25 Agosto 2014
Costeando falhas de tensão e conflitos esquecidos, ou percebidos como exóticos por grande parte da opinião pública ocidental, a passagem ao Oriente do Papa Francisco relançou perspectivas de reconciliação, de unidade e de paz que não valem apenas para o quadrante da Ásia Oriental.
A reportagem é de Stefania Falasca, publicada no jornal Avvenire, 21-08-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O caminho sugerido pelo papa, na esteira do minimalismo evangélico e do discernimento realista dos contextos, se move em uma direção totalmente diferente em relação aos cultores de conflitos permanentes, reportados até por aqueles que encontram neles um pretexto de afirmação identitária.
A mesma resposta dada em relação à licitude dos bombardeios norte-americanos no Iraque, durante a coletiva de imprensa realizada durante o voo de volta de Seul, tornou indisponível toda cobertura teológico-religiosa aos corifeus e aos defensores do choque de civilizações. Na mesma linha devem ser captados os sinais de abertura no horizonte de uma possível relação com a China, um dos arquivos mais atormentados para a diplomacia vaticana.
Francisco abriu e continua abrindo portas. Mas – como veio à tona com clareza nessa viagem à Ásia oriental – ele certa e definitivamente fechou uma porta atrás de si: a identificação exclusiva do cristianismo com a civilização ocidental, tornando manifesto o que está contido na Evangelii gaudium em um dos pontos centrais ligados ao anúncio do Evangelho.
Lá onde o papa explica que "não faria justiça à lógica da encarnação pensar num cristianismo monocultural e monocórdico" e adverte a própria Igreja contra o fato de cair "na vaidosa sacralização da própria cultura", porque com isso podemos "mostrar mais fanatismo do que autêntico ardor evangelizador" (n. 117).
E repete várias vezes que "o anúncio cristão não se identifica de maneira exclusiva com nenhuma cultura", nem mesmo com aquelas que "estiveram intimamente ligadas à pregação do Evangelho e ao desenvolvimento do pensamento cristão".
São reflexões que se refletem em diversos documentos magisteriais de João Paulo II, pontualmente citados pelo Papa Bergoglio. Mas mesmo Ratzinger, ainda antes de se tornar papa, nunca se alinhou com aqueles que queriam rebaixar o cristianismo a uma ideologia do Ocidente. Dentre outras coisas, o então prefeito do ex-Santo Ofício tinha se distanciado explicitamente da tentativa de aplicar à operação Iraq Freedom as categorias doutrinais da "guerra justa".
E em outubro de 2004, em um debate público com Ernesto Galli della Loggia, ele tinha escapado da pressão do interlocutor que queria identificar a causa do Ocidente avançado com a da Igreja, esclarecendo e afirmando que "a Igreja substancialmente não pode se reconhecer na categoria Ocidente: seria equivocado historicamente, empiricamente, ideologicamente".
A universalidade da fé católica, por sua natureza alheia aos vínculos de exclusividade com civilizações e culturas, foi também fortemente reafirmada no Concílio Vaticano II.
A pregação, as escolhas concretas e os gestos do Papa Francisco na Coreia do Sul já eclipsaram todas as referências até mesmo inconscientes ao automatismo que identifica a Igreja Católica como correlato religioso do Ocidente. E, certamente, a atitude de paciente empatia, pronto para servir e acompanhar as pessoas no seu caminho, a atitude de abrir circunstâncias de conciliação, a tangível distância de poses neolegitimistas podem explicar a atenção e a abertura de crédito que o papado de Bergoglio também acendeu agora no Oriente.
Basta rever as imagens e ouvir novamente as suas palavras, especialmente aquelas dirigidas aos bispos, onde ele reitera que os cristãos não são movidos por nenhum espírito de conquista: "Eles não vêm como conquistadores, não impõem modelos culturais, nem são movidos por estratégias. Eles trazem no coração, acima de tudo, o anúncio do Evangelho, não a mudança de regimes políticos".
Nenhum encastelamento ou anexação, nem invasões de campo, portanto, nenhuma atitude de quem dá lições ou cultiva projetos de hegemonia. Nenhuma postura xenófoba que faça com que se perceba a fé cristã como um produto cultural de importação estranho aos contextos sociais e humanos asiáticos.
E isso não por tática, mas porque o diálogo humano autêntico, a empatia, a abertura ao outro, a todos, o respeito que marcaram a sua presença na Ásia, pelo Papa Francisco, são conaturais à fé, estão inscritos nos cromossomos da tradição católica.
Sabiam muito bem disso Matteo Ricci e os seus companheiros que, já no século XV, como "verdadeiros homens pacíficos", tinha ido para além da Grande Muralha, semeando a esperança cristã, não fazendo proselitismo e não impondo a fé a ninguém.
É o que João XXIII repetia no seu "testamento missionário" – o discurso ao Conselho Geral das obras missionárias em 1963 – com o qual trazia à tona a essencialidade do anúncio evangélico na obra dos missionários que "vão pelas estradas do mundo não para assujeitar", "não para dividir entre si a terra em zonas de influência ou de interesse, mas para servir".
E também o que observava Bento XV, quase um século atrás, na carta apostólica Maximum illud, ditada justamente pelas observações que lhe haviam chegado dos missionários na China, na qual ele ressaltava a obra missionária, determinada acima de tudo "pelo acompanhamento do dom do Espírito Santo e não pela necessidade de recrutar militantes", e advertia aqueles que levavam a induzir uma população "a crer que a região cristã é algo que pertence a uma nação estrangeira qualquer, em que, ao abraçá-la, a pessoa parece se colocar sob a proteção e o poder de outro país".
Tudo isso também ajuda a ter um olhar sobre as sofridas histórias dos povos do Oriente Médio. Contra o pano de fundo da equação cristianismo-civilização ocidental, o interesse midiático muitas vezes apresentou e tratou os cristãos daquela região como se fossem soldados de um exército dispersos no território inimigo. E as situações dolorosas que hoje envolvem os cristãos no Iraque são automaticamente catalogadas sob a sigla do "choque de civilizações".
Portanto, não pode passar para o segundo plano a ênfase dada pelo papa durante a coletiva de imprensa no voo de volta para Roma de que aqueles que são objeto de violência naquele região "são homens e mulheres de diversas minorias religiosas, não só a cristã, e todos são iguais diante de Deus".
Não se pode identificar com o Ocidente cristãos autóctones que, há 20 séculos, são cidadãos dos países do Oriente Médio e usá-los como pretexto "para se apossar de povos", fazendo "guerras de conquista". E apresentar o que está acontecendo no Iraque como um acerto de contas entre cristianismo e Islã, invocando novas cruzadas, é mistificação que instrumentaliza ideologicamente até mesmo o martírio.
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''Cristianismo'' = ''Ocidente'': Francisco arquiva a equação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU