07 Março 2018
Quando incentiva a Igreja a ir até a periferia, o Papa Francisco não deve estar consciente do mundo cintilante, fugaz e personalizado da moda. No entanto, a alta costura e a religião vão se juntar na primavera de Nova York deste ano, com uma grande exposição para celebrar a imaginação católica no mundo da moda.
A reportagem é de Claire Giangravè, publicada por Crux, 05-03-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Mais de 40 obras-primas religiosos da sacristia da Capela Sistina - algumas das quais nunca saíram dos muros da cidade do Vaticano - serão apresentadas no Museu Metropolitano de Arte de Nova York de 10 de maio a 8 de outubro. Esses artefatos históricos, como tiaras papais altas, vestimentas costuradas à mão e anéis banhados a ouro também farão parte da peça central do MET Gala, um evento de moda anual muito aguardado em que participam jovens estrelas, designers e lançadores de tendência. O evento acontecerá no dia 7 de maio e seu tema é "Corpos Angelicais: Moda e a Imaginação Católica”. Os convidados de alto nível foram convidados a se vestir de acordo, num look que de alguma forma reflita a confluência entre moda e fé.
Temas anteriores, como tecnologia, em 2016, e design Comme de Garçon, em 2017, não tiveram grande adesão, mas pode ser difícil para esses especialistas da moda resistirem à oportunidade de reinterpretar e se inspirar com o imaginário católico - e talvez até ridicularizá-lo.
Para quem se interessa pela indústria do entretenimento, desde clipes de música até filmes de sucesso, é impossível não reparar nas referências ao catolicismo e principalmente à Sagrada Família, e poucas podem ser consideradas uma "reverência respeitosa". A partir de exemplos anteriores, não é impossível imaginar divas como Madonna, Lady Gaga e Niki Minaj aproveitando a oportunidade do baile do Met para passar dos limites.
"Quero [que os convidados no tapete vermelho] entendam a importância da exposição", disse Anna Wintour, editora-chefe da Vogue e co-presidente da Met gala em uma conferência de imprensa em Roma, no dia 26 de fevereiro, apresentando parte da arte religiosa que será exibida no evento.
"Claro, a festa é sempre divertida e é ótima para ver o que todo mundo está usando, mas [serve] para chamar a atenção para a exposição", acrescentou.
O cardeal italiano Gianfranco Ravasi, presidente do Conselho Pontifício do Vaticano para a Cultura, que colaborou com a equipe organizadora do evento e com os curadores do museu, ponderou que alguns participantes podem não ser totalmente respeitosos à tradição católica no local.
Em entrevista ao Crux, ele reconheceu que este aspecto "negativo, banal, superficial" não deve ser negligenciado, e comparou-o a quando as crianças fazem as coisas só para provocar os pais "para criar uma pequena confusão na sociedade e ser o centro das atenções”.
O cardeal deu três argumentos que sugerem que os ganhos em termos de evangelização do envolvimento da Igreja em algo como o MET Gala de longe superam o risco de que alguém aproveite para dar um golpe baixo.
Em primeiro lugar, observou que há um efeito "paradoxalmente positivo" em tal exposição, devido ao fato de que somente quando as pessoas reconhecem a importância de um símbolo é que sentem a necessidade de profaná-lo.
"Quem profanaria Júlio César [hoje]? Ou o Império Romano? A figura de Cristo e os símbolos religiosos, particularmente os cristãos, ainda são tão poderosos que há quase uma necessidade de atacá-los", disse Ravasi. "Nisso se reconhece a sua grandeza."
Ele fez referência à vida de Cristo para apresentar seu segundo argumento, dizendo que no fim das contas Jesus "estava constantemente em má companhia", de ricos publicanos a prostitutas, tirando, assim, a razão dos críticos que veem o mundo da moda como mundano ou superficial demais para ser um contexto adequado para o divino.
Ele afirmou que está no "DNA do cristianismo" estender-se a todos os âmbitos da sociedade, mantendo sempre em mente sua própria identidade.
O terceiro argumento de Ravasi girava em torno da carta de Paulo aos Tessalonicenses, convidando os fiéis a "testar tudo; mas manter o que é bom/bonito". Segundo o prelado, a Igreja não deve ter medo sair de si mesma, mesmo que isso signifique se expor ao desprezo ou ao ridículo.
"Acho que estar presente em todos os lugares, como dizia Paulo, é típico do cristianismo", afirmou, "até mesmo ir às fronteiras e não se fechar no próprio oásis protegido, como faz um certo tipo de cristianismo, que teme o que está além".
No entanto, só estar lá não é suficiente, disse Ravasi: a Igreja também deve buscar provocar e oferecer testemunhos. Isso levanta a questão de se as vestimentas e insígnias papais expostas no Met vão ser suficientes para abalar as bases espirituais dos presentes ou vão causar apenas reações superficiais.
"Alguns podem considerar a moda um meio inconveniente ou inadequado de se envolver com ideias sobre o sagrado ou o divino", disse Andrew Bolton, curador chefe do Costume Institute do Museu Metropolitano de Arte de Nova York, na coletiva em Roma.
No entanto, acrescentou Bolton, ambos são "inerentemente performativos" se compararmos o ritual de desfiles às procissões e liturgias religiosas e ambos utilizam uma "linguagem visual" que molda a identidade das pessoas.
Não há dúvidas de que a religião - e o catolicismo em particular -, tem tido sucesso em atrair multidões ao longo dos séculos apesar da arte e da beleza, com a suntuosidade e a elegância da liturgia desempenhando um papel significativo. Alguns dos exemplos mais relevantes de beleza artística no mundo ocidental só foram possíveis graças ao patrocínio e à influência da Igreja.
Mas, ao contrário da moda, onde a beleza é um fim em si mesma e muitas vezes idolatrada, a Igreja Católica nunca entendeu a beleza como um objetivo, mas como um meio de interpretar o divino.
Tendo isso em mente, o Papa Bento XVI inaugurou a Via Pulchritudinis, o caminho da beleza, uma exposição de eventos, arte e música para celebrar o poder da beleza em termos de evangelização. O Papa Francisco reforçou esta ideia ao descrever a beleza como uma "rota privilegiada para se aproximar do mistério de Deus".
A última vez que o Vaticano participou de uma exposição tão grande de sua arte para o Met, em 1983, foi a terceira mais vista da história do museu, e os organizadores dizem que o próximo evento pode ter o mesmo sucesso. Os itens de vestuário e os objetos religiosos serão colocados "em diálogo" com obras de arte medieval e a mostra incluirá mais de 140 peças de grandes nomes de moda, como Dolce & Gabbana, Valentino, Chanel e Versace.
Donatella Versace, a cantora pop Rihanna e a advogada e ativista humanitária Amal Clooney serão as anfitriãs do evento.
De acordo com Bolton, a peça mais preciosa do Vaticano será uma tiara papal doada pela Rainha Isabel II de Espanha ao Papa Pio IX, no século XIX, coberta com 19.000 pedras preciosas, das quais 18.000 são diamantes.
A brilhante exibição será exibida na noite mais extravagante da moda - ironicamente, num momento em que a pompa e a magnificência estão um pouco fora de moda no Vaticano.
Francisco fez esforços significativos rumo a uma "Igreja pobre para os pobres" e faz questão de rejeitar vestimentas extravagantes. Não é preciso ser do esquadrão da moda para perceber que sua batina é mal ajustada, seus sapatos são pretos ou marrons e antigamente até mesmo as mangas não tinham acabamento. Em certa medida, essa tendência de ser mais casual na forma de se vestir foi adotada por outros membros da hierarquia da Igreja. Com isso, ficou difícil até mesmo para os jornalistas experientes reconhecer um cardeal numa multidão se não estiver usando nada que o denuncie.
"Toda a moda, incluindo a moda sagrada, segue o contexto histórico e evolui", disse Ravasi. "Agora, num contexto de sobriedade e até mesmo, como diriam alguns, crise, a Igreja deve manter suas vestimentas, mas as vestimentas devem ser sóbrias."
Mas o cardeal erudito não vê nenhuma contradição entre a exposição reluzente do Met e a abordagem discreta deste pontificado, que considera uma "evolução necessária".
"Infelizmente, existem alguns movimentos que ainda querem celebrar com todas as vestimentas - o que eu concordo em determinadas ocasiões -, querem recuperar o passado e ainda querem todos esses rituais", disse Ravasi. "De certa forma, essas pessoas estão fora da história, e fora da liturgia. Porque a liturgia, como diz a palavra, é o trabalho das pessoas. Como tal, ela deve refletir a época, e a atual é uma época de sobriedade e simplicidade."
Tanto detratores como defensores podem argumentar sobre se o MET Gala e a exposição são um local apropriado para a arte imponente e sagrado da Igreja. Mas por mais que o catolicismo e a moda inegavelmente sejam companheiros estranhos, certamente têm uma coisa em comum: ambos dão o que falar!
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Cardeal diz que Igreja não precisa temer a moda nem o ridículo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU