31 Agosto 2018
“É oportuno abrir os olhos para a crise da Igreja: não é uma crise passageira, mas sim uma crise que, como dimensões e consequências, poderia encontrar um paralelo na corrupção da Igreja que levou à Reforma Protestante, cinco séculos atrás.”
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova Univesity, nos Estados Unidos, em artigo publicado por Famiglia Cristiana, 29-08-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O caso aberto pelo documento publicado entre 25 e 26 de agosto pelo ex-núncio Carlo Maria Viganò, com a ajuda de outros (nós conhecemos alguns nomes, outros ainda não), recém-começou. Ele vai se arrastar por muito tempo, em uma temporada de escândalos que é o segundo tempo da crise que eclodiu no início do século, entre o fim do pontificado de João Paulo II e o pontificado de Bento XVI.
Em comparação com a primeira fase do escândalo dos abusos, que explodiu em Boston em 2002, estamos em uma nova fase, nos Estados Unidos, mas não só, por diversos motivos: mas principalmente porque agora a crise é claramente global, uma crise em que todas as estradas agora levam a Roma e ao Vaticano.
Isso aconteceu no fim de semana passado, com o memorial Viganò. Esse documento é filho das ambições frustradas de carreira de um diplomata vaticano e de uma agenda ideológica do catolicismo anglófono (com algumas filiais europeias) de marca tradicionalista.
Essa agenda constitui a segunda grande diferença em comparação com 2002, quando o pontificado de João Paulo II (com o cardeal Ratzinger no ex-Santo Ofício) constituía uma contenção a essas alas que, apenas alguns anos antes, tinham escolhido o caminho do cisma formal de Marcel Lefebvre.
As acusações contra o Papa Francisco contidas no memorial Viganò são perfeitamente coerentes com a mentalidade sectária desse catolicismo anglófono tradicionalista; surpreende um pouco mais o fato de que quem lhes dá voz é um diplomata vaticano, que se presta a uma agenda subversiva da comunhão católica.
A mistura entre o escândalo dos abusos sexuais cometidos pelo clero e as “guerras culturais” entre catolicismo tradicionalista, de um lado, e progressista, de outro, de fato, estão pondo em risco a própria unidade da Igreja católica em um país como os Estados Unidos, que é o epicentro do escândalo, mas também um dos países mais importantes no catolicismo global hoje.
Ao contrário do que se podia legitimamente esperar, os bispos dos Estados Unidos não tomaram uma posição unitária em defesa de Francisco; alguns bispos chegaram até a se posicionar publicamente ao lado daquele Viganò que pedia a renúncia do papa. Isso nos diz que enfrentar e superar a crise dos abusos sexuais não tem mais a ver apenas com a possível santidade da Igreja, mas também com a sua unidade – ou com a possível ruptura da unidade.
O papa está claramente sob ataque por motivos que são outros em comparação com a emergência da questão dos abusos sexuais e que devem ser buscados na rejeição por parte do conservadorismo católico norte-americano da teologia e da visão de Igreja do papa argentino e jesuíta. A preocupação de Francisco evidentemente não é defender a si mesmo, mas sim a Igreja.
Nesse sentido, a escolha de não responder no avião às perguntas sobre o “memorial” do ex-núncio nos Estados Unidos revela em Francisco prudência e um sentido de responsabilidade que falta a muitos na Igreja hoje. No entanto, os fiéis e o complexo humano, particularmente nos Estados Unidos, esperam respostas a perguntas que o memorial Viganò levanta e que se referem a um período anterior à eleição do Papa Francisco: entre estas, como foi possível que um prelado do qual muitos conheciam os apetites sexuais às custas de seminaristas e de jovens padres, Theodore McCarrick, tornou-se bispo, depois cardeal de Washington, a capital dos Estados Unidos, e durante décadas uma das figuras de referência do establishment católico estadunidense.
O cenário estadunidense de onde parte a operação Viganò é ideologicamente extremo e polarizado como em nenhum outro país ocidental: eu vivo nos Estados Unidos há 10 anos e posso testemunhar o animus conservador contra o Papa Francisco. Mas também posso testemunhar que, na base do ressentimento em relação ao Vaticano de Francisco, há também o choque dos estadunidenses pelo escândalo dos abusos sexuais – um choque não plenamente incompreendido na Itália, onde a crise (ainda) não eclodiu.
Quando minha esposa e eu fomos ao curso de formação para os pais dos novos alunos da escola católica, perto da Filadélfia, eles nos indicaram, ao lado da sala de reuniões, uma sala para aqueles pais que não aguentavam as imagens e as palavras que narram uma violência contra os mais indefesos, para aqueles pais que queriam ir chorar sem serem vistos: uma espécie de muro das lamentações.
É oportuno abrir os olhos para essa crise, também em Itália: não é uma crise passageira, mas sim uma crise que, como dimensões e consequências, poderia encontrar um paralelo na corrupção da Igreja que levou à Reforma Protestante, cinco séculos atrás.
É uma crise institucional, com mecanismos de controle do clericalismo, que não funcionam ou não existem; uma crise moral, dada a corrupção que permeia os mais altos níveis da hierarquia, assim como do laicato que, em vários casos, colaborou para encobrir os abusos; uma crise cultural, fruto da negação da realidade em matéria de sexualidade humana; uma crise política, porque enfraquece a voz da Igreja em um momento em que os últimos da terra só podem contar com ela em muitas partes do mundo; uma crise afetiva, porque redefine radicalmente o lugar que a experiência da Igreja tem no corpo de milhões de pessoas.
No caso Viganò, há certamente uma conspiração transatlântica em função anti-Francisco. Mas, aos olhos daqueles que não pertencem aos círculos dos especialistas e dos clérigos e que leem cotidianamente esse novo gênero literário que é a crônica policial clerical, está – de modo muito mais macroscópico do que a luta entre facções no Vaticano – a verdadeira questão dos abusos sexuais.
É o escândalo que definiu essas duas últimas décadas da história da Igreja e que poderia definir o século inteiro. É uma crise existencial para a Igreja, no sentido de que poderia determinar o seu lento fim ou seu rebaixamento a instituição-pária, de intocáveis.
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Caso Viganò e abusos sexuais: uma crise epocal e existencial para a Igreja. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU