carl Gustav Jung mandou esculpir na viga da porta de sua casa em Küsnacht, e que também aparece sobre o túmulo do psiquiatra suíço. Na vida de Lucetta Scaraffia, historiadora e escritora, Deus veio em um domingo de março. “Eu vi uma multidão reunida em frente de Santa Maria em Trastevere pelo regresso de um ícone de Nossa Senhora. Entrei. Ao ouvir o Akathistos bizantino, o antigo hino dedicado à Mãe do Altíssimo, fui invadida pela luz. Eu entendi que Ele estava ali". Apesar de não ser uma crente de 1965-1985, não se pode dizer que aquele tenha sido o primeiro encontro com Deus: aos 12 anos Scaraffia recitava dez Ave-Marias por dia não se tornar freira, e rezava a Jesus pela conversão da tia Angela, uma comunista que tinha sido amante de Gaetano Salvemini. Ex-ateia, ex-marxista, ex-movimento de 1968, hoje é a principal colunista editorial do Osservatore Romano e dirige o suplemento mensal Donne Chiesa Mondo. Sussurra-se que o Papa Francisco preste muita atenção às opiniões da estudiosa, muitas vezes reproduzidas no New York Times, Le Monde, Figaro, Libération. Elizabeth Barber, correspondente do New Yorker, passou uma semana em sua casa para poder compor seu retrato.
A entrevista é publicada por Corriere della Sera, 08-09-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
“La Croix” definiu-a como “la ‘feministe’du Vatican” [a feminista do Vaticano]. Você se reconhece?
Não creio que existam outras.
Você ainda é feminista?
Claro, especialmente frequentando a Igreja.
Luzes e sombras do feminismo?
Fez com que as mulheres se sentissem fortes. Subestimou a maternidade.
Quem a apresentou ao Vaticano?
O diretor do Osservatore Romano, Giovanni Maria Vian. Nós nos conhecíamos há quase trinta anos. Estávamos entre os poucos professores católicos da então faculdade de Letras della Sapienza.
Vian a contratou por decisão própria?
Seguiu uma indicação dada por Bento XVI em 2007, quando o nomeou: ‘Eu gostaria de mais assinaturas femininas’.
Quem vigia a ortodoxia do suplemento "Donne Chiesa Mondo"?
Eeeh.(Suspiro). Todos e ninguém. No Vaticano existem até mesmo alguns que fingem não lê-lo. Eu não consto no Anuário pontifício. Meu confessor, um jesuíta, me animou: ‘Melhor assim. Se fosse um cargo institucional, eles se apressariam em surrupiá-lo’.
Recebe algum salário, pelo menos?
Apenas pelos artigos que escrevo.
Mas como as mulheres são vistas dentro dos muros leoninos?
Elas não são vistas. Elas não existem.
Com as freiras reduzidas a empregadas para os padres?
Sim. Elas inclusive precisam defender suas casas generalícias dos bispos, que gostariam de tirá-las delas. Muitas vezes pedem para ser ajudadas por coirmãs a serviço de altos prelados. A igreja funciona por protetorados. Também se aplica aos sacerdotes.
Você é favorável ao sacerdócio feminino?
Não. A igualdade é revelada na diferença. E a única instituição que pode testemunhar isso é a Igreja, porque somos todos filhos de Deus e, portanto, todos iguais.
Fachada da Igreja de Santa Maria da Minerva, em Roma (Foto: Sonofgroucho - Wikimedia Commons)
Você se sente uma espécie de Joana d'Arc, como a retratou "Il Foglio"?
Santa Catarina de Sena | Foto: http://www.snpcultura.org
Eu prefiro Catarina de Sena. Em Roma, rezo em seu túmulo em Santa Maria della Minerva. Ajude-me, eu a imploro.
Você teve ocasião de se encontrar com o papa Bergoglio, alguma vez?
Eu não acho que seria correto falar sobre isso.
Mas eu acho que você precisa fazer isso.
Eu tinha lhe enviado a edição em espanhol do ensaio Dall’ultimo banco (No último banco, em tradução livre), que escrevi para a editora Marsilio. Um dia estava em um encontro da Congregação para a Doutrina da Fé. O celular tocou. Mandaram desligar, mas eu atendi assim mesmo. ‘Eu sou o Papa Francisco. Eu gostaria de agradecê-la pelo livro. Gostei muito’. Balbuciei: Santidade estou muito emocionada ... ‘Fique tranquila. Onde está agora?’ Eu expliquei onde estava. E ele respondeu: ‘Leve a todos os meus votos de bom trabalho e diga-lhes para comprar e ler o seu livro’.
Mas, realmente, no sínodo sobre a família, confinaram você ao último banco?
Isso mesmo. O último de umas trinta filas de bancos. Ao meu lado, alguns casais convidados pelo Vaticano. Pobres, com 12 filhos, felizes. Mas de que jeito? Não é assim na vida real! Eles levantavam os olhos para o céu ... Bons e fingidos. Casais treinados, com o marido no comando. Eu não suporto eles.
Por que a Amoris laetitia do Papa Francisco, resultante de dois sínodos sobre a família, levantou as dúvidas de quatro cardeais e de 45 estudiosos católicos?
Porque aplica a misericórdia à realidade. Brandir a moral como uma lei inflexível significa não levar em conta quanto sofrimento existe por trás dos divórcios e das separações. No sínodo, todos falavam exclusivamente de pais, mães e filhos. Não sabem que milhões de mulheres são obrigadas a criar seus filhos sozinhas.
Na exortação apostólica, Francisco denuncia a "rejeição ideológica das diferenças entre os sexos". O que você acha das teorias de gênero?
Acho que chegou o tempo profetizado por Gilbert Keith Chesterton: 'Espadas serão desembainhadas para demonstrar que as folhas são verdes no verão.’ A Igreja é obrigada a defender verdades lapalissadas.
Amor conjugal e amor homossexual em sua opinião são equivalentes?
Não. O segundo não prevê a procriação, senão envolvendo úteros e gametas, e interrompe a corrente entre as gerações.
Mas a Igreja não teria um problema não resolvido com a corporeidade?
Eu vejo a Igreja sufocada pela teologia, que a impede de conhecer a vida. Como pode falar sobre o corpo se ignora a outra metade do gênero humano?
Muitos pedófilos perfilam-se no clero?
Infelizmente. A Igreja nunca enfrentou a revolução sexual que se infiltrou dentro dela. Muitos sacerdotes estão convencidos de que a castidade é uma repressão que provoca neuroses e que, para curá-la, tudo é permitido.
Contra essa tendência, Francisco propõe a oração e o jejum. Não é pouco?
Leia bem a sua ‘Carta ao povo de Deus’. Também invoca ‘tolerância zero’ contra aqueles que cometem ou acobertam esses crimes.
Você escreveu que as denúncias da mídia ajudam a trazer luz sobre os abusos.
Chegamos a esse ponto. Lamento muito dizer isso, mas internamente não se consegue estancar o fenômeno.
As hierarquias acobertam os escândalos.
Mas também os laicos, intimidados, muitas vezes permanecem em silêncio, em vez de procurar a polícia.
O arcebispo Carlo Maria Viganò, ex-núncio apostólico em Washington, convidou Francisco a renunciar por ter acobertado desde 2013 os abusos sexuais de seminaristas feitos pelo cardeal Theodore McCarrick, que em julho o Papa destituiu do posto de cardeal.
Sinto uma profunda tristeza diante de eventos semelhantes e me pergunto por que monsenhor Viganò se dirigiu à imprensa somente depois de cinco anos.
Você tem a sensação de que o número de padres homossexuais seja alto?
Tenho, sim. Muitos se tornam padres por medo de se confrontarem com as mulheres.
Que direitos reconhece aos homossexuais?
Eu aceito as uniões civis, mas não os casamentos, as maternidades substitutas e as adoções.
Fiquei sabendo que um cardeal queria elaborar um documento do Vaticano sobre as roupas reduzidas das garotas de hoje.
É verdade. Estamos falando de um eminente jurista. Ele acreditava que a roupa deveria conotar a mulher católica.
Você também considera que circula uma excessiva nudez?
Mais do que qualquer outra coisa, fomos anestesiados pela pornografia soft dos anúncios publicitários.
Depois de 50 anos, a Humanae vitae de Paulo VI ainda faz sentido?
E como! A pílula prejudica a saúde. Tanto é assim que hoje as garotas preferem métodos naturais, sem saber que obedecem a uma encíclica papal.
Recorrem a isso inclusive antes de se casarem.
Os casais chegam aos cursos pré-matrimoniais já com filhos, há pouco a fazer. A Igreja não consegue convencer os jovens de suas boas razões. Na verdade, li a melhor explicação em um livro de Erri De Luca.
E qual seria?
A fidelidade conjugal exige treinamento. É algo um tanto esportivo, porém eficaz.
O ministro Lorenzo Fontana quer rediscutir a lei 194. Ele está equivocado?
Acredito que uma revisão depois de 40 anos seria oportuna. Mas a equação pecado igual a crime é anti-histórica. O aborto entrou nos códigos penais com Napoleão. E não por razões morais: pelo recrutamento obrigatório. À França serviam soldados.
Na Itália se chegará à eutanásia?
Eu temo que sim. É a consequência da obstinação terapêutica ditada pela medicina defensiva para evitar as denúncias apresentadas pelos familiares dos doentes.
E a Igreja se adaptaria a esse procedimento?
Nunca! Porém a alimentação artificial está errada, porque pode prolongar vidas sem esperança. Pelo contrário, a hidratação deve ser garantida para evitar o sofrimento.
Por que no "Osservatore" criticou transplantes de órgãos com coração batendo?
Eu não aceito os critérios de morte cerebral introduzidos há meio século pela Harvard Medical School, uma convenção médica que precisa ser reavaliada, que tem a ver com dinheiro. Todo mundo sabe que existe um mercado paralelo de órgãos. É correta uma prática que incentiva isso?
Você aceitaria morrer em vez de ser submetida a um transplante?
Sim. Mas por covardia: a vida dos transplantados, entupidos de fármacos imunossupressores contra a rejeição, é um inferno.
E se o órgão servisse a algum seu ente querido?
(Longo silêncio) Eu não sei responder.
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‘As mulheres para o Vaticano não existem. Pedofilia? A Igreja nunca enfrentou a revolução sexual’. Entrevista com Lucetta Scaraffia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU