27 Julho 2017
Em fevereiro de 2017, na segunda maior Terra Indígena (TI) do Brasil, mais uma chacina pode ter passado despercebida aos olhos das autoridades. Indígenas Kanamari denunciaram, durante um encontro da etnia em junho, um ataque à tribo isolada dos Warikama Djapar, como são chamados pelos Kanamari. O massacre teria vitimado entre 9 e 18 pessoas. O número ainda está sendo apurado, e pode ter um grande proprietário de terras da região como mandante.
A reportagem é de Izabela Sanchez, publicada por De Olho nos Ruralistas, 26-07-2017.
A Vale do Javari tem 8,5 milhões de hectares – quase o tamanho de Portugal – e abrange, segundo lideranças Kanamari, cerca de cinco etnias: Kanamari, Kulina, Matis, Marubo e Mayuruna. Esses povos estão distribuídos no território pelo estado do Amazonas, na fronteira com o Acre, com o Peru e a Colômbia.
Os Kanamari descrevem um cenário de caos. Sucateada e com o menor orçamento de sua história, a Fundação Nacional do Índio (Funai) não oferece proteção ao território. Abandonada, a TI é ameaçada por grileiros, mineradores e caçadores. Além das cinco etnias, vivem no entorno da terra três povos de recente contato: os Korubo, os Tyohum Djapar e os Warikama Djapar.
Quem relata a situação da reserva é Adelson Kanamari, uma das lideranças da etnia na TI. A comunidade onde vive fica ao norte da TI, próxima da cidade de Atalaia do Norte (AM). O ataque, segundo ele, ocorreu em fevereiro, na região sul da TI, e vitimou nove indígenas de contato recente. Ele declara que um proprietário de terras que está invadindo a TI é o mandante.
Conhecido na região como “Louro”, o proprietário ameaça as comunidades indígenas há algum tempo, segundo Adelson. Além de invadir a TI com a propriedade, ele entra para extrair madeira, caçar e pescar. O local onde a chacina teria ocorrido fica próximo de Eirunepé (AM). O indígena conta que foi um dos colegas do proprietário que relatou o massacre. A Funai está à procura da pessoa, que teria fugido da região.
Conta o Kanamari:
– Pegando a parte já quase oeste da TI, também tem entrada de fazendeiro, pela parte do município de Eirunepé. A fazenda, a caçada, a entrada de madeira, já passou da linha de demarcação da Terra Indígena. A gente tem informação que os índios isolados, Warikama Djapar (localizados na cabeça do rio Jutaí, São José e Juruazinho), que na nossa língua nós chamamos de índios capivara, estão sempre nessa área, na cabeça de um igarapé do Rio Jutaí. A fazenda está chegando dentro da Terra Indígena e a gente sabe que os parentes neste ano foram atacados por essas pessoas, segundo os Kanamari que habitam lá.
Adelson conta que a última vez que esteve na região desse ataque foi em 2015. Ele destaca a extensão da propriedade:
– Eu estive lá em 2015 com a Funai, com os povos do Javari, e fomos fazer uma Assembleia lá. É um dia, tipo assim, pra você chegar na floresta, e é uma fazenda enorme, enorme demais. Esse Louro é o cara que vai na terra indígena. Foi um cara do grupo do Louro que falou pros parentes, pros parentes Kanamari, que mataram os parentes Warikama Djapar. Porque eles não têm medo, quando veem alguém eles vão lá. Segundo esse cara, eles mataram nove indígenas.
Com mais de 200 procedimentos demarcatórios emperrados, a Funai não dá conta de cuidar dos territórios já demarcados. A fundação apura a denúncia e também encaminhou o caso para a Polícia Federal. Arquimimo do Amaral Silva é coordenador técnico local em Eirunepé:
– A situação dos povos indígenas nesta região é desesperadora e, infelizmente, a situação da Funai nunca esteve pior em relação a orçamento. Esta Coordenação Técnica Local (CTL) tem apenas dois colaboradores e responde por quatro municípios, quatro terras indígenas, apesar de atender indígenas de seis TIs, com um total de 70 aldeias em sete diferentes rios, 1,47 milhões de hectares para fazer vigilância e um público de mais de 5 mil índios de quatro etnias, com distâncias fluviais acima de 1.800 quilômetros para algumas aldeias.
Na região que concentra a maior quantidade de etnias isoladas do Brasil, não há juiz, Ministério Público Federal e nem Ibama:
– Este ano, até a presente data, a CTL não recebeu um centavo sequer para a manutenção e tampouco para outras ações. O município não tem juiz titular há mais de três anos, não temos representações do MPF, Polícia Federal ou mesmo Ibama. As ações têm acontecido em parceria com a Polícia Militar e, atualmente, com a mudança da gestão municipal, a Secretaria de Meio Ambiente, antes parceira nas ações, agora tem se esquivado de participar.
O desespero do coordenador também é compartilhado por Gustavo Sena, da Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari. Ele relata que cerca de 10 pessoas fazem a segurança e vigilância dos 8,5 milhões de hectares e descreve a dificuldade de ter acesso à área:
– Além dela concentrar a maior quantidade de índios isolados do Brasil e de repente até no mundo, ela é uma terra indígena muito grande, são 8,5 milhões de hectares. Então a gente atua hoje em dia com uma dificuldade muito grande devido a essa política do governo de desmonte da Funai. Pra fazer essa proteção e acompanhamento, a gente tem aí uma média de dez servidores, que se revezam, nas bases de vigilância, fazendo expedições, trabalhando com recente contato. Pelo rio, se você for descer, tem que descer pelo rio Solimões, até a foz do rio Juruá, e descer pelo Juruá. Depois só de avião, de Tabatinga para Eirunepé, ou pode subir o Rio Taquari, e por terra, no Rio Juruá, seguir até Eirunepé. Então é muito difícil o acesso a essa região.
Adelson também relata que as ameaças dos grileiros, caçadores e mineradores provocam o deslocamento das etnias isoladas. Estas por sua vez, chegam cada vez mais próximas das aldeias da TI. Esse contato, no entanto, nem sempre é amigável: “Na minha comunidade moram cerca de 230 pessoas, 35 famílias. Vivemos da agricultura, nós Kanamari também vivemos ao redor, tem muitos parentes isolados e recentemente, com os problemas, tivemos que mudar nossas aldeias pra evitar conflito e não ter problema com os parentes que estão ali no seu território”.
A liderança conta que um dos episódios resultou na morte de um casal Kanamari, e os indígenas teriam levado uma criança:
– Aqui na nossa aldeia, na parte norte da TI, na aldeia bananeira, já aconteceu a presença na roça dos parentes, muito direto, até que um dia levaram também um menino, de 8 anos. Bateram em um primo meu lá, matam os parentes, os parentes foram atrás, a Funai interveio e nós tínhamos que mudar a aldeia. Então, assim, existe muito, agora, a presença dos parentes isolados nas aldeias nossas, coisa que não se via antes. Eles estão chegando mais, com certeza, e na época, antes da demarcação, existiam muitos invasores, madeireiros, Petrobras, na época da borracha. Então esses invasores entravam no igarapé, onde eles estavam, ligavam motosserra e afastavam do território deles. Como a terra indígena está demarcada vai fazer uns 15 anos ou mais tempo, eles estão chegando mais pra beira do rio.
Adelson esteve em Brasília para denunciar o caso. Conforme relata, mesmo com a situação da TI, os povos isolados representam maior urgência e a situação, para ele, escancara o abandono do Estado. Ele descreve um genocídio dessa tribo isolada:
– Nossa briga maior na TI, mesmo com a falta de recurso, no sul da terra indígena, tem um povo chamado Tyohum Djapar, e os próprios Kanamari entraram em contato com eles, e eles estão vivendo na aldeia dos Kanamari, são povos diferentes, mas talvez sejam do mesmo tronco linguístico, que falam a mesma linguagem. E esse povo, eles não têm… em Brasília agora eu fui recentemente, e falei da questão da assistência. O Estado brasileiro, a Sesai, a Funai, não têm dado assistência a esse povo. Há 15, 20, 25 anos, esse povo era em torno de 50 pessoas, hoje, tem cerca de 33 pessoas. Ano passado morreram mais três pessoas lá. A nossa briga é que dessem a assistência a esse povo de recente contato.
Demarcada durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, em 2001, a segunda maior Terra Indígena do Brasil detém, segundo pesquisadores, a maior concentração de índios isolados do mundo. São mais de 8,5 milhões de hectares, distantes muitos quilômetros dos grandes centros urbanos. O acesso é restrito, apenas via fluvial ou aéreo, sem eixo rodoviário ou ferroviário próximos. De acordo com o Instituto Socioambiental (ISA) vivem ali cerca de 13 etnias e quase 5 mil indígenas. As etnias denunciam, há anos, a falta de assistência da Funai e da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).
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Índios Kanamari apontam massacre na segunda maior Terra Indígena do Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU