06 Março 2018
"Um padre idoso afeiçoado à identidade católica tradicional, o servo fiel de uma identidade clerical que cultivou por toda a vida, o primeiro ‘boicotador’ de qualquer reforma estrutural genuína de instituição" (155-156): essa definição forte, dedicada não ao Card. Burke, mas ao papa Francisco, fecha o volume do sociólogo Marco Marzano, La Chiesa immobile. Francesco e la rivoluzione mancata (A Igreja imóvel. Francisco e a revolução que fracassou, em tradução livre | Bari, Laterza, 2018). O livro é lido em um só fôlego, está escrito com brilhante fluidez e é altamente provocador. Está apoiado, basicamente, em algumas teses de caráter estritamente sociológico, que embora captando as dinâmicas reais, com as quais é bom se confrontar abertamente, não permitem apreender o âmago da identidade do Papa Francisco e da própria Igreja que ele lidera. Ao aplicar à leitura da sua ação pastoral, do contexto eclesial em que se situa e das ideias fundamentais que ele propõe um esquema meramente externo e funcional - inspirado na sociologia da organização - o autor pretende tratar a Igreja como um "objeto de investigação", similar à Amazon, ao Terceiro Reich ou a um partido político. Mas o resultado - que teria a pretensão de objetividade e de verdade, para se contrapor altivamente aos clichês dos progressistas e dos conservadores – parece-me que conduz a uma leitura certamente possível, até mesmo útil, talvez até necessária, mas totalmente insuficiente e até certo ponto, não imune a alguma distorção.
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua, publicado no blog Come se non, 03-03-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Mas, vamos por partes: primeiro vou apresentar, tanto quanto possível sine ac ira studio, a estrutura geral da obra, para depois proceder, em um segundo momento, à sua discussão e, finalmente, à indicação de alguns "pontos cegos" da análise nela contida.
O texto é construído por três capítulos. Após uma introdução concisa e de agradável leitura, com o título por si só bastante significativo de O mistério de um Papa já santo (VII-XIV), o primeiro capítulo é intitulado Francisco o reformador que fracassou (3-56) e acompanha os primeiros cinco anos de seu pontificado sobre os quatro aspectos sensíveis da "reforma": a cúria romana, a moral sexual, a questão das mulheres e o celibato sacerdotal. Em cada um desses quatro pontos a análise efetuada por Marzano identifica um design dos "dos reformadores" e uma "resistência conservadora", com respeito à qual Francisco iria manter uma posição substancialmente tradicional. Mesmo onde a descontinuidade parece mais clara, ela é admitida apenas ao custo de seu redimensionamento. O capítulo termina, portanto, com a constatação de que "uma reforma da Igreja é bastante desaconselhável e contraindicada para quem realmente se preocupa com o seu futuro" (56). Esse também é o tema central do segundo capítulo, intitulado Porque a Igreja não muda (57-92), em que uma análise sociológica sobre a Igreja como "organização burocrática" leva Marzano a questionar a necessidade da reforma, a raciocinar sobre a secularização ocidental e sobre a expansão do catolicismo no hemisfério sul e a temer a "dissolução da comunhão anglicana" como um pesadelo concreto do caminho reformador eventualmente tomado pela Igreja católica. Isso leva ao terceiro capítulo, Francisco e amizade como política (93-143), em que o autor volta a examinar o pensamento e a figura do papa, com base no princípio sociológico de "disjunção das estruturas", que de acordo com a ciência da organização permite a introdução de uma "distração" dentro do sistema: dessa forma, uma série de conteúdos importantes do Magistério de Francisco agora podem se apresentar como modalidade para distrair do fato de que as reformas não estão sendo implementadas. Tais "conteúdos" são: anticapitalismo e a "política de amizade", seja ad extra (outros cristãos), tanto ad intra (teologia da libertação e lefebvrianos). A isso se soma uma leitura agradável, tanto dos "opositores", que contribuiriam a fazer pensar, ilusoriamente, que o Papa Francisco esteja efetivamente modificando o sistema, como dos "apoiadores", que contam a fábula das oposições internas, que não permitiriam a Francisco implementar as reformas. Nas Conclusões (144-156) afirma-se categoricamente que "a Igreja permanece imóvel e que até mesmo esta última chance de mudá-la foi perdida" (144).
Para buscar uma avaliação equilibrada de tal leitura eu gostaria de começar pelo método utilizado. O autor é, como dissemos, professor de Sociologia. Uma leitura sociológica da figura do Papa e da Igreja que ele lidera é um grande enriquecimento também para a consciência eclesial, mas não pode "reduzir" a Igreja ao que não é, não pode simplificar demais a estrutura. Quero dizer que, embora sejam úteis e relevantes as observações feitas sobre o papa e a estrutura eclesiástica, se não for levada em consideração a relação que o Papa e a Igreja mantêm com o Evangelho e com a vocação, com o discipulado e o povo de Deus, com o alfa e o omega, será difícil sair de uma leitura parcial e distorcida.
Gostaria de observar, sempre a partir do ponto de vista do método, que a referência a "conteúdos cristãos" é afetada no livro por uma tendência paradoxal: as grandes reformas, com as quais Marzano mede a contribuição de Francisco, servem, ao mesmo tempo, a duas direções: de um lado mostram que não se trata de um papa revolucionário nem reformista (e já sobre isso é legítimo discordar); mas, pelo outro lado, é a própria Igreja que não solicita qualquer reforma para continuar sendo plenamente si mesma.
Aqui, como é evidente, o jogo argumentativo se torna muito arriscado: a crítica não é simplesmente "de esquerda", mas também, e ao mesmo tempo, "de direita". De esquerda, porque exigiria uma "revolução" que Francisco não pode e não quer implementar; de direita, porque a Igreja não tem nenhuma profecia, a não ser a de manter-se constante em si mesma e a certeza institucional que sobre ela é socialmente projetada. Utopia profética e religião civil coincidem na análise, e acabam encurralando Francisco e a Igreja em um canto, sem outra opção se não a de confirmar a releitura da tradição tridentina típica do século XIX, que se imporia como uma "estrutura ahistórica" que se justifica por si só, formaliter tantum.
Aqui, então, permito-me questionar a Marzano que suas categorias permanecem aquelas de uma teoria institucional, organizacional e política, que fala da Igreja apenas uma "fatia". Sem referência ao Evangelho e ao Espírito, sem referência à História e ao devir, parece difícil chegar a uma conclusão, tanto do perfil de Francisco, como da natureza da Igreja. Por outro lado, como é bem ilustrado pelas citações oportunas que Marzano anexa em nota ao seu texto, nas passagens decisivas ele depende de fontes sociológicas, de teoria institucional e política, que fortemente orientam o juízo e deixam pouco espaço aos fatos, em todos a sua complexidade e riqueza.
Eu dizia aqui que algo do método de Marzano não me convence. Especialmente, se olharmos para a organização do material. De fato, parece-me qualificante, depois de uma apresentação no primeiro capítulo, da qual se deduz um retrato muito unilateral de um "Francisco moderado" – lido substancialmente na linha daqueles que o interpretam em continuidade com os seus antecessores - e mesmo depois de um segundo capítulo, que transforma em "necessário" o que anteriormente parecia apenas como "possível" – elaborando uma teoria da Igreja como estruturalmente estática, fechada e imóvel - o terceiro capítulo apresenta características curiosamente forçadas.
Na verdade, eu me pergunto: como é possível apresentar o que é mais "típico" do magistério de Francisco - ou seja, o "princípio da misericórdia", que marca toda intervenção teórica e prática desse papado - como uma simples "manobra diversionista" - tecnicamente como uma "distração" obtida através de uma "disjunção das estruturas" – segundo a qual cada conteúdo evangélico, profético e espiritual é reduzido para superestrutura de um sistema institucional, cujo líder é obrigado a perpetuar por si só, quase independentemente de qualquer "outra" lógica?
Essa escolha não me convence, e introduz um "reducionismo" do qual talvez sofra mais a Igreja do que o próprio Francisco. Isso reduz, de forma marcante, o que é essencial e frontal para a Igreja, para superestrutura marginal, pretexto, biombo, diversivo. Isso, francamente, parece-me não só exagerado, mas o início de uma distorção na representação fiel da complexidade eclesial, na qual também Marzano parece seriamente interessado.
Nas páginas de abertura Marzano, corretamente, distancia-se da manipulação "de direita" que as suas críticas "de esquerda" poderiam sofrer. Mas aqui me parece que algo decisivo é desconsiderado. Se eu julgar a Igreja e o papa independentemente do Evangelho, reduzindo qualquer "conteúdo" a estratégia institucional, estarei contradizendo, fundamentalmente, uma das palavras mais decisivas não só do papado de Francisco, mas de toda a história da Igreja. Ou seja, a superação da "autorreferencialidade".
Pergunto-me: nisso tudo, a paixão de Francisco pelo Evangelho, onde fica? Porque, a esse respeito, Marzano assume tão acriticamente o clichê do "desinteresse" de Francisco pela teologia? Ele nem sequer suspeita que nestes cinco anos, todos nós ouvimos, em várias ocasiões, uma teologia muito mais fina e mais fresca, mais incisiva e mais ousada do que aquela que havíamos ouvido da cúpula eclesial, no meio século anterior? Pode ser simplesmente ignorado o fato de que um papa, mais de 50 anos depois do Concílio Vaticano II, em apenas cinco anos, tenha colocado em movimento, ao mesmo tempo, uma reestruturação da Cúria Romana, um repensamento da moral familiar e sexual, uma renovação do modo de pensar o papel das mulheres tanto como ministras, tanto como esposas de ministros?
O jogo de Marzano - que em parte depende do seu método sociológico, em parte pelo uso de fontes não totalmente desinteressadas – funciona assim: primeiro, pede a Francisco uma espécie de palingênese da Igreja. E não a obtém, é claro.
Por outro lado, quando algo realmente muda, então procura encontrar "precedentes" anteriores a Francisco, para negar que a novidade seja tão nova. São exemplares, nas páginas finais do livro, as longas citações de Caffara e Pierantoni contra texto Amoris laetitia. São citadas posições extremas, para demonstrar que, na realidade AL não tenha minimamente mudado a "constituição material" da Igreja, portanto de uma instituição que parece prescindir não só de Francisco, mas do próprio Evangelho!
Por outro lado, Francisco, por exemplo, no extraordinário discurso proferido no Colégio dos escritores da Civiltà Cattolica, soube falar de três características do teólogo - irrequietude, incompletude e imaginação - com uma força e com uma profundidade quase inacreditáveis, que jamais estariam presentes em "precedentes" magisteriais. Aqui, a diferença é a diferença de linguagem. Linguagem, porém, entendida não como expressão ou como diversivo, mas como experiência ou como substância. O que eu teria esperado, justamente de um sociólogo, é uma atenção mais vívida pela "tradução da tradição" que Francisco, por cinco anos, persegue corajosamente e coerentemente em seu magistério. Isso depende, em primeiro lugar, do uso de uma "linguagem diferente", em que a Igreja possa se reconhecer não tanto como "estrutura" ou "burocracia", mas como "povo" e como Noiva.
Essa Noiva do Senhor se quiser seguir o seu Líder e Mestre - que não é o Papa - deve estar disposta a se mover, deve ser capaz de voltar a tomar a iniciativa. Sempre foi assim. Às vezes, na forma do movimento de uma geleira; em outras, na liberdade de uma "pena ao vento”. Quando o Espírito sopra, a Igreja não fica parada, mas se movimenta, não para, mas se move. Essa mobilidade lhe tem permitido caminhar, por muitos séculos, no meio da história. Francisco e sua Igreja não estão imóveis. Não podem ficar parados, porque estruturalmente eles não são "por si", mas "pelo outro". Infelizmente, esse poderoso chamado para ser "pelo outro", que é tão central em Francisco, no livro não encontrou qualquer espaço. Se o papa olhar no espelho do livro, poderá apreciar muitas coisas, mas não se reconhecerá.
Por esse motivo fundamental, no final dessa leitura prazerosa, sempre estimulante e cheia de força, mesmo quando criticável, sinto vontade de dizer, quase de cantar: "A Igreja é móvel, qual pena ao vento"; para seguir o seu Senhor ela "muda de humor e de pensamento”. Assim aconteceu muitas vezes ao longo da história. Assim também aconteceu no Concílio Vaticano II, e Francisco aprendeu com esse Concílio a não fazer revolução - que será sempre irremediavelmente "fracassada" - mas a promover a reforma, da qual a Igreja sempre viveu. E dela ainda terá que viver, em novas e surpreendentes formas, sem ter medo da sua maravilhosa complexidade, sem se deixar encantar nem pelas vibrantes relutâncias dos monsenhores navegados, nem pelas estudadas teorias de sociólogos atentos.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A Igreja imóvel. Francisco e a revolução que fracassou - Instituto Humanitas Unisinos - IHU