17 Outubro 2017
A crise espanhola é a manifestação mais flagrante (depois do Brexit e da eleição de Trump) da confusão mental que está se espalhando no espaço político das sociedades democráticas. A confusão leva a ações imprudentes, cujo caráter forçado, compulsivo, mais que impulsivo, encontra um aparente significado no interesse pessoal de quem as executa. Puigdemont se encaminhou para a instituição da Catalunha como estado independente no meio de uma grave divisão de sua população e sem qualquer ideia clara em mente, com um ato forçado e irresponsável ao qual confiou seu futuro político. Rajoy respondeu simetricamente, com igual improvável viés franquista, na esperança de coagular em torno de seu governo minoritário um consenso nacionalista.
O comentário é de Sarantis Thanopulos, psiquiatra e psicanalista greco-italiano, publicado por Il Manifesto, 14-10-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Esses são cálculos de pura sobrevivência, como a maior parte dos gestos e projetos, supostamente políticos, em nosso país, onde a tradicional prudência, misturada com astúcia, beira o comportamento autoritário, mas nem por isso desacelera o processo de progressiva degradação das instituições e da sociedade civil.
Uma crise identitária está minando o nosso movimento no mundo e nos impele a ficar imóveis à espera que eventos externos decidam o nosso destino. Puigdemont e Rajoy espelham um ao outro em sua imobilidade, com que escondem a própria miopia e evitam responder quem são politicamente e se realmente existem.
O senso de identidade é geralmente entendido em sentido defensivo como um senso de pertencimento a si ou a uma comunidade definida e delimitada. Na verdade, o pertencimento a si é, desde o vínculo originário com o corpo materno, um vínculo de co-pertencimento que abole (transitoriamente) os limites, mas se sustenta (silenciosamente) sobre a diferença. O núcleo essencial do senso de identidade é o pertencimento como pressentimento de liberdade nos vínculos. O pressentimento materializa-se no movimento de extroversão de si próprio que o desejo direcionado ao outro imprime à nossa existência.
A identidade na sua expressão completa é presença em si reconhecida, que se realiza ao sair de si próprio, ao nos tornarmos excêntricos a nós mesmos. O reconhecimento de si próprio e do outro é incompatível com o isolamento e com a estaticidade (exceção feita para os necrotérios). É possível apenas em termos de reciprocidade nas trocas. Identidade e troca são inseparáveis, a primeira é profundamente afetada pelas alterações da segunda.
A globalização tem varrido toda forma paritária nas trocas, impondo-se como brutal opressão do mais fraco pelo mais forte. A sensação de identidade - dos indivíduos, dos grupos, das comunidades, das nações – torna-se liquefeita: perdido o vínculo com a rede de relações baseadas na reciprocidade, a imagem de si desfoca-se nas bordas, torna-se embaçada, confusa, vaga. Vai em busca de formas/recipientes e a passagem camaleônica de uma para a outra, por um lado, dá a ilusão do movimento de autodeterminação e, do outro, protege contra a exposição a uma verdadeira confrontação da relação com a realidade que iria revelar o vazio.
As identidades 'líquidas', no entanto, são um fenômeno de superfície, mesmo quando sinalizaram de antemão os processos subterrâneos que emergem hoje. Sob as suas liquefações as identidades tornam-se esclerosadas, reduzem-se a um senso de pertencimento diminuído. Retraem-se em si para fugir do processo de dissolução das relações que as agridem e acabam por apoiá-lo. A independência combate a escravidão, não compactua com sua forma mais invisível que também é a mais feroz.
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Uma crise identitária chamada independência - Instituto Humanitas Unisinos - IHU