03 Novembro 2017
“Falar de uma contribuição cristã para o futuro do continente significa antes de tudo se perguntar sobre nossa tarefa como cristãos hoje, nestas terras tão ricamente moldadas ao longo dos séculos pela fé". Assim começou o discurso o Papa Francisco proferido na tarde do último sábado e publicado no dia 31 de outubro pelo Osservatore Romano. Na nova sala do Sínodo, havia sido organizada pela Chancelaria de Estado uma reunião com um grande público, representativo de muitas personalidades europeias e intitulado (Re) Thinking Europe.
Um discurso feito, como destaca o jornal do Vaticano, por muitos tijolos: o Papa abordou os problemas que estão travando e destruindo a própria ideia de Estado federativo e todas as soluções e esperanças para fazê-lo reviver. O título que já mencionamos (Repensar a Europa) indica o quão desafiador seja o discurso de Francisco. O Papa é católico e cristão, mas quando aborda temas como este o seu olhar inclui todos, todas as religiões e cada um de nós.
O comentário é de Eugenio Scalfari, fundador do jornal italiano La Repubblica, publicado no mesmo jornal, 01-11-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Ele não fala de uma Europa cristã, embora tenha sido tal religião que reconstruiu o nosso continente algumas décadas depois da queda do Império Romano. Francisco pensa em uma Europa unida, uma "Comunidade" - assim a chama – na qual participam juntos todos, religiosos e leigos. E os temas a serem enfrentados e os objetivos a serem alcançados são examinados por Francisco com muita atenção.
O primeiro é a diferença entre o indivíduo e a pessoa. Pareceriam dois sinópticos, no entanto, são duas figuras diferentes: o indivíduo é dominado por um Eu que centraliza toda a realidade e tenta conduzi-la para a sua vantagem egoísta; ao contrário, a pessoa está consciente dos problemas que afligem a sociedade em que vive e deseja resolvê-los alcançando assim o seu próprio bem e dos outros. O Papa chama-a de Comunidade e lembra que foi esse o primeiro ato no sentido de uma Europa unida: a Comunidade do Carvão e do Aço cujos primeiros fundadores foram Itália, Alemanha, França e Benelux (Bélgica, Holanda e Luxemburgo). Esses foram os fundadores da primeira Comunidade, à qual rapidamente se uniram outros, até se tornem 28 e agora 27 com a saída da Inglaterra. Aqui está o primeiro tijolo, a redescoberta do sentido de pertencimento a uma Comunidade.
O segundo tijolo relacionado à situação atual da Europa é o seguinte: a tendência hoje difundida não só na Europa, mas em todo o Ocidente, de viver em liberdade, mas dando a esse valor essencial uma interpretação que o avilta e o transforma em uma tendência negativa: a liberdade de estar desatrelado de qualquer vínculo; dessa forma construiu-se uma sociedade desenraizada, desprovida de qualquer sentimento de pertencimento. Assim vivem e pensam as classes dominantes e os povos da Europa, com a consequência que estão aumentando movimentos populistas e antieuropeus.
Francisco enfrenta aqui um tema incomum para um Papa: a importância da política. E sobre isso ele afirma: "Lembram-se do que era antigamente a ágora política? A praça é a pólis, não só um espaço de trocas econômicas, mas também o centro nervoso da política, foro em que eram elaboradas as leis para o bem-estar de todos, local em que se situava o templo para que à dimensão crescente da vida cotidiana nunca faltasse o sopro transcendente que guia para além do efêmero, do passageiro, do provisório".
O efêmero, segundo Francisco, transforma a política de um pensamento repleto de ideais e valores em um tráfico de interesses da pior espécie, oferecido ao poder. Dessa forma, a política, em vez de se identificar com o interesse geral, permite a implantação dos interesses particulares, o pior do pior, que irá tornar cada vez mais forte o soberanismo das Nações, dos partidos individuais e dos seus líderes. A política se reduz a instrumento de negócios e interesses privados. Nessa condição, a Europa, a verdadeira, nunca poderá nascer.
O Papa Francisco, continuando seu discurso, recomenda o diálogo que em sua opinião é uma responsabilidade fundamental da política. Caso venha a faltar, se transformaria em um confronto com as forças contrárias: "À voz que dialoga substituir-se-iam os clamores das próprias reivindicações Encontram assim terreno fértil as orientações extremistas e populistas que fazem do protesto o coração de sua mensagem sem, no entanto, oferecer a alternativa de um programa construtivo". Pessoalmente, não sei se Francisco tinha em mente a imagem do que são na Itália os ‘grillini’, mas ouvindo as palavras já relatados fica perfeitamente descrito o Movimento 5 Stelle e também o de Salvini. Dessa forma destroem-se as pontes e se constroem os muros e isso também reconduz - sem que o Papa o enfatize - à mensagem cristã que deveria, ao contrário, – no que lhe diz respeito – dedicar-se à construção de uma sociedade firmemente democrática, modernizando ao mesmo tempo a religião e a mentalidade secular.
A conclusão é a seguinte: "Uma União Europeia que ao enfrentar a sua natureza não tivesse consciência da necessidade de ser uma única Comunidade que se sustenta apenas na defesa dos interesses gerais, e não aqueles de pequenos grupos dedicados unicamente ao interesse próprio, perderia não só os desafios importantes da sua história, mas também a maior oportunidade para o seu destino".
Esse não foi um discurso, mas uma mensagem, inclusive para o seu clero, para que se mobilize, mas principalmente para os povos, para as suas classes dirigentes e, portanto, à Europa para que desperte da hibernação e veja o perigo de prolongar a situação de hoje e a necessidade de se repensar. Este é o momento e não se pode adiar.
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O grito de Francisco para despertar a Europa da hibernação. Artigo de Eugenio Scalfari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU