06 Novembro 2017
Num espaço de resistências do DF, diálogos com um pensador latino-americano que há décadas examina as lutas sociais a partir de um ponto de vista descolonizado e heterodoxo.
A reportagem é de Paíque Duques Santarém e Diego Mendonça, publicada por Outras Palavras, 05-11-2017.
Entre 4 e 9 de novembro, Raul Zibechi participa de um conjunto de debates, lançamentos de livros e ciclos de estudos no Distrito Federal. São organizados pelo Movimento Mercado Sul Vive (MSV) e outros. A programação completa pode ser consultada aqui.
Outras Palavras traduziu e publicou dez textos do autor. Conheça-os aqui.
O Instituto Humanitas Unisinos – IHU traduziu e publicou (além dos textos citados abaixo, os seguintes):
Nós acreditamos que ninguém pode vir dizer como lutar,
nada pode vir domesticar nossa rebeldia
nem colonizá-la com as verdades serviram – ou não – para outros.
Raul Zibechi, em "Descolonizar o Pensamento Crítico e as Rebeldias"
Vivemos tempos difíceis. Após um breve êxtase, em que fomos levados/as a acreditar que por muito tempo não teríamos crises estruturais, chegamos em um período em que a depressão econômica, psicológica, comunitária vem aliada a um processo de ataques violentos aos nossos direitos e sonhos de futuro. Especialmente a quem dedica parte relevante de sua vida às lutas sociais, o tempo sombrio de hoje nos apresenta uma encruzilhada: como sobreviver e pensar em futuro, uma vez que a conjuntura política do país, continente e mundo são tão assustadoras?
Surgiu agora, num conjunto de atividades que ocorrerão no Distrito Federal, uma boa oportunidade de refletir sobre estes temas cruciais. Terão como protagonista o escritor e militante social Raul Zibechi. Nascido no Uruguai, ativo desde os anos 1960, quando atuou entre os Tupamaros, viveu o exílio na Europa. Retornou à América Latina ao fim dos anos 80. Tem uma trajetória bem parecida com a de muitos/as lutadores/as das gerações anteriores à nossa. Sua diferença à maioria destes e destas são os caminhos que trilhou, distantes do poder político negociado e domesticado que foi ocupado por tantos outros. Seu caminho foi o de reconhecer os limites de sua geração e formas de luta e buscar superá-las a partir do vinculo definitivo com as diferentes lutas sociais latinoamericanas, apoiando, refletindo e aprendendo com estas mesmas.
Sua principal forma pública de militância foi a de educador e escritor: realizando atividades educativas em todo o continente e escrevendo sobre os conceitos próprios das organizações e comunidades, Zibechi tem livros relevantes sobre muitas lutas em toda América Latina, desde os/as Zapatistas, aos Mapuche, Sem Terra, Piqueteiros/as (Argentina), Cocaleiros/as (Bolívia), Organização Nacional Indígena de Colômbia, Movimento Passe Livre (Brasil), CONAIE (Equador), Periferias Urbanas, entre outras. Uma característica marcante de sua obra é a de refletir sobre a realidade não buscando enquadrar os movimentos em alguma perspectiva anterior ou pré-moldada, mas sim analisando a realidade a partir da própria conceituação criada pelas organizações em luta.
Por exemplo, no livro Genealogia da revolta – Argentina: sociedades em movimento, ele aborda como a rebelião argentina de novembro de 2001 foi constituída por anos de organização subterrânea não percebida pelas instâncias do poder. Também debate o conceito de ‘luta’ em duas dimensões: uma primeira, tradicional à esquerda, é a de luta com instância de guerra que deve submeter-se a dinâmicas hierárquicas e planejamento militar. De outro lado, enxerga a luta em sua acepção popular, como os enfrentamentos constantes e cotidianos que as comunidades realizam em favor de sua própria sobrevivência. Ele analisa como esta segunda dimensão, desprezada pela esquerda tradicional, gestou as possibilidades de uma dinâmica criativa, consolidando relações por fora e contra a dinâmica estatista burocrática e capitalista mercantil. A partir daí constituiu-se um largo processo comunitário que possibilitou a reação aos males do neoliberalismo argentino com uma potência capaz de derrubar governos e levar o país a mudanças profundas.
Entramos então em uma larga reflexão sobre as lutas continentais, dentro da chave da autonomia dos povos latinoamericanos. Compreendendo a localização histórica e características próprias deste território, observa que as organizações latinoamericanas do último período têm como principal característica não serem estadocêntricas, e sim baseadas em valores comunitários oriundos de diferentes tradições e perspectivas (as cosmovisões negras e indígenas). Suas regras, dinâmicas e processos têm forma própria. Por exemplo, desenvolvem-se em uma velocidade lenta, cheias de idas e vindas, revezes. Trata-se de organizações em constantes dinâmicas complexas internas-externas. Elas enfrentam lutas internas e externas, uma vez que suas contradições próprias são somadas aos processos de dominação colonial, estatal e capitalista.
A partir do diálogo com Frantz Fanon e outros lutadores anticoloniais, Zibechi busca realizar um vínculo entre o desenvolvimento do capitalismo e da colonialidade na América Latina, compreendendo que as instituições e percepções sociais/populares de luta anticapitalista de países não colonizados são distintas das instituições de luta anticapitalistas das sociedades coloniais. As relações com a democracia burguesa, família, território, intelectualidade e identidades são distintas, nas sociedades em que os povos oprimidos são instruídos pela colonialidade a não se reconhecerem, não desejarem-se, não afirmarem sua autenticidade. Por isso, Zibechi desenvolve uma dura crítica a quem analisa os processos locais com os olhos eurocêntricos, sem compreender as distinções da dominação e resistência locais. Não se trata, em absoluto, de abdicar da dimensão geopolítica, imperialista e global de exercício do poder. Trata-se, ao contrário, de entender como as lutas globais desenvolvem-se em diferentes espaços históricos.
Por exemplo, podemos refletir sobre sua leitura das distinções entre as formas de luta deste continente. O seu conceito de Sociedades em Movimento é uma proposta que compreende o duplo caráter das lutas sociais na América Latina: a primeira, mais comum ao conceito de movimentos sociais, é a de organizações que lutam e reivindicam direitos e questões ao Estado. A segunda (Sociedades em Movimento), que o conceito de movimentos sociais não trata necessariamente, é a de que estas organizações têm, em seus processos constitutivos, capacidade de produzir novidades e mundos novos desde suas relações sociais territoriais e constitutivas. Ou seja, a partir de um pensamento descolonizado sobre as lutas latinoamericanas, as formas próprias de luta daqui teriam potencial contrassistêmico devido às próprias relações sociais que constituem desde suas ancestralidades e cosmovisões.
Estas sociedades em movimento organizam-se nos chamados Territórios em Resistência, uma vez que seus processos passam em grande parte pelas relações comunitárias territorializadas. Aqui abre-se a possibilidade de dialogar com as diferentes formas de vínculos dos assentamentos, aldeias, quilombos tanto no campo quanto na cidade nas periferias urbanas e rurais. O espaço do território não é entendido ingenuamente como um espaço sem ações do capital ou conflitos próprios. Ao contrário: são espaços onde as práticas e relações das sociedades em movimento podem desenvolver-se e resistir às dinâmicas de dominação, aniquilação e cooptação pelo Estado e capital. Sobrevivendo à arte capitalista-colonial de governar movimentos, desenvolvem-se como Territórios de Emancipação.
Uma característica importante do pensamento de Raul Zibechi é compreender as diferentes formas de dominação e cooptação realizadas objetivamente contra nós e também os limites de alguns caminhos de resistência que empreendemos. Por um lado, o autor analisa as formas de dominação colonial-capitalista em resposta às sociedades em movimento: trata-se da Guerra de Espectro Total, que não trabalha somente a partir da ação militar para derrotar oponentes. Na verdade, a ação militar é secundarizada, frente a várias iniciativas sociais e econômicas de desestabilização comunitária. Elas incluem colaborações estatais aos movimentos, dinâmicas de cooperação com empresas e propaganda de formas capitalistas de organização como perspectiva de crescimento, supressão das dinâmicas contra-hegemônicas por formas estatistas e capitalistas de organização. São novas formas de dominação que passam por dentro das lutas antissitêmicas, convertendo suas principais energias em projetos de cooperação com o capital.
Este processo é entendido a partir da formulação zapatista sobre a “Quarta Guerra Mundial” (aquela que os donos do poder e capital movem hoje contra os povos de todo o mundo) caracterizada pelo extermínio e controle das populações de baixo por meio de uma guerra irregular de baixa intensidade. Neste sentido, a desarticulação das organizações comunitárias pelo capital é uma das mãos do processo de Acumulação por Extermínio, processo de dominação que implica no genocídio maciço das populações em resistência. O genocídio da população negra no Brasil, um processo estrutural e fundante da nação brasileira, é um motor central deste processo atual de dominação – assim como a espoliação e genocídio indígena e camponês. Zibechi não abdica em momento algum da necessidade de compreender a realidade local sob o marco estrutural do genocídio étnico-racial como elemento chave da política desde continente.
Da parte de nossas debilidades internas, o autor tem se debruçado especialmente na compreensão dos limites do projeto progressista de transformar a realidade por meio das disputas eleitorais. Zibechi analisa as fragilidades da estratégia de mudar o mundo de cima para baixo, ou seja, o projeto que utilizou as sociedades em movimento como mero trampolim para conquistas eleitoreiras ou mesmo os movimentos sociais que optaram pela disputa institucional em detrimento das lutas de baixo. Estamos vivendo, com muita dor, os limites desta estratégia nos tempos atuais. Em toda a América Latina, os governos progressistas tem sido derrubados, quando não eles mesmo implementando de uma política claramente reacionária e extrativista. A análise feita pelo autor é de que estes limites estão presentes desde antes dos processos golpistas que se desnudaram agora. Passam pela forma de construção do poder por cima, pela consolidação de gestores dissociados da luta social, pelas alianças com o modelo extrativista capitalista. Para Zibechi, o governo brasileiro recentemente golpeado, por exemplo, teve seu auge caracterizado tanto pela circulação de renda para os de baixo como também pelo seu desenvolvimento enquanto potência subimperialista latino americana (o “Brasil Potência”), reproduzindo dominações continentais e gestando o ovo da serpente que vem lhe matando por envenenamento.
Neste sentido, Zibechi oferece uma reflexão distinta sobre os ainda tumultuados eventos do Junho de 2013 no Brasil. Compreendendo a emergência de novos sujeitos sociais, a falência do modelo de mudar o mundo de cima para baixo, somada à emergência de um novo processo de dominação capitalista e de uma nova direita por meio do extrativismo, compreende-se que, se há alguma responsabilidade que possa ser atribuída aos movimentos que saíram às ruas em 2013, é justamente a de ter constituído algum facho de esperança e novas saídas aos problemas causados pelo progressismo. De acordo com sua interpretação, não foram os mascarados de 2013 que deram origem à crise econômica e política. Foram os próprios governos progressistas – a partir de sua política capitalista e conciliadora de classes – os principais responsáveis. Os movimentos e organizações sociais que saíram às ruas naquele período possibilitaram ferramentas de luta para o período turbulento que agora enfrentamos.
Se este processo nos coloca em um momento de derrotas fundamentais, ele é somente parte de um ciclo político como tantos outros, que pode ser superado por meio de nossas novas formas de resistência. Ao contrário de uma perspectiva fatalista sobre o futuro, a reflexão do autor nos oferece, por meio da descrição de inúmeras práticas e iniciativas de diferentes comunidades, pistas sobre como podemos sobreviver aos limites do nosso tempo histórico. Uma resistência criadora, que possibilita a emergência de novas formas societárias. Os golpistas não venceram o conflito, pelo contrário: eles têm um desafio maior que o nosso de sustentar um sistema político próximo do colapso. A esperança ainda está do nosso lado.
Raul Zibechi realizará nos próximos um conjunto de atividades no Distrito Federal. Lançará seu livro Os limites do progressismo: sobre a impossibilidade de mudar o mundo de cima para baixo. Acreditamos que seus conceitos ajudem a dialogar com o tipo de conjuntura e lutas que enfrentamos localmente. Aqui vivemos um processo social em que as disputas sociais são territorializadas em um DF com núcleos urbanos distantes entre si; com uma centralização segregadora dominada pela especulação imobiliária; com a trajetória de uma esquerda apartada entre aquela que só realiza dinâmicas no centro, vinculadas ao poder e a outra que está esquecida em trabalhos invisibilizados nas periferias e quebradas; por uma dinâmica política que se alimenta das lutas sociais para converter-se em poder estatal e que não ataca em nada a exploração econômica; além de diversas iniciativas e lutas que têm resistido territorialmente aos avanços do capital em sua atual forma imobiliária especuladora.
A esquerda do DF assistiu, além de seus processos locais penosos, às últimas grandes vitórias do retrocesso. Aqui foi aprovado o conjunto do processo de golpe (da limitação dos gastos sociais, da contrarreforma trabalhista, do genocídio indígena). As mobilizações contra estes processos, acompanhadas por uma brutal repressão policial, marcaram a todos e todas. Igualmente passamos por um processo local de avanço neoliberal, em uma aliança cada vez mais explícita entre gestores nascidos na esquerda e setores mais pujantes do avanço capitalista. A esquerda do DF e de seu entorno vive uma situação própria e muito complicada de luta.
Será possível que a partir de nossa trajetória de lutas e conquistas (Cotas Raciais; Passe Livre Estudantil; Ocupação da reitoria da UnB; a campanha Fora Arruda; o Santuário dos Pajés; o Mercado Sul Vive; as ocupações estudantis; as greves radicalizadas no setor público; os movimentos periféricos, negros, feministas; as ações culturais, saraus, batalhas) poderemos resistir à guerra de espectro total que enfrentamos? Cabe aqui a formulação: nossos territórios são de resistência e emancipação? O conceito de Sociedades em Movimento nos ajuda a lutar, pensando em dinâmicas de luta que constituam um mundo outro? Estamos em um processo de lutas que constroem outro futuro, enfrentando as dinâmicas coloniais, ou estamos reproduzindo inconscientemente formas dominadas de ação?
Certamente Raul Zibechi não responderá a estas questões. Trata-se somente de um militante, escritor, com seus próprios limites pessoais e localizações históricas (sim, trata-se de um homem cis hétero branco e letrado). Todavia seu processo de produção intelectual, difusão de práticas de outras lutas e formas de organização podem nos ajudar a refletir sobre nossos problemas e os fenômenos gerais que nos afligem. A responsabilidade por superar nossos desafios continua sendo nossa. Este “nós”, ainda indefinido, pode ser estendido pelo continente, diáspora, classe. Simultânea e conjuntamente.
Alguns artigos Publicados:
1) ZIBECHI, R. Quando a esquerda é o problema. IHU Online, Unisinos, Vale do Rio dos Sinos (RS), 17 abr., 2017. Disponível aqui.
2) ZIBECHI, R. Acumulação por extermínio. IHU Online, Unisinos, Vale do Rio dos Sinos (RS), 13 jul., 2016. Disponível aqui.
3) ZIBECHI, R. Os Estados Unidos ganham no Brasil. IHU Online, Unisinos, Vale do Rio dos Sinos (RS), 28 out., 2015. Disponível aqui.
4) ZIBECHI, R. Um novo ciclo de lutas. IHU Online, Unisinos, Vale do Rio dos Sinos (RS), 27 out., 2015. Disponível aqui.
Entrevistas
5) INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS. A opção que não transformou e que perdeu o fôlego: entrevista especial com Raúl Zibechi. IHU Online, Unisinos, Vale do Rio dos Sinos (RS), 27 mar., 2016. Disponível aqui.
Livros Publicados
6) Centro de Estudios para el Desarrollo Laboral y Agrario – CEDLA. Cambiar el mundo desde arriba: Los límites del progresismo | Por Decio Machado e Raúl Zibechi. – La Paz: CEDLA, 2016.
7) ZIBECHI, R. Territórios em resistência: cartografia política das periferias urbanas latino-americanas – Rio de Janeiro: Ed. Consequencia, 2015.
Outros Títulos
8) ZIBECHI, R. Descolonizar El pensamiento crítico y las prácticas emancipatorias, 2015.
9) ZIBECHI, R. Brasil potência – Entre a integração regional e um novo imperialismo, 2012.
10) HARDT, Michel; ZIBECHI, R. Preservar y compartir – Bienes comunes y movimientos sociales, 2012.
11) ZIBECHI, R. Autonomías y emancipaciones – América Latina en movimiento, 2008.
12) ZIBECHI, R. Genealogia de la revuelta – Las zonas grises de las dominaciones y las autonomías, 2003.
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Para conhecer Raul Zibechi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU