04 Mai 2018
Gloria Poyatos Matas é integrante do Tribunal Superior de Justiça das Ilhas Canárias e presidente da Associação de Mulheres Juízas da Espanha. A partir desse lugar, questiona a recente sentença contra os cinco integrantes de La Manada, que acarretou uma onda de massivas manifestações de repúdio na Espanha. O que lhe falta é perspectiva de gênero, aponta em uma entrevista ao Página/12, na qual esmiúça e analisa a resolução judicial.
A sentença condenou os agressores de uma adolescente de 18 anos a 9 anos de prisão pelo crime de abuso sexual e não por estupro, o que os beneficiou com uma pena menor, apesar de terem provado os fatos denunciados pela vítima. O ponto chave, destaca Poyatos, foi a avaliação que os juízes fizeram da atitude da garota frente ao ataque.
“Não se leva em conta a atribuição social de papéis de gênero que predeterminam os homens para a autoridade e as mulheres para a submissão, razão pela qual é mais provável que os homens combatam o medo com agressão e as mulheres com obediência e submissão, como aconteceu neste caso. Julgar com perspectiva de gênero é buscar soluções jurídicas justas a situações de desigualdade”, destacou a juíza espanhola, que chegará hoje a Buenos Aires para participar da 14ª Conferência Bienal Internacional de Mulheres Juízas, que segue até domingo, com a participação de magistradas de 72 países.
Após a sentença de La Manada se tornar conhecida, a Associação de Mulheres Juízas da Espanha (AMJE) se pronunciou através de um comunicado no qual considerou que a interpretação que o Tribunal de Pamplona fez é a que ocasionou “desconcerto” e uma “importante rejeição social”, ao mesmo tempo em que “abre uma lacuna entre a percepção social deste tipo de crime e sua interpretação jurídica”.
Página/12 conversou com Poyatos, na ilha de Lançarote, nas Canárias, onde vive, antes de viajar à Argentina. O machismo na justiça, o lugar que ocupam as mulheres nos tribunais e a falta de uma formação obrigatória e especializada em gênero para os operadores da Justiça e nas carreiras de Direito e suas consequências foram alguns dos eixos da conversa. A situação na Espanha pode muito bem ser vista como espelho da Argentina. “O machismo é uma doença de transmissão social, sua vacina está na educação e se cura com formação”, adverte a juíza.
Define-se como “feminista”. É autora do livro La prostitución como trabajo autónomo, onde defende o direito das mulheres de exercer a prostituição de forma autônoma ou mediante cooperativas. “Caso sejam perseguidas, acabarão desprotegidas pelas esquinas. Gostaria que não existisse a prostituição, mas é uma quimera. A antropóloga María Dolores Juliano sustenta que a população feminina reclusa na Europa é de 5%. Nós, mulheres, não tendemos a delinquir. Diante da necessidade, buscamos outras alternativas”, declara Poyatos, para fundamentar sua posição.
A entrevista é de Mariana Carbajal, publicada por Página/12, 02-05-2018. A tradução é do Cepat.
Qual é sua opinião sobre a sentença do caso La Manada?
Trata-se de uma sentença rigorosa e juridicamente fundamentada, mas com todo o respeito à resolução judicial frente a qual cabe recurso, meu ponto de vista é que se definiu interpretando e aplicando a norma sem perspectiva de gênero.
Por que o voto majoritário não enquadra o fato como estupro?
Porque não apreciou o fluxo de violência - força física -, nem intimidação - anúncio ou ameaças de um mal -. O Tribunal entendeu que haviam os requisitos para apreciar que existiu violência específica para anular qualquer possível resistência da vítima, apesar de ter provado a superioridade física e numérica dos 5 processados, o lugar – sem saída – onde ocorreu o ataque e a diferença de idade e maturidade entre a vítima de 18 anos e seus 5 agressores, entre outras circunstâncias. Essas circunstâncias foram avaliadas juridicamente como prevalecimento no crime de abusos sexuais, mas não como intimidação, que se exige no crime de agressão sexual.
Obviamente, as penas previstas em um e outro crime são muito diferentes. A sentença faz uma avaliação jurídica que, do meu ponto de vista, não corresponde à gravidade contida nos fatos provados, que descrevem um cenário de opressão compatível com a anulação de possível resistência da vítima requerida na agressão sexual. Deste modo, faz-se uma interpretação jurídica excludente do conceito jurídico de “violência”, em casos como o presente, e, portanto, não se leva em conta a atribuição social de papéis de gênero que predeterminam os homens para a autoridade e as mulheres para a submissão, razão pela qual é mais provável que os homens combatam o medo com agressão e as mulheres com obediência e submissão, como aconteceu neste caso. Julgar com perspectiva de gênero é buscar soluções jurídicas justas a situações de desigualdade.
Desacredita-se do relato da vítima ou há uma avaliação distinta da gravidade do episódio?
A sentença parte de uma avaliação que confere verossimilhança e credibilidade à vítima, assumindo como comprovado seu relato com base no qual se produz a condenação. Aprecia que não existiu consentimento da vítima.
Na justiça espanhola, são obrigatórios os cursos de capacitação para incorporar a perspectiva de gênero?
Infelizmente, na carreira judicial espanhola carecemos de formação obrigatória e especializada em gênero. A que existe atualmente é voluntária e isso apesar de o Comitê para a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres (Cedaw, em sua sigla inglesa), em sua Comunicação 47/2012 – Assunto: Angela González –, recomendou à Espanha, expressamente: “proporcionar formação obrigatória aos juízes e pessoal administrativo competente sobre a aplicação do marco legal em matéria de luta contra a violência doméstica, que inclua formação acerca da definição da violência doméstica e sobre os estereótipos de gênero”. Por isso, de nossa Associação, temos reiteradamente reivindicado formação especializada em gênero obrigatória para a judicatura espanhola com integração no temário de oposição à carreira judiciária e fiscal, para poder franquear os estereótipos e preconceitos de gênero a partir da justiça. Os estereótipos são imunes às leis, mas nós, que julgamos, não somos imunes aos estereótipos.
Que porcentagem da magistratura faz essas capacitações voluntárias?
Não tenho o dado preciso, mas nos cursos de formação com perspectiva de gênero comparecem majoritariamente as juízas e magistradas, e também alguns companheiros, mas sempre em minoria.
É o que costuma acontecer, são capacitadas aquelas que já estão mais sensibilizadas com o tema. Então, imagino que a Justiça espanhola continua sendo um campo machista?
O machismo é um mal que atinge a sociedade e todas as profissões. Na justiça, não nascemos imunes à estereotipia e papéis de gênero e nos educamos na mesma sociedade preconceituosa que o restante das pessoas, embora com maior responsabilidade porque nosso trabalho tem um grande impacto na vida das pessoas. Por isso, não deve nos estranhar que os preconceitos penetrem transversalmente em nossas resoluções judiciais, dando lugar a decisões baseadas em crenças preconcebidas sobre o comportamento “apropriado” da mulher em cada contexto. Os preconceitos predispõem a quem julga e comprometem a imparcialidade que deve reger a atividade jurisdicional. Por isso, a partir do Direito Internacional, foi se construindo uma jurisprudência de gênero, em resposta à ineficiência das ferramentas tradicionais para conseguir, por si sós, uma igualdade real. Tudo isso se combate com formação e capacitação de juízes e juízas. O machismo é uma doença de transmissão social, sua vacina está na educação e se cura com formação.
Que lugar as mulheres ocupam no Poder Judiciário?
Segundo os últimos dados apresentados pelo Conselho Geral do Poder Judiciário (CGPJ), a carreira judicial espanhola é composta de 5.637 membros, dos quais 54% são mulheres e em uma faixa de idade abaixo dos 50 anos. Nós, juízas, somos 64%, mas paradoxalmente, no Tribunal Supremo, de um total de 80 integrantes, em suas 5 Salas – civil, penal, contencioso administrativo, social e militar –, só 12 são mulheres. Além disso, de um total de 17 presidências dos Tribunais Superiores de Justiça espanhóis, só 1 tem nome de mulher. E de um total de 50 presidências de Audiências Provinciais, só 8 são dirigidas por mulheres. Uma anomalia democrática que redunda negativamente na qualidade da justiça porque não integra a visão completa de uma sociedade composta por homens e mulheres. O mundo é diverso e tem uma cor diferente dependendo do sexo sob o qual se observa. Uma justiça não pode ser autêntica se prescinde da metade da população.
Quantas mulheres há no Tribunal Constitucional?
No Tribunal Constitucional, o equilíbrio de gênero não é mais encantador, pois de um total de 64 integrantes, desde sua criação em 1980, só se conheceram 6 mulheres. Atualmente, é composto por 12 integrantes, dos quais apenas 2 são mulheres. O Tribunal Constitucional deveria ser o guardião da igualdade em sua própria integração. A anedótica presença de mulheres em um órgão democrático tão importante e de grande impacto social é um retrocesso para a justiça, porque prescinde do talento e as experiências femininas na tomada de decisões transcendentais para a sociedade espanhola.
Na justiça, é frequente colocar em dúvida a palavra de mulheres que denunciam violências machistas na Espanha?
No direito, há uma longa história de estereótipos sobre as testemunhas mulheres como “intrinsecamente mentirosas” ou como “intrinsecamente não confiáveis” e, portanto, acredita-se que é mais provável que mintam ao depor em casos de violência sexual. Este estereótipo estava integrado nas leis espanholas até o século passado, quando conseguimos a igualdade jurídica, por exemplo, até a reforma do Código civil espanhol de 1958, promovida pela jurista Mercedes Formica, as mulheres não eram válidas como testemunhas nos testamentos.
Existem tribunais especiais para os casos de violência de gênero e a agressão às mulheres em si mesmo é um crime. Esta abordagem permite proteger melhor as mulheres que a sofrem?
A criação dos Juizados com competência em violência sobre as mulheres ocorreu no ano 2005, em cumprimento à Lei Orgânica 1/2004, de 28 de dezembro, de Medidas de Proteção Integral contra a Violência de Gênero. Trata-se de órgãos judiciais especializados e exclusivos para a tramitação de atuações penais e civis que afetem as vítimas de violência de gênero que se contemplam na lei, o que supõe um avanço que facilita o acesso das mulheres vítimas de violência de gênero à justiça. Não obstante, conforme passamos a reivindicar a partir da Associação de mulheres juízas da Espanha, é necessária formação sistemática, obrigatória e transversal de todos os operadores jurídicos que participam na perseguição do crime de violência de gênero, assim como mais meios humanos e materiais entre outras medidas, conforme advertimos.
Formam-se os e as estudantes de Direito nas universidades espanholas na perspectiva de gênero, durante sua carreira?
Do meu ponto de vista não, e o mesmo acontece em outras licenciaturas, como jornalismo e medicina. Diante da falta de educação em matéria de gênero, pela AMJE, estamos impulsionando na Espanha um programa educacional na igualdade, a partir da justiça, pioneiro e muito poderoso educativamente, onde trabalhamos com a aprendizagem transformadora dos alunos, com jovens de 9 a 18 anos. Este programa, no qual há cerca de 3.000 jovens escritos, em diferentes localidades espanholas, é incentivado de forma voluntária e altruísta por nossas equipes judiciais multidisciplinares, compostas por representantes de todos os estamentos jurídicos: judicatura, forense, advocacia, promotoria, etc.
É um programa de divulgação e conhecimento do que é a Justiça Igualitária entre os alunos para lhes ajudar a reconhecer as discriminações e violências de gênero, assim como os estereótipos sexistas. Um programa que pretende a aproximação de estudantes ao mundo judiciário, através de visitas guiadas às instalações judiciais e assistência a julgamentos reais com perspectiva de gênero, como uma experiência enriquecedora que lhes dará uma informação mais certeira sobre o funcionamento dos juizados espanhóis e do conceito de justiça. Promove, além disso, a criatividade de adolescentes e o trabalho em equipe mediante a preparação e representação de um julgamento com perspectiva de gênero, em uma sala de vistas real, preparada para a ocasião. É necessário começar a trabalhar nas escolas aquilo que desejamos que a nossa sociedade seja, por isso projetos como este são imprescindíveis.
Na Espanha, durante muitos anos, chamava-se as mulheres de juízes que exerciam a magistratura. Quando mudou essa denominação?
As mudanças na linguagem costumam se dar a partir da própria sociedade, e posteriormente a Real Academia de Língua espanhola (RAE) admite a mudança no Dicionário Normativo, e assim aconteceu com o feminino de juiz: juíza. Pela AMJE, também reivindicamos uma linguagem não sexista e inclusive que visibilize as mulheres. Nosso próprio nome associativo não é por acaso, mas reivindicativo disso em si mesmo. A linguagem é muito mais que palavras. Nossa língua é a manifestação de nossa estrutura ideológica, de nossa forma de entender e sentir o mundo, de interpretar a realidade.
A linguagem é um reflexo do pensamento e é o instrumento através do qual nos relacionamos e mostramos nossa maneira de ver o mundo. Não só se nomeia a realidade, como também se interpreta a mesma. Por isso, a linguagem pode se tornar uma poderosa arma de discriminação social, perpetuando as relações assimétricas entre sexos e o histórico padrão de dominação do homem, sob a consideração da mulher como objeto e não sujeito. A espanhola é uma língua viva que cresce e muda dentro de seu contexto social. As transformações não são definidas pela Academia, surgem espontaneamente a partir da própria sociedade. As pessoas decidem o destino da linguagem e a RAE regulamenta, não ao contrário.
Na Argentina, está ocorrendo o debate pela descriminalização e legalização do aborto no Congresso. Qual a sua opinião acerca desse assunto em nosso país, onde somente é legal quando a vida e a saúde da mulher correm risco e em casos de estupro?
A proibição ao aborto foi outra histórica forma de violência contra as mulheres pela via do controle de seus corpos e de sua sexualidade por parte dos Estados. Acredito que é excessivamente restritivo um sistema que só permita abortar nas três hipóteses que indica.
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O machismo: “doença de transmissão social”. Entrevista com Gloria Poyatos Matas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU