20 Dezembro 2013
Hoje, Jesus e a sua família não fugiriam para o Egito, mas sim para Lampedusa: e Caravaggio, hoje, os pintaria em uma balsa.
A opinião é do historiador da arte italiano Tomaso Montanari, professor da Universidade Federico II de Nápoles. O artigo foi publicado no jornal Il Fatto Quotidiano, 16-12-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Assim como para milhões de famílias do nosso tempo, a única viagem da família de Jesus não foi uma escolha, mas sim uma obrigação: a fuga de um poder sanguinário, a busca de asilo em um país estrangeiro. Hoje, Jesus e a sua família não fugiriam para o Egito, mas sim para Lampedusa: e Caravaggio, hoje, os pintaria em uma balsa. [Na imagem ao lado, a pintura de Caravaggio: Il riposo nella fuga in Egitto, 1595-1596. Roma, Galleria Doria Pamphili.]
Sim, porque não interessava a Caravaggio a meta, mas sim a trama cotidiana da viagem: uma trama de fadiga, de estupor e de encontros. E assim ele optou por representar o momento em que a noite cai, e os viajantes param na margem do Nilo. Mas é um Nilo que relembra o Tibre, de paisagem italiana: não há uma palmeira, mas sim um maravilhoso carvalho. E as plantas de pântano, a terra, as folhas amarelas e vermelhas são as do outono pelo qual Caravaggio circulava, com o seu cachorro (chamava-se Barbone), pela campanha romana.
A história também não é oficial, distante, sagrada. Mas privada, muito próxima, cotidiana. Enquanto o papai José desmonta o saco da bagagem e o frasco de vinho fechado com papel, o burrinho abre os grandes olhos mansos diante de um duende que recém caiu do céu: um anjo garboso, com cabelos cor de outono e asas de andorinha gigante.
Esse estranho companheiro de viagem tem um violino: e o que é melhor para se conhecer do que tocar música juntos? Cada encontro – Caravaggio parece nos dizer – nos completa. Sem a música do anjo, José vigiaria sozinho e triste: sabe-se- lá quantos pensamentos, quantas perguntas, quanta angústia.
Mas se esse pobre carpinteiro sentado sobre a mala não segurasse a partitura, nem mesmo o anjo de Deus conseguiria tocar. O puro espírito nunca foi tão carne. Tão necessidade, tão fraqueza, tão ternura.
Enquanto a fantasia de José viaja sobre as vertiginosas estradas da música, Maria e Jesus aprofundam-se na viagem fantástica do sonho.
Mamãe e filho estão unidos em um corpo só de novo: como quando Jesus estava na barriga da sua mãe.
Só Donatello soubera representar com tanta doçura o amor de Maria pelo seu pequeno. Optando por mostrá-los em um sono tão natural e privado, Caravaggio faz-nos sentir como se estivéssemos lá, ao lado deles: quase chegamos a falar em voz baixa. Para não acordá-los. E para não perturbar a canção de ninar do violino angélico.
Talvez Maria sonhe com o retorno à paz da sua casa de Nazaré. Quem sabe Jesus sonha em construir uma humanidade em que nenhuma viagem nos torne estrangeiros.
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A Sagrada Família é muito humana. Artigo de Tomaso Montanari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU