08 Outubro 2017
“A rede [Internet] abriu um espaço novo e de grande alcance para a livre expressão e o intercâmbio de ideias e informação. E é certamente um bem, mas, como vemos, também ofereceu novos instrumentos para atividades ilícitas horríveis e no âmbito que nos ocupa, para o abuso e o dano à dignidade dos menores, para a corrupção de suas mentes e a violência a seus corpos. Aqui, não se trata de exercício da liberdade, mas de crimes, contra os quais devemos proceder com inteligência e determinação, ampliando a cooperação entre os governos e as forças da ordem em nível global, na mesma medida em que a rede se tornou global”, manifesta-se o Papa Francisco em sua audiência com os participantes do Congresso A dignidade das crianças no mundo digital, que aprovou a chamada Declaração de Roma em defesa dos menores na Internet.
A mensagem é publicada pela Sala de Imprensa do Vaticano, 06-10-2017. A tradução é do Cepat.
“Senhores Cardeais,
Senhor Presidente do Senado, Senhora Ministra,
Senhores Bispos, Reitor Magnífico,
Senhores Embaixadores, distintas Autoridades, Professores,
Senhoras e Senhores,
Quero agradecer ao Reitor da Universidade Gregoriana, P. Nuno da Silva Gonçalves, e à representante dos jovens por suas afáveis e interessantes palavras de introdução ao nosso encontro. Agradeço a todos por sua presença aqui nesta manhã, por terem comunicado os resultados de seu trabalho e seu compromisso em enfrentar juntos, pelo bem das crianças de todo o mundo, um novo e grave problema, característico de nosso tempo. Um problema que ainda não havia sido estudado e discutido colegialmente, com a contribuição de tantas pessoas especializadas e figuras com responsabilidades diferentes, como fizeram nestes dias: o problema da proteção eficaz da dignidade dos menores no mundo digital.
O reconhecimento e a defesa da dignidade da pessoa humana é o princípio e o fundamento de toda ordem social e política legítima, e a Igreja reconheceu a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) como “um marco no caminho do progresso moral da humanidade” (cf. Discursos de João Paulo II na ONU, 1979 e 1995). Na mesma linha, conscientes de que as crianças são as primeiras que precisam receber atenção e proteção, a Santa Sé saudou positivamente a Declaração dos Direitos da Criança (1959) e aderiu à correspondente Convenção (1990) e aos dois Protocolos facultativos (2001). A dignidade e os direitos das crianças devem ser protegidos pelos ordenamentos jurídicos como bens extremamente valiosos para toda a família humana (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 244-245).
Portanto, sobre estes princípios estamos plena e firmemente de acordo, com base neles devemos trabalhar também de modo coeso. Temos que fazer isto com determinação e com verdadeira paixão, olhando com ternura para todas as crianças que vem ao mundo, todos os dias e em todas as partes, e que têm necessidade sobretudo de respeito, mas também de cuidado e afeto para crescer em toda a maravilhosa riqueza de suas potencialidades.
A Escritura nos fala da pessoa humana criada por Deus à sua imagem. Que outra afirmação mais categórica é possível fazer sobre sua dignidade? O Evangelho nos fala do afeto com o qual Jesus acolhia as crianças, tomando-as em seus braços e as abençoando (cf. Mc 10,16), porque “daqueles que são como elas é o reino dos céus” (Mt 19,14). E as palavras mais fortes de Jesus são precisamente ao que escandaliza os pequenos: “Seria melhor pendurar uma pedra de moinho ao pescoço e se lançar ao fundo do mar” (Mt 18,6). Portanto, devemos nos dedicar a proteger a dignidade das crianças com ternura, mas também com grande determinação, lutando com todas as forças contra essa cultura do descarte que hoje se manifesta de muitas maneiras, em detrimento sobretudo dos mais fracos e vulneráveis, como são justamente os menores.
Vivemos em um mundo novo, que quando éramos jovens nem sequer poderíamos imaginar. Nós o definimos com duas palavras simples: “mundo digital – digital world”; é o fruto de um esforço extraordinário da ciência e da técnica, que em poucas décadas transformou nosso ambiente de vida e nossa forma de nos comunicar e de viver, e está transformando, em certo sentido, nosso próprio modo de pensar e de ser, influenciando profundamente na percepção que temos de nossas possibilidades e nossa identidade.
Por um lado, estamos como que admirados e fascinados pelo maravilhoso potencial que nos abrem, por outro, sentimos temor e talvez medo, quando vemos a forma rápida como avança este desenvolvimento, os problemas novos e imprevistos que nos coloca, as consequências negativas – quase nunca desejadas e, no entanto, reais – que traz consigo. Com razão, perguntamo-nos se somos capazes de conduzir os processos que nós mesmos colocamos em marcha, se não estão escapando de nossas mãos, se estamos fazendo o suficiente para os ter sob controle.
Esta é a grande questão existencial da humanidade de hoje frente aos diversos aspectos da crise global, que é ao mesmo tempo ambiental, social, econômica, política, moral e espiritual.
Vocês se reuniram, representantes de diversas disciplinas científicas, de diferentes áreas de trabalho nas comunicações digitais, no direito e na política, justamente porque são conscientes da importância destes desafios relacionados ao progresso científico e técnico, e com ampla visão, concentraram sua atenção sobre este desafio, que é provavelmente o mais importante de todos para o futuro da família humana: a proteção da dignidade dos jovens, de seu crescimento saudável, de sua alegria e de sua esperança.
Sabemos que, hoje em dia, as crianças representam mais de um quarto dos mais de três bilhões de usuários da Internet, o que significa que mais de 800 milhões de crianças navegam pela rede. Sabemos que apenas na Índia, nos próximos dois anos, mais de 500 milhões de pessoas terão acesso à rede, e a metade delas serão menores. O que é que encontram na rede? E como são considerados por aqueles que, de tantos modos, têm o poder sobre a rede?
Devemos estar de olhos abertos e não ocultar uma verdade que é desagradável e que não gostaríamos de ver. Por outro lado, não compreendemos muito bem, nestes anos, que ocultar a realidade do abuso sexual é um gravíssimo erro e fonte de tantos males? Então, olhemos a realidade do modo como a viram nestes dias. Na rede, estão sendo propagados fenômenos extremamente perigosos: a difusão de imagens pornográficas cada vez mais extremas, porque com o vício se eleva o umbral do estímulo; o crescente fenômeno do sexting entre garotos e garotas que utilizam as redes sociais; a intimidação que ocorre cada vez mais na rede e que representa uma autêntica violência moral e física contra a dignidade dos demais jovens; a sextortion. A captação de menores, por meio da rede, com finalidades sexuais já é um fato do qual as notícias falam continuamente, até chegar aos crimes mais graves e chocantes da organização on-line do tráfico de pessoas, da prostituição, inclusive da preparação e da exibição ao vivo de estupros e violência contra menores, cometidos em outras partes do mundo.
Portanto, a rede tem seu lado obscuro e regiões obscuras (a dark net), onde o mal consegue atuar e se expandir de maneira sempre nova e cada vez com maior eficácia, extensão e capilaridade. A antiga discussão da pornografia por meios impressos era um fenômeno de pequenas dimensões se comparado ao que está acontecendo hoje em dia, de maneira cada vez mais crescente e rápida, através da rede. Vocês falaram claramente sobre tudo isto, de maneira documentada e em profundidade, por isso nós os agradecemos.
Certamente, diante de tudo isto ficamos horrorizados. Mas, lamentavelmente, também estamos desorientados. Como bem sabem e assim nos ensinam, a característica da rede é seu caráter global, que cobre todo o planeta, ultrapassando todas as fronteiras, sendo cada vez mais capilar, alcançando em qualquer parte todos os tipos de usuários, incluindo as crianças, por meio de dispositivos móveis cada vez mais ágeis e fáceis de manejar. Por isso, agora, ninguém no mundo, nenhuma autoridade nacional por conta própria, sente-se capaz de abarcar adequadamente e de controlar as dimensões e a evolução destes fenômenos, que se entrelaçam e se conectam com outros problemas dramáticos relacionados à rede, como o tráfico ilegal, o crime econômico e financeiro, o terrorismo internacional. Inclusive, de um ponto de vista educacional, sentimo-nos desorientados, já que a velocidade do desenvolvimento deixa “fora do jogo” as gerações mais velhas, fazendo com que se torne muito difícil ou quase impossível o diálogo entre as gerações e a transmissão equilibrada das normas e da sabedoria de vida adquirida com a experiência dos anos.
<PContudo, não devemos nos deixar dominar pelo medo, que sempre é um mau conselheiro. E muito menos deixar que nos paralise o sentimento de impotência que nos oprime frente à dificuldade da tarefa. Somos chamados, ao contrário, a nos mobilizar juntos, sabendo que necessitamos uns dos outros para buscar e encontrar o caminho e as atitudes adequadas que ajudem a dar respostas eficazes. Devemos acreditar que “é possível voltar a ampliar a visão, e que a liberdade humana é capaz de limitar a técnica, orientá-la e colocá-la a serviço de outro tipo de progresso mais sadio, mais humano, mais social, mais integral” (Enc. Laudato Si’, 112).
Para que esta mobilização seja eficaz, convido-lhes a resistir com decisão alguns possíveis erros de perspectiva. Limito-me a destacar três.
O primeiro é o de subestimar o dano que os fenômenos antes mencionados fazem aos menores. A dificuldade para resolvê-los pode nos fazer cair na tentação de dizer: “No fundo, a situação não é tão grave...”. Mas, os avanços na neurobiologia, na psicologia e na psiquiatria nos levam a destacar o profundo impacto que as imagens violentas e sexuais têm nas dóceis mentes das crianças, a reconhecer os transtornos psicológicos que se manifestam no crescimento, as situações e comportamentos de vício, de autêntica escravidão resultantes do abuso no consumo de imagens provocativas ou violentas. São transtornos que repercutirão fortemente durante toda a vida das crianças atuais.
E, aqui, permitam-me fazer uma observação. Com razão, insiste-se na gravidade destes problemas para os menores, mas como consequência se pode subestimar ou tentar fazer esquecer que também ocorrem problemas com os adultos e que, embora para os ordenamentos jurídicos seja necessário um limite que distinga entre o menor e o maior de idade, isso não é suficiente para enfrentar os desafios, porque a difusão de uma pornografia cada vez mais extrema e outros usos impróprios da rede não só causam transtornos, vícios e danos graves inclusive entre os adultos, como também afeta a representação simbólica do amor e das relações entre os sexos. E seria um grave engano pensar que uma sociedade na qual o consumo anômalo de sexo na rede se estende entre os adultos será capaz de proteger eficazmente os menores.
O segundo erro é o de pensar que as soluções técnicas automáticas, os filtros construídos com base em algoritmos cada vez mais sofisticados para identificar e bloquear a difusão de imagens abusivas e daninhas são suficientes para enfrentar os problemas. Certamente, estas são medidas necessárias. Sem dúvida, as empresas que proporcionam a milhões de pessoas redes sociais e dispositivos informáticos cada vez mais potentes, capilares e velozes, investiram nisso uma parte proporcionalmente grande de seus numerosos ingressos. Mas, também é necessário que, dentro da própria dinâmica do desenvolvimento técnico, seus atores e protagonistas percebam com maior urgência, em toda a sua amplitude e em suas diversas implicações, a força da exigência ética. E é aqui que nos deparamos com o terceiro possível erro de perspectiva, que consiste em uma visão ideológica e mítica da rede como reino de liberdade sem limites.
Precisamente, entre vocês há também representantes daqueles que precisam elaborar as leis e daqueles que precisam fazer com que sejam cumpridas para garantir e proteger o bem comum e o das pessoas. A rede abriu um espaço novo e de grande alcance para a livre expressão e o intercâmbio de ideias e informação. E é certamente um bem, mas, como vemos, também ofereceu novos instrumentos para atividades ilícitas horríveis e no âmbito que nos ocupa, para o abuso e o dano à dignidade dos menores, para a corrupção de suas mentes e a violência a seus corpos. Aqui, não se trata de exercício da liberdade, mas de crimes, contra os quais devemos proceder com inteligência e determinação, ampliando a cooperação entre os governos e as forças da ordem em nível global, na mesma medida em que a rede se tornou global.
Vocês conversaram sobre tudo isto, e na Declaração que me apresentaram, um pouco antes, apontaram algumas das direções nas quais é necessário promover a cooperação concreta entre todos os que são chamados a se comprometer para enfrentar o grande desafio da defesa da dignidade dos menores, no mundo digital. Apoio com grande determinação e firmeza o compromisso que assumiram.
Trata-se de despertar a consciência sobre a gravidade dos problemas, de fazer leis apropriadas, de controlar o desenvolvimento da tecnologia, de identificar as vítimas e perseguir os culpados de crimes, de ajudar em sua reabilitação os menores afetados, de colaborar com os educadores e as famílias para que cumpram com sua missão, de educar com criatividade os jovens para que usem adequadamente a Internet - e seja saudável para eles e para os demais menores -, de desenvolver a sensibilidade e a formação moral, de continuar com a pesquisa científica em todos os campos relacionados a este desafio.
Com razão, expressam o desejo de que também os líderes religiosos e as comunidades crentes participem deste esforço comum, contribuindo com toda sua experiência, sua autoridade e sua capacidade educativa e de formação moral e espiritual. Com efeito, só a luz e a força que vem de Deus podem nos ajudar a enfrentar os novos desafios. No que diz respeito à Igreja Católica, quero assegurar sua disponibilidade e compromisso. Como todos sabemos, a Igreja Católica, nos últimos anos, tornou-se cada vez mais consciente de não ter feito o suficiente em seu interior para a proteção dos menores: vieram à luz fatos gravíssimos, acerca dos quais tivemos que reconhecer nossa responsabilidade diante de Deus, diante das vítimas e da opinião pública.
Justamente por isso, pelas dramáticas experiências vividas e os conhecimentos adquiridos no compromisso de conversão e purificação, hoje, a Igreja sente um dever especialmente grave de se comprometer, de maneira cada vez mais profunda e com visão de futuro, na proteção dos menores e de sua dignidade. Tanto dentro dela, como em toda a sociedade e em todo o mundo. E isto não é somente ela que realiza – porque seria evidentemente insuficiente – mas, sim, oferecendo sua colaboração ativa e cordial a todas as forças e membros da sociedade que desejam se comprometer na mesma direção. Neste sentido, adere-se ao objetivo de “colocar fim aos maus-tratos, exploração, tráfico e todas as formas de violência e tortura contra as crianças”, estabelecido pelo Programa da Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável 2030 (Objetivo 16.2).
Em muitas oportunidades e em muitos países diferentes, meu olhar cruzou com o das crianças, pobres e ricas, sadias e enfermas, com as que estão alegres e as que sofrem. Sentir-se olhado pelos olhos das crianças é uma experiência que todos conhecemos e que nos toca no mais profundo do coração, e que também nos obriga a um exame de consciência. O que fazemos para que estas crianças possam olhar sorrindo e conservem uma visão limpa, plena de confiança e de esperança? O que fazemos para que não lhes seja roubada esta luz, para que esses olhos não sejam perturbados e corrompidos pelo que encontrarão na rede, que será parte integral e importantíssima de seu ambiente de vida? Trabalhemos, portanto, todos juntos, para sempre ter o direito, o valor e a alegria de olhar nos olhos das crianças de todo o mundo.
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Francisco pede o “fim aos maus-tratos, exploração, tráfico e todas as formas de violência e tortura contra as crianças” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU