09 Janeiro 2018
Um projeto de desenvolvimento para tirar o Brasil de sua condição periférica, é a proposta de César Benjamin, cientista político, secretário municipal de Educação do Rio de Janeiro, em artigo publicado por Folha de S. Paulo, 07-01-2018.
Para ele, diferentes mecanismos de alocação de recursos, como planejamento e mercado, devem se combinar numa economia mista. Aos políticos, na sua visão, cabe dizer não o que a sociedade é, mas o que pode vir a ser.
A economia internacional é profundamente assimétrica, a começar pelo padrão monetário em vigor: desde a década de 1970, um Estado nacional emite uma moeda fiduciária em torno da qual o sistema-mundo gravita, sem que existam instituições multilaterais que regulem e disciplinem essa emissão.
Tal anomalia tem gerado tensões e instabilidades permanentes, pois o espaço de soberania de um único Estado passou a ser, potencialmente, todo o planeta. Ocupando uma posição privilegiada nas relações com o mundo, os Estados Unidos acostumaram-se a viver muito acima dos seus próprios recursos.
Com o tempo, esse arranjo monetário e financeiro incrementou o poder de agentes econômicos que vivem desconectados da economia real. Criou-se um capitalismo administrador de dinheiro. À frente do sistema não mais estão capitães de indústria, mas gestores de ativos líquidos, que vivem imersos num ambiente de competição predatória.
A composição das carteiras que administram se altera diariamente. Apostam em tudo —no valor relativo das moedas, nos preços das commodities, nas ações em Bolsa, em pequenas variações das taxas de juros—, sempre operando em mercados futuros, inexistentes.
Criam sem parar novos produtos financeiros, cada vez mais complexos e opacos. Seus negócios se conectam em paraísos fiscais. Realizam transações que movimentam bilhões, mas que são concluídas sem que haja entrega física de nenhum bem. Fazem muitas contas, que não têm nada a ver com o cálculo econômico, pois vivem em um mundo de soma zero.
Mesmo assim, têm lucros extraordinários. No Brasil, são conhecidos pelo eufemismo de "investidores internacionais".
A imposição ao mundo dessa forma de gestão da riqueza ganhou um nome de fantasia: globalização. Exigiu a construção de um espaço financeiro homogêneo para além das fronteiras nacionais. A finança tornou-se global, mas a moeda dominante continuou nacional, o dólar.
Os países que se renderam a esse sistema volátil, sem construir salvaguardas, precisam proteger-se acumulando reservas, ou seja, esterilizando seus recursos em títulos do Tesouro norte-americano.
Financiados assim pelo mundo, puderam os Estados Unidos nas últimas décadas, ao mesmo tempo, manter déficits estratosféricos, generalizar endividamentos públicos e privados, fazer guerras, cortar impostos, ampliar o crédito e aumentar o consumo, tudo isso com um desempenho econômico medíocre, o mais baixo crescimento desde a Segunda Guerra Mundial.
Essa incrível combinação só é possível porque a dívida "externa" do país e os preços dos produtos que importa estão expressos na moeda que ele mesmo fabrica.
A segunda assimetria importante está fincada no coração dos sistemas produtivos. É o controle dos processos de inovação. Pois a conquista de vantagens sólidas nas relações de intercâmbio baseia-se na ocupação de posições que dão acesso a uma parte maior do excedente produzido no sistema-mundo.
Para manter-se na frente, um país deve conseguir estruturar sua economia em torno de atividades que gerem um ganho diferenciado, acima da média. Tais atividades, por definição, são as que não permitem grande concorrência.
Como essas atividades se alteram no tempo, a conquista e a manutenção de uma posição de vanguarda não estão ligadas, no longo prazo, ao controle de um setor, uma técnica ou uma mercadoria, mas sim à liderança do processo de inovação, ou seja, à capacidade permanente de criar novas combinações produtivas, novos processos e novos produtos.
Na esfera da economia real, o centro do sistema internacional são os poucos espaços nacionais e as poucas grandes empresas que concentram em si a dinâmica da inovação.
Eles capturam sucessivamente as posições de comando justamente porque conseguem recriá-las, obtendo benefícios extras na divisão internacional do trabalho. No outro polo, a dependência também se repõe dinamicamente.
O avanço da globalização impactou centro e periferia de forma muito diferenciada. Nos países desenvolvidos, o espaço da economia e da técnica, de um lado, e o espaço das decisões políticas, de outro, permanecem estreitamente ligados pelo vínculo entre grandes empresas e Estados fortes.
Nos demais, esses espaços se dissociam pela dispersão geográfica das cadeias produtivas, feita na presença de Estados fracos e sem corporações estratégicas de base nacional.
O Brasil aprofundou sua condição de país periférico e de economia reflexa —uma economia que apenas responde e se adapta aos ciclos do sistema internacional— ao optar por se inserir no processo de globalização pelos fluxos financeiros.
Perdemos a capacidade de controlar nosso processo de desenvolvimento, pois o espaço de manobra dos capitais errantes ultrapassa amplamente o da sociedade nacional, com a qual mantêm vínculos tênues, ligados a oportunidades específicas de realizar bons negócios.
A amplitude desse processo tem graves consequências para a dinâmica de longo prazo da economia. A primeira é a fraca capacidade de a sociedade disciplinar o impulso de acumulação de capital, subordinando-o a objetivos maiores, como a ampliação da cidadania e a sustentação do desenvolvimento.
A segunda é a radicalização da dinâmica reflexa, marcada por ajustes passivos aos ciclos internacionais. Nesse contexto, o ciclo da acumulação capitalista passa a conter uma nova exigência: generaliza-se a demanda de que, em algum momento, os lucros sejam realizáveis em moeda estrangeira, cuja oferta é instável.
Decorre daí a tendência a surtos de crescimento também instável, sujeitos a interrupções bruscas ou mesmo reversões, que nos impedem de sustentar uma trajetória de crescimento estável e robusto.
Uma incerteza exacerbada e um desenvolvimento intrinsecamente instável fazem com que o capital potencialize sua natureza especulativa e passe a exigir duas coisas: alta rentabilidade e enorme certeza no curto prazo.
A alta rentabilidade é a contrapartida exigida para que, em um sistema aberto e desregulamentado, a riqueza líquida aceite trocar a moeda melhor (o dólar) pela pior (o real), ou então —o que dá no mesmo— aceite não realizar o movimento inverso.
Isso se obtém por meio de juros reais suficientemente atrativos, que sejam um múltiplo da taxa básica paga no sistema internacional aos ativos denominados em dólar, o que penaliza permanentemente a atividade produtiva. A enorme certeza no curto prazo é a contrapartida exigida diante da incerteza estrutural, de longo prazo, que ronda a nossa economia.
A sociedade brasileira precisa decidir se continuará aceitando a condição de economia reflexa, buscando, em cada momento, estratégias oportunistas para extrair dessa condição algumas vantagens residuais, ou se deseja constituir um projeto próprio, que dê ao país capacidade decisória suficiente para dirigir o próprio destino, com uma inserção soberana no sistema internacional.
Sucessivos governos brasileiros vêm adotando a primeira opção, de adaptação subalterna. A história não recomenda esse caminho, que parece o mais fácil em cada momento, mas repõe indefinidamente dificuldades e impasses estruturais. Grandes países periféricos, como os Estados Unidos do século 19 e a China do século 20, já passaram por isso, cada um ao seu jeito, e só obtiveram êxito quando ousaram contrariar o lugar que lhes fora atribuído pela ordem internacional de seu tempo.
Fizeram profundas reformas internas. Alteraram seus sistemas de poder. Cometeram erros e aprenderam com eles. Pagaram o preço associado a essas decisões. Mas, ao fim e ao cabo, deixaram para trás a condição periférica.
O desenvolvimento resulta de longo processo de crescimento econômico, com aumento persistente da produtividade do trabalho, diversificação da estrutura produtiva e busca de maiores níveis de justiça social. Pressupõe mutações e descontinuidades que não podem ser produzidas somente pelas trocas mercantis.
Hoje, o mercado é insubstituível para otimizar o funcionamento do sistema econômico, mas é incapaz de alterar a composição e a distribuição dos estoques de riqueza. Além disso, só impulsiona as atividades produtivas que geram rentabilidade para o setor privado.
Inúmeros bens e serviços essenciais permanecem subofertados, pois os portadores dessas necessidades não têm renda monetária suficiente para estimular a produção.
Especialmente nos países retardatários, o desenvolvimento exige decisões complementares entre si, que não podem ser tomadas de forma atomizada. É necessário contar com mecanismos de coordenação supramercado que garantam a prevalência de uma visão de conjunto e de longo prazo. Isso não se confunde com a estatização da economia.
O Estado não precisa nem deve controlar diretamente a maior parte da base produtiva do país para conduzir reformas estruturais, controlar as variáveis macroeconômicas decisivas, prover bens e serviços coletivos, explorar ou regulamentar a exploração de serviços de natureza monopolista, induzir distribuição de renda e riqueza, estruturar ou apoiar conglomerados estratégicos de base nacional, estabelecer a forma de uso dos recursos não renováveis, proteger o meio ambiente, promover o progresso científico e tecnológico, regular o intercâmbio com o exterior e defender a soberania.
A sociedade deve combinar diferentes mecanismos de alocação de recursos, entre os quais o planejamento e o mercado, na forma de uma economia mista.
Diversos tipos de propriedade e de organização da produção devem existir de forma múltipla e equilibrada, inclusive a propriedade estatal, pública não estatal e privada, com generosos espaços para os empreendimentos de porte pequeno e médio, as cooperativas e todas as expressões da economia solidária.
Nada disso é novidade. As mais importantes escolas de economia são aquelas que se esforçam para combinar o impulso à acumulação de capital, de um lado, e os interesses gerais da sociedade, de outro. Eles não são incompatíveis, mas tampouco são necessariamente harmônicos. A compatibilização das duas variáveis é uma construção institucional, condição sine qua non para o desenvolvimento.
Isso se choca com o ponto de vista neoliberal, que tem predominado na luta ideológica das últimas décadas.
Segundo essa visão, o mercado deve ser soberano. Ele é visto como espaço de interação de incontáveis agentes, sem que nenhum deles possa controlar os processos de troca a ponto de impor os seus próprios fins aos demais. O governo só deve agir para preservar certas condições macroeconômicas que permitam ao mercado operar.
Fora do âmbito de cada empresa, essa escola de pensamento é hostil a qualquer ideia de metas, pois a busca de metas democraticamente definidas exige intervenção consciente nos processos econômicos e sociais, em nome de um futuro pensado, desejado, imaginado, concertado pela sociedade, e não produzido pela cega interação mercantil.
Os neoliberais apresentam-se como representantes da modernidade e do futuro, mas sua própria doutrina não lhes permite especificar a qual futuro se referem.
A alocação de recursos será ótima, dizem, se for produzida pelo livre jogo das forças de mercado, simplesmente porque esse jogo produz uma alocação qualquer, desconhecida, considerada ótima por critérios internos à própria teoria que o glorifica. Se essa alocação denominada ótima produzirá bem-estar, não se sabe.
Se a imagem do futuro que se deseja atingir permanece indefinida, inexistem pontos de referência que permitam uma avaliação rigorosa dos processos reais.
Perante qualquer dificuldade, o pensamento neoliberal aciona uma saída de emergência, com a incessante repetição de que é preciso esperar mais e insistir mais, dobrando a aposta, pois —eis aí o verdadeiro problema— o modelo ainda não foi completamente implantado.
Ora, sendo o livre mercado apenas um tipo ideal, incapaz de organizar efetivamente o conjunto da vida social, então, por definição, a implantação do modelo neoliberal está sempre incompleta.
Cria-se um discurso que, como os demais discursos ideológicos, externaliza suas dificuldades. Não depende do confronto com uma realidade que lhe seja exterior, já que abriga em si condições suficientes para se legitimar em quaisquer circunstâncias.
Paradoxalmente, os fracassos o fortalecem, pois ele sempre pode acionar sua fuga para frente: "Isso e aquilo estão atrapalhando o mercado". O argumento pode ser repetido ad infinitum, pois sempre haverá inúmeras instituições e práticas, formais e informais, que atrapalham o mercado.
Como a vida social não pode ser reduzida a operações de compra e venda, qualquer sociedade é muito mais complexa do que o mercado, qualquer uma contém, reproduz e recria inúmeras instâncias não mercantis. Elas existirão sempre e serão sempre as culpadas.
As deficiências do projeto neoliberal conduzem seus defensores à inevitável conclusão de que é preciso aprofundar esse mesmo projeto. A incapacidade de realizar-se é, ao mesmo tempo, uma fraqueza do modelo, no plano da realidade, e uma fonte do seu vigor, no plano da ideologia. Vamos à questão central: na moderna economia mundial, os países que enriqueceram acima da média são aqueles que dominaram atividades que operam com rendimentos crescentes, induzem maior divisão do trabalho, são mais propensas a absorver mudanças tecnológicas, se inserem em mercados imperfeitos, com grandes barreiras à entrada de competidores, e constituem fortes sinergias com atividades afins.
Nunca a edificação de uma economia desse tipo foi comandada por cegos impulsos mercantis. Ela sempre resultou de projetos que associavam a busca de riqueza e poder.
A indústria foi o setor por excelência em que essas características estiveram presentes. Mais recentemente, alguns segmentos do setor de serviços de alta tecnologia passaram a apresentar tais propriedades. Todos, em algum momento, foram fortemente apoiados por Estados nacionais.
A outra ponta do espectro foi historicamente ocupada pelos países pobres, cujas economias, girando em torno da agricultura e da mineração, reproduziram as características opostas, permanecendo estacionadas em graus menores de produtividade e de complexidade. É impossível transitar espontaneamente de uma configuração estrutural a outra, pois ambas se repõem e se reafirmam.
No século 20, o Brasil ocupou uma posição intermediária, mas vem perdendo posições nas últimas décadas, sofrendo processos de desindustrialização e reprimarização de sua pauta exportadora.
Mais do que nunca, o país precisa voltar a ter um projeto nacional de desenvolvimento, que não poderá ser uma repetição da experiência anterior. Desenvolvimento, no século 21, é diferente do que foi em períodos passados. Novas questões estão postas. Uma delas é o papel do conhecimento.
Há muito tempo os países mais desenvolvidos abandonaram a busca de competitividade por meios espúrios, como diminuição de salários e aumento das jornadas de trabalho —o que, com a chamada reforma trabalhista, estamos implantando aqui.
Ao contrário, suas economias absorvem cada vez mais trabalho qualificado, justamente o mais bem remunerado, e deslocam para o exterior os processos produtivos mecânicos, repetitivos e devoradores de recursos naturais.
As populações desses países dedicam-se, em proporções crescentes, a atividades de pesquisa, desenvolvimento, projeto, planejamento, educação e afins. Aumentam as atividades laborativas dedicadas ao conhecimento e à informação, lato sensu, em relação àquelas diretamente realizadas sobre a matéria.
Mesmo sem realizar atividade manual, essa inteligência coletiva adensa as cadeias produtivas e multiplica a produtividade social do trabalho. As economias desenvolvidas do século 21 são economias do conhecimento.
Também sob esse ponto de vista o Brasil está muito atrasado: nossa economia vem se especializando em gerar postos de trabalho de baixa qualificação e baixa remuneração, o que se associa a um sistema educacional repleto de deficiências. Tanto pelo lado da demanda quanto pelo lado da oferta, a situação da força de trabalho brasileira é muito precária. Essa trajetória precisa ser revertida.
Não nos iludamos: nosso lugar natural no sistema-mundo é muito periférico. O mundo quer de nós soja e outros alimentos, minério de ferro e outros minérios e, talvez, petróleo bruto, não muito mais que isso. Tentamos alterar esse lugar no século 20, com razoável esforço endógeno, mas nas últimas décadas perdemos a capacidade de fazer esse esforço.
Tornamo-nos uma nação de vontade fraca, que aceita o lugar periférico que lhe foi designado. Esse é o pano de fundo da nossa infindável crise política e dos estéreis debates em macroeconomia.
O resultado está aí: passamos da condição de economia de alto crescimento para baixo crescimento; começamos a perder a base industrial que conquistamos; reprimarizamos a nossa pauta de exportações, aprofundando a posição periférica; colocamos o Estado nacional na condição de refém do sistema financeiro; em curto período, concentramos a população em grandes cidades, desordenadamente; expandimos a fronteira agrícola até as franjas da Amazônia, também de forma desordenada, instalando nas áreas novas uma estrutura de propriedade da terra ainda mais concentrada que a das áreas de ocupação secular.
Atuando de forma combinada, esses processos lançaram o Brasil em tremendos impasses. Há um mal-estar crônico e disseminado, que de tempos em tempos se torna agudo e dramático.
As pessoas reconhecem o difícil presente em que vivem e pressentem um futuro incerto para si e para seus filhos. A vontade de transformar as circunstâncias vigentes é clara, mas o caminho para isso permanece indefinido. A necessidade de mudar fica pendente, sem se realizar nem desaparecer. Isso é a crise.
Há muitos anos essa crise experimenta idas e vindas, tendendo a agravar-se, pois a única forma de solucioná-la —fazer o povo comandar a nação, pela primeira vez, para resgatá-la, reinventá-la e desenvolvê-la— não foi alcançada.
Nossa história recente é uma impressionante sequência de promessas frustradas, que —tudo indica— se renovarão em 2018. A política deixou de ser um instrumento de transformação, reduzida a doses cavalares de marketing e de uma infindável sucessão de pequenos acordos, tudo a serviço da conquista e da preservação de posições de poder.
O futuro que daí resulta é apenas o prolongamento do presente, pois não contém o caráter novo de um verdadeiro futuro. O país marca passo, sem sair do lugar. Sob esse ponto de vista, nossos partidos políticos são todos iguais.
Em vez de políticos que se adaptam ao que a sociedade é, ou parece ser, precisamos de líderes que aceitem correr o risco de pensar no que ela não é, nem parece ser, mas pode vir a ser. Para que possamos despertar qualidades novas que estejam latentes.
Onde eles estão?
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Brasil se transformou em uma nação de vontade fraca, diz César Benjamin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU