03 Dezembro 2017
Na última quinta-feira (29), pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA) se reuniriam no campus de Belém para realizar o seminário “Veias Abertas da Volta Grande do Xingu”. No encontro, apresentariam os resultados de estudo feito com as comunidades afetadas pela hidrelétrica de Belo Monte e que sofrem, neste momento, uma nova ameaça: a instalação, em sua área, do maior projeto de extração de ouro a céu aberto do país, conduzido pela mineradora canadense Belo Sun.
A programação, no entanto, não chegou a acontecer. Dirceu Biancardi (PSDB), prefeito do município de Senador José Porfírio, na região do Xingu, ocupou o auditório acompanhado por um grupo de cerca de 40 pessoas, formado, segundo os presentes no evento, por servidores e moradores da cidade, vereadores e até um deputado estadual, Fernando Coimbra (PSD). Os pesquisadores contam que foram impedidos de expor seus trabalhos enquanto o prefeito e seus apoiadores fizeram falas agressivas em apoio à Belo Sun.
Rosa Acevedo Marin, coordenadora do projeto de pesquisa que seria apresentado na ocasião e professora titular da UFPA, diz ainda que o auditório foi trancado pelo grupo de Biancardi. “Eu quis sair da sala porque a situação estava ultrapassando os limites, mas o prefeito ordenou ao seu grupo o fechamento do auditório e ficamos 40 minutos lá”, explica. Registros do episódio circulam nas redes sociais e motivaram manifestações de repúdio da reitoria da UFPA e da OAB Pará. O Ministério Público Federal também abriu investigação para apurar o que ocorreu no campus da universidade. “Tenho muitos anos de universidade e foi a primeira vez que vi isso – pessoas confundindo a universidade com palanque”, afirma Marin.
O prefeito de Senador José Porfírio (PA), Dirceu Biancardi, fez fala a favor da mineradora canadense Belo Sun (Foto: Reprodução/Facebook)
A professora Rosa Acevedo Marin concedeu entrevista à Anna Beatriz Anjos e publicada por Pública, 01-12-2017.
Eis a entrevista.
O que aconteceu exatamente durante o seminário “As veias abertas da Volta Grande do Xingu”, no último dia 29 de novembro?
Temos um projeto chamado “Nova Cartografia Social dos Povos Tradicionais da Volta Grande do Xingu”. Ele trata tanto dos efeitos da construção da hidrelétrica de Belo Monte como deste outro projeto que é seu irmão-gêmeo, a mineração na área da Volta Grande do Xingu, que obedece ao esquema da grande mineração, da mineração industrial. Neste empreendimento está envolvida uma empresa canadense chamada Belo Sun. Temos uma série de atividades nesse projeto – levantamento de dados, materiais de imprensa – e em trabalho de campo realizamos oficinas de cartografia na Vila da Ressaca, que fica na Volta Grande do Xingu, na Ilha da Fazenda e em quatro travessões do Projeto de Assentamento Ressaca, que é parte de uma gleba chamada Itatá. Nossa proposta nos dias 28 e 29 era primeiro fazer um seminário na Universidade do Estado do Pará [UEPA] com instituições públicas, como a Secretaria do Meio Ambiente e Sustentabilidade [Semas] do estado do Pará, o Ministério Público, Incra, o SPU [Superintendência do Patrimônio da União]. Mas, principalmente, fazer indagações sobre a questão das condicionantes que incidem sobre o projeto de mineração Belo Sun.
No segundo dia, faríamos o encontro entre quatro pesquisadores, o Ministério Público Federal e representantes da Cooperativa Mista dos Garimpeiros da Ressaca, Galo, Ouro Verde e Ilha da Fazenda [Coomgrif]. Essa era a previsão, mas houve a chegada de um grupo de 40 pessoas, organizadas pelo prefeito do município de Senador José Porfírio, com um estado bastante agressivo, como se a universidade fosse a resposta às decisões políticas que eles estavam esperando em relação à implantação da Belo Sun. Essas pessoas estavam realmente fora de controle, entraram no seminário durante a primeira rodada de conversa e apresentações, quando começamos a conversar sobre a pesquisa e a forma como estava sendo conduzida. Neste momento eles perderam o controle, pensando que estávamos dispostos a desacreditar o projeto da Belo Sun. Eu quis sair da sala porque a situação estava ultrapassando os limites, mas o prefeito ordenou ao seu grupo o fechamento do auditório e ficamos 40 minutos lá. Depois disso, tentamos recuperar o clima, queríamos continuar conversando e, para a nossa surpresa, as pessoas que estavam acompanhando o prefeito não falaram, quem falou foi ele, um vereador amigo seu e um deputado estadual chamado Fernando Coimbra.
Nós não podíamos [falar], e o evento termina dessa forma, sem a realização do seminário, com coerção e insultos aos pesquisadores e pesquisadoras, e, no final, eles tomaram a palavra e ocuparam os lugares onde ficariam os pesquisadores. Depois disso, houve um pequeno intervalo em que a defensora pública Andrea Barreto fez uso da palavra para comunicar quais são as ações que está movendo a Defensoria Pública contra o projeto da mineradora Belo Sun. Conseguimos que ela falasse por quinze minutos, depois o prefeito tomou a palavra e falou por mais de vinte minutos, em seguida entrou o vereador, logo após, esse deputado estadual que já mencionei, e o evento terminou assim, com total desrespeito ao que pretendíamos – o seminário foi totalmente inviabilizado, criou-se um clima de tensão muito grande. Nós, pesquisadores, estávamos num grupo de oito: os que conseguiram entrar, porque eles fecharam a porta, e os que estavam do lado de fora não conseguiram ter acesso à sala. O seminário tinha três momentos: o primeiro para os movimentos sociais; o segundo, para os pesquisadores apresentarem seus trabalhos; e o terceiro para o público, em que eles poderiam falar.
Quais providências a senhora tomou em relação aos ataques que sofreu?
Sou servidora pública federal. Esse evento aconteceu em uma universidade púbica federal e é caracterizado como um ato contra a instituição e suas regras – um seminário tem coordenador, regras, programação, uma finalidade. Essa é a primeira questão: o tumulto criado impediu que a programação fosse realizada. Naquele mesmo espaço, ocorreu uma série de ameaças, havia um tom elevado por parte do prefeito e de seus acompanhantes. Isso realmente nos criou um constrangimento muito grande, uma coerção, nós não podíamos falar. Depois, houve outro ato grave, o fechamento da porta, que impediu nossa saída e a entrada dos nossos colegas que estavam lá fora – inclusive, uma pesquisadora precisou ir ao banheiro e foi impedida. Uma professora da universidade teve sua palavra cerceada e as pessoas gritavam para que saísse da sala, chamavam-na de velha. Por último, a ocupação do lugar: era um espaço onde podíamos estar conversando tranquilamente, apresentando nossos trabalhos, e fomos interrompidos pela presença dessas pessoas. Houve não só a violência simbólica, mas também a física, porque pessoas foram fechadas em uma sala, sem condições de sair e obrigadas a ouvir o que ele [o prefeito] estava gritando. Isso caracteriza uma situação muito complicada que nós levamos primeiramente à Polícia Federal. Hoje pela manhã [quinta, dia 30] fui chamada pelo reitor, ele solicitou que seu secretário ouvisse o meu depoimento e os dos colegas, professores e estudantes, que estavam no ato. Pelo menos durante uma hora e meia conversamos sobre esse fato. Essas questões todas circularam rapidamente porque, enquanto estávamos presos na sala, colegas chamaram a imprensa e, quando os jornalistas chegaram, foi o momento em que a porta foi liberada. Tenho muitos anos de universidade e foi a primeira vez que vi isso – pessoas confundindo a universidade com palanque.
Por que o prefeito de Senador José Porfírio se colocou tão veementemente a favor da Belo Sun, na sua opinião?
Boa parte da área do empreendimento da Belo Sun coincide com a área de Senador José Porfírio, um município também muito afetado pela hidrelétrica de Belo Monte que, por uma definição de áreas de influência, não entrou nas compensações da Norte Energia. Pouquíssimas compensações foram feitas na Vila da Ressaca, e depois de muita exigência foi colocado sistema de água e esgoto que não funciona. Então, o grupo político de Senador José Porfírio está esperando [da Belo Sun] compensações financeiras e empregos, por exemplo.
Como se deu o projeto de pesquisa “Nova Cartografia Social dos Povos Tradicionais da Volta Grande do Xingu”?
Em função do vínculo que tenho como docente da universidade desde 2012, realizamos um trabalho sobre o Baixão do Tufi, uma área que desapareceu com muita violência após a construção da hidrelétrica de Belo Monte. Neste ano, estávamos novamente em conversa com a faculdade e movimentos locais para debater essa questão da mineradora Belo Sun e decidimos fazer oficinas de cartografia social. Isso representa a forma como os agentes sociais da Volta Grande do Xingu – garimpeiros, indígenas, assentados, pescadores – encaram os efeitos do projeto, que se somará aos impactos já existentes saudados pela hidrelétrica de Belo Monte. Fizemos trabalho de campo: entrevistamos, filmamos, realizamos oficinas de cartografia e estamos, neste momento, elaborando um boletim sobre os povos e comunidades tradicionais da Volta Grande do Xingu.
Nossa reportagem esteve na região da Volta Grande do Xingu em setembro e constatou que uma parte das comunidades atingidas é a favor da vinda da Belo Sun. De que forma a mineradora consegue angariar apoio?
A empresa oferece muitas vantagens. Isso aconteceu com Belo Monte, mas agora que as casas estão rachadas, que eles [afetados] não têm mais transportes, estão observando a ilusão que é o projeto de desenvolvimento. Lamentavelmente não temos as condições de informação, de crítica para que a pessoa possa produzir uma outra posição da sua vida que não seja essa venda da necessidade, esse tipo de agenciamento. Dizíamos ontem para as pessoas não se enganarem, para não pensarem que o desenvolvimento que eles [empresas] oferecem [vai fazer com que] seus filhos e netos aproveitem algo desse projeto. É esse tipo de reflexão que não chega. O problema é esclarecer as pessoas sobre isso, e esse é o papel da universidade. O que nós pretendíamos era levar essa informação para as pessoas refletirem, quando entra [no auditório] um agente público como um prefeito com aquele tipo de postura.
Que tipos de impactos ambientais e sociais acarretaria a instalação do projeto de extração de ouro pretendido pela Belo Sun na Volta Grande do Xingu?
A primeira coisa, algo que está sendo dito repetidamente mas que eles fazem questão de apagar: a questão dos recursos hídricos que serão trazidos para viabilizar a exploração do empreendimento. Há a questão da área que será desmatada para que seja retirado o minério. Tem também uma questão social extremamente importante: nessa área da Volta Grande do Xingu, dependem do garimpo muitas famílias – na Vila da Ressaca, no Galo, na Ilha da Fazenda. Haverá uma inviabilização da vida dessas famílias. Já os efeitos ambientais ainda são poucos conhecidos. Tem ainda a questão das terras indígenas, a área da mineração é muito próxima à TI Paquiçamba, que será afetada. O depósito do rejeitos dessa exploração mineral é também problemático. Não sabemos o que vai ocorrer com a Bacia do Xingu nessa área. Essas empresas de mineração têm uma forma de atuação cega a qualquer outro debate que não seja a finalidade que desejam atingir. A mineradora Belo Sun diz que é uma indústria moderna, mas sabemos que há outras maneiras técnicas de se fazer esse tipo de exploração.
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