11 Mai 2018
O “às favas com os escrúpulos” do AI-5 retrata, para psicanalista e criminalista, “o momento mais sinistro da política brasileira. O desamor pelo Brasil é autofágico e neurótico e a emoção derrotista avilta a Nação”
A entrevista é de José Nêumanne, publicada por O Estado de S. Paulo, 10-05-2018.
A atual crise ética, política, econômica e financeira do Brasil é tal, na opinião do psicanalista e advogado criminalista Jacob Pinheiro Goldberg, que nos faz viver e reviver a mesma situação de desamparo e orfandade sofrida com a morte do presidente Tancredo Neves, repositório da esperança nacional. Segundo ele, o País “vive um stress gravíssimo de autoridade que perturba o cidadão, criando um estado paranoide”. E pondera: “A violência urbana, o crime organizado, a corrupção, os choques radicais partidários, o desemprego, o sucatamento da saúde e da educação e o esgarçamento da autoridade nos reportam ao período da morte de Tancredo Neves, que defini, na ocasião, como de ‘orfandade e miséria emocional’. Trata-se, a meu ver, de uma situação de crise não só institucional, mas também de identidade e, por isso, capaz de ameaçar a própria organização civilizatória do País. Terreno fértil para surtos e surgimento de movimentos totalitários”.
Jacob Pinheiro Goldberg nasceu em Juiz de Fora (MG), em 1933, e é também polonês por decisão do presidente da Polônia, por serviços prestados àquela cultura eslava (seu livro Magya Wygnania foi traduzido pelo professor Henrik Siwierski e foi presidente do Grupo de Estudos Czeslaw Milosz). Advogado, é autor de O Direito no Divã (Ed. Saraiva), premiado na categoria de Direito, Prêmio Jabuti de Literatura. Recebeu da OAB a comenda Benjamin Colluci. Doutor em psicologia, é professor convidado em universidades brasileiras e estrangeiras. Assistente social, publicou livros e trabalhos no Brasil e no exterior. Entre trabalhos sobre sua obra destacam-se a tese de doutoramento da professora da Universidade Stanford Marília Librandi-Rocha, na USP, “Parábola e ponto de fuga, a poesia de Jacob Pinheiro Goldberg” e a dissertação de mestrado de Aline Moraes Pernambuco, “A Amerika de Jacob Pinheiro Goldberg”. De sua autoria e sobre sua atuação estão publicados mais de nove mil artigos, conferências e documentários.
A crise do Brasil, hoje, foi descrita há mais de meio século pelo chefão do PSD do Maranhão de então, Vitorino Freire, que definia uma crise grave com a imagem da vaca desconhecendo o bezerro. De seu ponto de vista de psicanalista e advogado criminalista, por favor, responda-me: deu a louca no Brasil?
Fundei e dirigi o curso de Psicologia e História na USP convencido de que compreender a sociedade brasileira e a política não poderia ficar somente no campo sociológico e econômico. Desde sempre, às vezes como militante e outras como analista, acompanhei de perto flutuações dos processos do poder no Brasil. Neste mister que me impus como cidadão estive praticamente com todos os presidentes da República desde então e atores da cena ideológica, seja em privado ou publicamente. Particularmente, neste momento me parece que o Brasil vive um stress gravíssimo de autoridade que perturba o cidadão, criando um Estado paranoide. A violência urbana, o crime organizado, a corrupção, os choques radicais partidários, o desemprego, o sucatamento da saúde e da educação e o esgarçamento da autoridade nos reportam ao período da morte de Tancredo Neves, que defini, na ocasião, como de “orfandade e miséria emocional”. Trata-se, a meu ver, de uma situação de crise não só institucional, mas também de identidade e, por isso, capaz de ameaçar a própria organização civilizatória do País. Terreno fértil para surtos e surgimento de movimentos totalitários.
Antes de Lula ser preso, e até mesmo antes de ele ser condenado, o senhor observou nele certa obsessão pelo sacrifício. Isso, de certa forma, influiu no estilo da defesa dele, que em nenhum momento respondeu a nenhuma das acusações que lhe foram feitas, mas apenas tentou fazer dele um “perseguido político”. O senhor diria que ele imagina que esse viés suicida seduz seu público de devotos?
Estive, pessoalmente, em dois momentos de análise do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, num programa de duas horas na Rádio Globo, em que mergulhamos em leituras complexas tanto em sua personalidade carismática como na sua perspectiva e visão do Brasil, e no programa de Silvia Poppovic na TV Bandeirantes, quando, ao terminar, ele me abraçou comovido pelos comentários que produzi em relação ao que entendi de sua infância.
Posteriormente, publiquei vários trabalhos equacionando a sua imagem, que, na minha opinião, flutuou muitas vezes entre o estadista e o mistagogo, correspondendo à tradição política nacional que se encarnou de forma dramática em muitas lideranças. À direita, Carlos Lacerda; à esquerda, Prestes; e, com singularidade comparável a Perón na Argentina, Getúlio Vargas.
Nesta configuração podemos simplificar em duas categorias: a tipologia suave de Fernando Henrique e a vulcânica de Lula. Muito da projeção psíquica brasileira tão bipolar, como já afirmei: ou campeão do mundo ou a cloaca do universo.
A vocação sacrificial muitas vezes marca, e até tragicamente (nossa história política está atravancada de cadáveres, de suicídios a assassinatos), o pathos e o ethos da cultura brasileira e, arrisco-me a afirmar, da contingência humana.
Fugir deste destino e sublimar o fado é, talvez, um grande desafio, hoje, para nosso país, e inclusive para Lula enquanto pessoa, “Viver pela pátria” e não “morrer pela pátria”, eis aí a maturidade da inversão duma herança capaz de nos transformar na potência da América do Sul. Quanto ao processo jurídico, trata-se de opções processuais que somente seus advogados podem avaliar como mais adequadas. De qualquer forma, consigne-se que, além de Lula, o sistema jurídico também está sendo acompanhado e julgado pela opinião pública, dada a exposição pela TV, de forma inédita no Brasil.
A seu ver, é incomum a notória e notável transformação do malandrinho esperto Lula no corrupto de dimensões internacionais que ele se tornou, usando as escassas poupanças de um país pobre, de cujo povo ele se julga um símbolo?
Internacionalmente, os sistemas políticos estão em crise institucional.
Figuras lendárias são submetidas a constrangimentos inimagináveis, principalmente diante da revolução provocada pelas redes sociais. Políticos e artistas, banqueiros e ídolos populares não escapam das críticas e de uma invasão de privacidade que vai do campo sexual ao econômico. Sem dúvida, a paisagem da nossa concepção de “herói e vilão” está submetida a uma permanente lavagem cerebral em que todos os valores são questionados.
A declaração de que não é mais uma pessoa, mas uma ideia, acompanhada de comparações com Nelson Mandela, Tiradentes e até Jesus Cristo, provém de um estado patológico de megalomania ou resulta apenas de um truque hábil de grande comunicador, que Lula é? Ou ainda, quem sabe, as duas coisas?
Lula consubstanciou a carência de uma parcela miserável da nossa sociedade. O que fez e vem fazendo com esta fé depositada é julgamento para as urnas e para a História. Reconhece sua competência no papel e o faz com determinação.
Essa linha de atacar, em vez de se defender, similar à filosofia de grandes generais e alguns técnicos de futebol – de que a melhor defesa é o ataque –, tem origem em algum recôndito da alma do líder e pode ser responsável por parte de seu sucesso?
Usando a linguagem futebolística que lhe é peculiar, e faz parte de sua identificação folclórica, é da natureza sanguínea e da biografia do self-made man, o atacante. Quem o imaginar goleiro perde o jogo…
É comum dizer-se que no Brasil sempre se furtou o erário, mas nunca se soube a dimensão da corrupção dos agentes públicos. Com o conhecimento que o senhor tem de políticos e gestores públicos, essa é uma verdade, ainda que parcial, ou mera lenda urbana?
Na análise de políticos sempre priorizei os aspectos psicológicos de seu comportamento. Creio que a corrupção é matéria de polícia e Justiça, que devem se incumbir da tarefa. Ressalvo patriotas e idealistas, de esquerda e direita, que aprendi a admirar, muitas vezes injustiçados e incompreendidos. Dou o testemunho de grandes figuras icônicas e sei que posso surpreender, mas assim vi, entre muitos outros, Luiz Carlos Prestes e Carlos Lacerda.
O senhor sempre acompanhou de perto e guarda enorme admiração pelo marechal Henrique Dufles de Teixeira Lott, o típico exemplo da boa política, mas também do político ingênuo, derrotado numa eleição presidencial por Jânio Quadros, que fez da loucura seu instrumento de marketing político. Seria esse embate presidencial de 1961 o começo do fim das aventuras abortadas de boa política no Brasil e o ponto de inflexão da completa negação da ética na política e na gestão do Estado?
O marketing político é o responsável por grande parte das farsas, das manipulações e dos crimes na prática partidária. Creio que Jânio Quadros, e escrevi sobre isso, foi uma figura sacrificada pelos tumultos e conflitos da nossa sociedade. Tivemos uma relação humana de respeito. Já o marechal Lott foi, depois de meu pai, o exemplo maior de retidão e amor ao Brasil que reverenciei, inclusive como presidente: fui do “Comitê General Stoll Nogueira”, do grupo da esquerda nacionalista do Exército.
O Brasil trocou o “ordem e progresso” de nossa Bandeira Nacional pela frase-síntese da política nacional contemporânea, que é o celebérrimo “às favas com os escrúpulos” com que o dublê de oficial e político Jarbas Passarinho saudou o Ato Institucional Número 5, da ditadura militar?
Essa frase retrata o momento mais sinistro da política brasileira. O desamor pelo Brasil é autofágico e neurótico e a emoção derrotista avilta a Nação.
Como psicanalista e advogado criminal, o senhor seria capaz de descrever, historiar e comentar as razões e motivações da tragédia da insegurança nacional, de cujo iceberg o Rio de Janeiro é apenas a ponta visível?
Quando Brizola pediu à dra. Terezinha Zerbini que me indicasse pelo movimento negro e feminino do PDT candidato a senador (do que declinei), me disse num café no Hotel Maksoud: “Quando o morro descer no Rio, o Brasil se desintegra”.
Era o momento da morte de Ayrton Senna. Respondi: “Antes, governador, deveríamos subir o morro”. Repito o conceito.
Existe algum liame lógico, seja na motivação mental, seja na realização do delito, entre corrupção desenfreada e insegurança pública generalizada?
Sim. A corrupção contamina, da mesma forma que a honestidade contagia.
O ser humano é sempre recuperável para seu feito: à imagem e semelhança de Deus. Justiça e compaixão. Ordem e progresso.
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Psicanalista aponta risco totalitário nesta crise de orfandade e miséria emocional - Instituto Humanitas Unisinos - IHU