Por: Wagner Fernandes de Azevedo | 07 Junho 2018
O sociólogo peruano Aníbal Quijano, membro-fundador do grupo Modernidade/Colonialidade — M/C, foi um dos principais pesquisadores do pensamento decolonial. Ao longo de seus 90 anos de idade tornou-se referência da ciências sociais latino-americanas pela conceituação de colonialidade do poder. Faleceu na madrugada de 31 de maio de 2018, deixando um legado que se expande para academia e para a política da América Latina.
Quijano desenvolveu uma importante pesquisa para o entendimento da formação da modernidade. A partir de uma análise histórica de formação do capitalismo com base no colonialismo e sua expansão à globalização do século XXI, incluiu categorias essenciais para a compreensão do sistema ocidental europeu de pensamento. O professor César Augusto Baldi explica que “para Quijano, não há modernidade sem colonialidade, mas também não há colonialidade sem falar de raça”.
Para Nelson Maldonado-Torres, porto-riquenho, professor da Universidade de Rutgers, da Nova Jérsei, a relevância do pensamento de Aníbal Quijano está pela sua contribuição no projeto de descolonização das ciências sociais. “Quijano foi uma figura principal no trabalho da rede de pesquisadores e ativistas dedicados desde os anos 1990 em definir e avançar o que tem sido conhecido como giro decolonial. Foi ele quem alcunhou o termo colonialidade do poder e o pôs no meio do tabuleiro, desenvolvendo-o de forma muito profunda e precisa. Contribuiu também de maneira muito importante ao projeto de identificar e criticar o eurocentrismo e descolonizar as ciências sociais”, afirmou ao IHU On-Line por facebook.
Aníbal Quijano percebeu a colonização como um processo contínuo, para além das independências políticas. O rompimento burocrático da relação metrópole e colônia perpetuava outras formas estruturais da dominação em diferentes sujeitos. A modernidade, eurocentrada, construiu o Outro, negro e latino-americano, por meio da dominação. A professora do curso de Direito da Unisinos Fernanda Bragato conversou por e-mail com o IHU On-Line explicando as premissas do pensamento de Quijano: “Embora o liberal-individualismo parta de uma abstrata igualdade entre todos os indivíduos, a concepção de liberdade que o define é intrinsecamente ligada à de propriedade/apropriação. Mas não há espaço para que todos prosperem/acumulem, nem a menor possibilidade que o mundo circundante suporte o modelo de acumulação que orienta as sociedades humanas desde que a Europa se projetou como líder do assim chamado processo civilizatório”.
Quijano revolucionou as ciências sociais da América Latina a partir da sua concepção da colonialidade. Para Baldi, “o colonialismo como sistema político não era mais central, desde a descolonização da África, mas o que Quijano aponta é uma matriz colonial centrada na raça que permanece tanto na primeira onda colonial nas Américas, quanto na segunda da África e Ásia, quanto persistente nos dias de hoje”. Segundo Bragato junto a autores como Enrique Dussel e Walter Mignolo, Quijano deixa um legado que é “chave para compreender a modernidade e o capitalismo na sua relação centro-periferia”
Por uma perspectiva crítica, a ideia de colonialidade do poder demarca um novo paradigma nas Ciências Sociais, teoria que Quijano se dedica a partir da década de 1990. Segundo a professora da Universidade de Brasília — UNB Rita Laura Segato, em artigo Anibal Quijano y la pesperctiva de la colonialidad del poder [1], o trabalho de Quijano compõe junto a outras teorias uma virada na compreensão da ciência em diversos âmbitos, como a Teologia da Libertação e a Pedagogia do Oprimido. A corrente conceituada como pós-colonial critica a relação centro-periferia a partir da segunda metade do século XX, sem cair em submissões às políticas dominantes, ao mercado e à lógica produtivista. Segundo Bragato, “o conceito de colonialidade do poder abriu os horizontes dos cientistas sociais porque desvelou aquilo que estava encoberto por uma leitura comprometida com a exaltação da modernidade e com a preservação do seu legado: a colonialidade, ou seja, o lado obscuro da própria modernidade”.
No artigo Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina [2], Quijano aponta os aspectos fundantes do capitalismo e do eurocentrismo. As categorias criadas pela modernidade são sustentação dos modelos de exploração do continente latino-americano. “A dominação é o requisito da exploração, e a raça é o mais eficaz instrumento de dominação que, associado à exploração, serve como o classificador universal no atual padrão mundial de poder capitalista. Nos termos da questão nacional, só através desse processo de democratização da sociedade pode ser possível e finalmente exitosa a construção de um Estado-nação moderno, com todas as suas implicações, incluindo a cidadania e a representação política”, argumenta no artigo.
Uma categoria importante da análise pós-colonial são as representações discursivas. O conceito de colonialidade do poder possibilita a análise crítica das “efetivas estruturas de poder colonial que foram sendo construídas na modernidade para expurgar o máximo de gente possível da categoria de humano e, para isso, as ideias de raça e gênero jogaram papel fundamental. Os discursos coloniais que representaram o(a) outro(a) não-europeu como um(a) degenerado(a), um ser inferior, continuam funcionando a pleno vapor para manter grande parte da humanidade excluída de sua real capacidade de ser livre”, afirma Bragato. Para a professora a classificação que a modernidade faz tornou “descartáveis o(a)s indígenas, o(a)s refugiados); outros são úteis para a exploração do trabalho (o(a)s negros, latino(a)s e os asiático(a)s pobres em seus próprios países); outras para reforçar o papel de dominação burguesa-patriarcal (mulheres)”.
Rita Segato detalha a colonialidade do poder a partir de 14 eixos. A professora eu seu artigo sintetiza os pontos essenciais da história acadêmica de Quijano dispersos em diferentes artigos e livros. Os eixos chave para compreender a colonialidade e modernidade do poder são:
O escritor peruano foi estudante e professor na Universidade Maior de São Marcos, no Peru. Militou no Movimento Revolucionário Socialista na década de 1970 e criou uma revista declarada marxista, revolucionária e socialista, Sociedad y politica. A universidade, a primeira construída no continente americano, foi casa de autores como Gustavo Gutiérrez, José Maria Arguedas, José Carlos Mariátegui e Victor Raúl Haya de la Torre. Aníbal Quijano se forma a partir dessa escola do marxismo latino-americano. “Era muito herdeiro de Arguedas e Mariátegui, para o qual escreveu um prólogo sobre os Sete ensaios de interpretação da realidade peruana”, expõe Baldi.
Nelson Maldonado-Torres aponta que Quijano foi influenciado para além dos limites latino-americanos. “Teve influência de Mariátegui e seus companheiros da teoria da dependência, mas também dos movimentos indígenas, pelo pensamento e lutas de afro americanos nos EUA, e por sua estadia em Porto Rico. Neste sentido, tem que se evitar um certo ‘latinoamericanocentrismo’, para reconhecer a riqueza de seu pensamento”, explanou.
Aníbal Quijano a partir da década de 1990 organizou o grupo Modernidade/Colonialidade, uma rede de intelectuais que radicalizavam as correntes pós-coloniais da Ásia e África promovendo um “giro decolonial”. A cientista política Luciana Ballestrin, da UFPEL, explicou que “a elaboração cunhada pelo grupo Modernidade/Colonialidade nos anos 2000 e que pretende inserir a América Latina de uma forma mais radical e posicionada no debate pós-colonial, que muitas vezes é criticado por um excesso de culturalismo e mesmo eurocentrismo devido à influência pós-estrutural e pós-moderna.”
Para César Baldi, a contribuição de Quijano para o pensamento decolonial tem como elemento essencial a categoria raça. “Quijano é um autor fundamental para destacar como o racismo é invisibilizado na América Latina, como o processo colonial é fundamentalmente racista e como são feitas as classificações sociais, a partir do processo da colonialidade do poder”, destacou ao IHU On-Line. Maldonado-Torres também enfatiza essa característica: “Quijano foi um grande pensador latino-americano que desde cedo teve uma perspectiva muito refinada da dependência da região, evitando reducionismos economicistas e reconhecendo a importância da ideia de raça e racismo, para além do étnico, na organização do sistema-mundo moderno e das sociedades desse mundo”.
A produção científica de Quijano foi parte essencial do grupo Modernidade/Colonialidade. O grupo, composto principalmente por autores latino-americanos, foi responsável pela conceituação e expansão da teoria decolonial. Essa expansão ocorreu para fora da América Latina e para diversas áreas do conhecimento. “Tem servido de base para nossas contribuições ao giro decolonial. Sua obra é referência essencial para entender a modernidade ocidental, a América Latina, e a envergadura do giro decolonial na e mais além da América Latina”, afirmou Maldonado-Torres.
Dentro do grupo de pesquisadores decoloniais, Quijano promoveu uma expansão das categorias de análise, como afirma Baldi. “Ele procurou mostrar que algumas discussões não eram da nossa ambiência, do ‘mundo do lado de cá’ e sim da Europa. Não à toa, autoras como Ochy Curiel, Thula Pires e Yuderkis Espinosa Miñoso, que são pesquisadoras negras, têm salientado a não pertinência, para a América ‘Latina’ de discussões sobre interseccionalidade, muito a partir dos aportes de María Lugones e das discussões que Rita Segato, sua maior divulgadora, vêm fazendo”, afirmou.
O pensamento de Quijano segue sendo expandido e trabalhado, sobretudo pelo grupo M/C, apontou Bragato. Entre os principais pesquisadores citados pela professora estão Arturo Escobar, Catherine Walsh, Eduardo Mendieta, Edgardo Lander, Enrique Dussel, Fernando Coronil, Javier Sanjinés, Lewis Gordon, Nelson Maldonado-Torres, Ramon Grosfoguel, e Santiago Castro-Gomez, Walter Mignolo.
Para além do universo acadêmico, Rita Segato apresenta a influência nas políticas de estado desenvolvidas na América Latina em organizações de povos originários e movimentos sociais. “O impacto da perspectiva da colonialidade do poder e de seu vocabulário pode ser constatada em uma variedade de documentos como a Declaração dos Filhos da Terra, de maio de 2008, em Lima, na qual 1500 irmãs e irmãos dos povos Quechua, Aymara, Kichwa, Lafquenche, Guambiano, Toba, Colla, Poccra, Asháninka, Shiwiar e demais povos originários da Abya Yala (Amérca) anunciaram ‘Não há integração sem decolonialidade do poder, saber e ser’”, enfatiza a professora.
Por fim, Segato resume o legado de Quijano: “Podem ocorrer desgastes ao longo das apropriações que são feitas, porém, sem dúvidas, se instalou uma questão que erode a crença cega nos valores eurocêntricos tão enraizadas no fazer universitário e inaugura uma percepção mais lúcida do estreito vínculo entre racismo, eurocentrismo, capitalismo e modernidade, própria da articulação que chamamos colonialidade”, conclui.
Notas
[1] SEGATO, Rita L. Aníbal Quijano y la Perspectiva de la Colonialidad del Poder. In.: SEGATO, Rita. La Crítica de la Colonialidad en Ocho ensayos y una Antropología por Demanda. Buenos Aires: Prometeo, 2015
[2] QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In.: LANDER, Edgardo (org.). A Colonialidade do Saber - Eurocentrismo e Ciências Sociais - Perspectivas Latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005.
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O legado de Aníbal Quijano para o pensamento latino-americano descolonizado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU