20 Junho 2017
"É preciso agir, ademais, com espírito messiânico, isto é, como se fosse possível introduzir o “fim dos tempos” no tempo, ou ainda, como se fosse possível abandonar a marcha cansada do tempo cronológico, fazendo irromper no presente o Reino de Deus, sem mais demora" escreve Felipe Dittrich Ferreira, mestre em antropologia social pela Unicamp.
De acordo com a cosmologia judaico-cristã, embora o ser humano tenha sido criado por Deus, Dele separou-se, ainda no início dos tempos. A criatura deixou-se levar pela tentação de assumir o lugar do Criador. Não tivesse Deus expulsado Adão e Eva do paraíso, é provável que tivessem saído por conta própria: parece próprio do ser humano não aceitar limitações. Paradoxalmente, procurando desvencilhar-se de todo e qualquer constrangimento, o ser humano acaba sujeitando-se a limitações maiores do que aquelas de que procurou escapar ao dar início às suas perambulações. Essa dinâmica é ilustrada pela história do filho perdulário. Nada custa recordar os pontos básicos dessa parábola. Ansioso, um jovem pede a antecipação de sua herança. Parece afirmar, desse modo, que deseja que o pai já estivesse morto. Após dissipar suas posses, explorando terras longínquas, dá-se conta do que perdeu e toma a decisão de voltar. O pai misericordioso o recebe de volta sem hesitação. O irmão que ficou junto do pai reclama, alegando injustiça.
Essa história, em alguma medida, encerra um ciclo. No lugar da expulsão, Deus opta agora pelo acolhimento. Nem é necessário, conforme ensina outra parábola, que o homem, arrependido, tome a decisão de voltar. O próprio Deus agora sai em busca daquele que se extraviou, como o demonstra a parábola da ovelha perdida. Jesus parece afirmar que Deus se reconciliou com o homem. Antes, enfurecido, Deus precisava ser aplacado. Esse, segundo Raniero Cantalamessa, é o sentido dos antigos sacrifícios, nos quais eram imolados animais. Com a inauguração do novo tempo, o sentido da pacificação se inverte: é Deus, agora, quem procura aplacar a fúria do ser humano.i
De acordo com a narrativa bíblica, a reconciliação entre Deus e a humanidade teve início com Abraão. Deus fez com o patriarca dos judeus, nas palavras de Cantalamessa, “um acordo de paz em separado”. A descendência de Abraão recebeu as tábuas da lei, juntamente com uma constelação de profetas, que velou pela preservação da palavra de Deus no decorrer dos séculos. Os judeus, separados dos demais povos, deveriam formar um “reino de sacerdotes e uma nação santa”. (Ex 19, 6) O isolamento tinha por objetivo evitar que os israelitas imitassem as práticas de outros povos, já que pelo contágio os ensinamentos divinos poderiam acabar se dissolvendo. Temia-se a idolatria e o mundanismo. Com Jesus, a santidade passou a operar de outra forma: tornou-se transmissível, isto é, passou a ter caráter centrífugo. Deixou-se de temer, portanto, o risco de contágio. A tradição judaica, reformulada por Jesus, deveria agora ser espalhada. Esperava-se que fosse possível dar cumprimento às palavras de Isaías: “No futuro Israel criará raízes, Israel dará flores e botões e de frutos cobrirá a face da terra”. (Is 27, 6) Nesse processo de abertura para além das fronteiras da Palestina, teve papel fundamental Paulo, o apóstolo dos gentios. Por meio dele, em conjunto com alguns outros pregadores, a história de Jesus tornou-se conhecida no mundo romano, ganhando adeptos, com grande velocidade, também entre não-judeus. A promessa de redenção agora abarcava, potencialmente, o conjunto da humanidade.
A Igreja afirma que “Jesus Cristo é a última palavra de Deus – n’Ele, Deus disse tudo, dizendo e dando a si mesmo. Mais que ele próprio, Deus não pode dizer, nem dar”.ii Isso não quer dizer que Deus, após a vinda de Cristo, tenha tornado-se mudo ou que o ser humano tenha tornado-se incapaz de ouvi-lo. A palavra de Cristo, como antecipado pela parábola da semente de mostarda, cresceu, dando origem a “ramos grandes a tal ponto que os pássaros do céu podem fazer seus ninhos em sua sombra". (Mc 4, 30-32) Um desses ramos foi constituído por São Francisco, aproximadamente 1200 anos após o nascimento de Jesus. O jovem teria recebido do Senhor uma convocação: “Francisco, vai e repara a minha casa”. “Aos poucos ele percebe”, notou o Papa Francisco, “que não se tratava fazer de pedreiro para reparar um edifício feito de pedras, mas de dar a sua contribuição para a vida da Igreja; era colocar-se ao serviço da Igreja, amando-a e trabalhando para que transparecesse nela sempre mais a Face de Cristo.”iii De fato, com sua ousada fidelidade à palavra do Senhor, São Francisco devolveu ao cristianismo o frescor missionário dos primeiros dias. Parecia estar sendo cumprida a profecia de Ezequiel: os ossos ressequidos da Igreja voltaram à vida.
São Francisco, portanto, pode ser considerado um restaurador. Ao mesmo tempo, o santo de Assis, sem extrapolar os limites da tradição judaico-cristã, foi também um inovador. Ao tratar como irmãos não apenas outros seres humanos, mas também membros de outras espécies, São Francisco parece ter dado à instrução recebida dos céus um segundo sentido, mais amplo do que o primeiro. Não se tratava apenas de reconstruir a igreja, mas também de restaurar a harmonia perdida entre as diversas partes da criação. Pregando aos animais, São Francisco mostrou que a palavra de Deus poderia extrapolar não apenas os limites da comunidade judaica, mas também as fronteiras da humanidade. Em jogo estava agora o mundo, isto é, nossa casa comum e todos os seus habitantes, irmanados, a despeito de inúmeras diferenças, pelo idêntico vínculo com o Criador.
Como São Francisco se relacionava com os animais? A seguinte história, contada por Tomás de Celano, fornece indicações importantes:
“Nesse meio tempo, enquanto muitos se juntavam aos irmãos, o beatíssimo pai Francisco percorria o Vale de Espoleto. Ele se dirigiu a um lugar perto de Bevagna, em que estava reunida a maior multidão de aves de diversas espécies, a saber, de pombas, de gralhas e de outras que vulgarmente se chamam monjinhas. Quando Francisco, o beatíssimo servo de Deus, as viu, porque era homem de fervor muito grande e tinha grande afeto de compaixão e doçura também para com as criaturas inferiores e irracionais, correu alegremente até elas, tendo deixado os companheiros na estrada. E estando já bastante perto e vendo que elas o aguardavam, saudou-as do modo habitual. Mas, admirando-se não pouco de como as aves não se tivessem levantado em fuga, como costumam fazer, repleto de enorme alegria, rogou-lhes humildemente que ouvissem a palavra de Deus. E entre muitas coisas que lhes falou, acrescentou também: ‘Meus irmãos pássaros, muito deveis louvar o vosso Criador e sempre amar aquele que vou deu penas para vestir, asas para voar e tudo de que necessitais. Deus vos fez nobres entre suas criaturas e concedeu-vos a mansão na pureza do ar, porque, como não semeais nem colheis, ele, todavia, vos protege e governa sem qualquer preocupação vossa.’ A estas palavras, aquelas aves, como ele própria dizia e os irmãos que estavam com ele, exultando de modo admirável segundo sua natureza, começaram a esticar os pescoços, a estender as asas, a abrir o bico e olhar para ele. E ele, passando pelo meio delas, ia e voltava, roçando com sua túnica as cabeças e corpos delas. Finalmente, abençoou-as e, tendo feito o sinal-da-cruz, deu-lhes licença para voarem a outro lugar.”iv
Entre vários outros relatos semelhantes, é também digno de nota o seguinte:
"A doçura do amor de Deus enchera de tal forma a mente do bem-aventurado Francisco que, vendo em tudo a obra admirável do Criador, dedicava a todas as criaturas uma afetuosa ternura. (...) Uma vez, quando estava numa barca no lago de Rieti, foi-lhe oferecido vivo um grande peixe, popularmente chamado tinca. O santo homem recebeu-o com alegria e benevolência, não para comê-lo, mas para restituir-lhe a liberdade. Chamou o peixe de irmão, rezou, abençoou-o em nome do Senhor (Sl 112, 2) e o repôs na água. Mas o peixe brincava na água e não se afastou da barca, enquanto o santo continuava a oração e o louvor, até que, terminada a oração, o bem-aventurado Francisco lhe deu a permissão de ir embora."v
Não obstante erupções ocasionais, a potencialidade dessa abertura teológica em relação a outras espécies permaneceu latente no interior da tradição católica por cerca de 800 anos. Começou a ser retomada durante o pontificado de João Paulo II, sobretudo após a queda do Muro de Berlim: o fim das tensões relacionadas à Guerra Fria abriu espaço, inclusive no debate teológico, para a emergência de novos temas. Em 1990, por exemplo, o Santo Padre afirmou:
"Inserindo a questão ecológica no contexto mais vasto da causa da paz na sociedade humana, melhor nos daremos conta quanto é importante prestar atenção àquilo que a terra e a atmosfera nos revelam: existe no universo uma ordem que deve ser respeitada; e a pessoa humana, dotada da possibilidade de livre escolha, tem uma grave responsabilidade na preservação desta ordem, também em função do bem-estar das gerações futuras. A crise ecológica – uma vez mais o repito – é um problema moral."vi
Em 1993, o Papa João Paulo II retomou esse argumento, enfocando o problema da desertificação:
"Sentimo-nos inquietos por ver que hoje o deserto avança e abrange terras que ainda ontem eram prósperas e férteis. Não podemos esquecer que, em muitos casos, o próprio homem foi causa da esterilização de terras que se tornaram desertas e da poluição de águas que antes eram sãs. Quando não se respeitam os bens da terra, quando se abusa deles, age-se de maneira injusta e até mesmo criminosa, porque as conseqüências são miséria e morte para muitos de nossos irmãos e irmãs.”vii
Mais adiante, em 2001, João Paulo II lançou o apelo por uma “conversão ecológica”, parecendo reconhecer que a doutrina católica, nos moldes até então sustentados, não bastava para persuadir os seguidores da Igreja a manter com a natureza uma relação respeitosa. Vale a pena a citação de um longo trecho, no qual são articulados alguns dos pontos centrais da doutrina sócio-ambiental atualmente sustentada pela Igreja:
"Infelizmente, se o olhar percorre as regiões do nosso planeta, apercebemo-nos depressa de que a humanidade frustrou a expectativa divina. Sobretudo no nosso tempo, o homem devastou sem hesitações planícies e vales cobertos de bosques, poluiu a água, deformou o habitat da terra, tornou o ar irrespirável, perturbou os sistemas hidro-geológicos e atmosféricos, desertificou espaços verdejantes, levou a cabo formas de industrialização selvagem, humilhando, para usar uma imagem de Dante Alighieri (cf. Paraíso, XXII, 151), o 'canteiro de flores' que é a terra, nossa morada.
Por isso, é preciso estimular e apoiar a 'conversão ecológica', que nestes últimos decênios tornou a humanidade mais sensível à catástrofe para a qual estava a caminhar. (...) Não está em jogo só uma ecologia 'física', atenta a tutelar o habitat dos vários seres vivos, mas também uma 'ecologia humana' que torne mais digna a existência das criaturas, protegendo o bem radical da vida em todas as suas manifestações e preparando para as futuras gerações um ambiente que se aproxime cada vez mais do projeto do Criador.
Nesta harmonia reencontrada com a natureza e consigo próprios, os homens e as mulheres voltam a passear no jardim da criação, procurando fazer com que os bens da terra estejam disponíveis para todos e não só para alguns privilegiados, como sugeria propriamente o Jubileu bíblico (cf. Lv 25, 8-13.23). No meio de tais maravilhas descobrimos a voz do Criador, transmitida pelo céu e pela terra, pelo dia e pela noite: uma linguagem 'sem palavras das quais se ouça o som', capaz de ultrapassar todas as fronteiras (cf. Sl 19 [18], 2-5).
O livro da Sabedoria, citado por Paulo, celebra esta presença de Deus no universo, recordando que 'a grandeza e a beleza das criaturas fazem, por comparação, chegar ao conhecimento do seu Autor' (Sb 13, 5; cf. Rm 1, 20). É isto que também canta a tradição judaica dos Chassidim: 'Onde quer que eu vá, Tu! Onde quer que eu pare, Tu... Para onde quer que eu me volte, o que quer que eu contemple, só Tu, ainda Tu, sempre Tu'."viii
A retomada do interesse pela natureza, por parte da Igreja, após 800 anos, não ocorreu por acaso. A instituição bimilenar tem procurado na sua doutrina e na sua história meios de dar resposta à crise ecológica que se avoluma. Daí o interesse renovado, por exemplo, pela narrativa da terra prometida no lugar da preocupação, outrora excessiva, pelo céu, situado fora do tempo e do espaço. A temática da redenção neste mundo já havia sido resgatada, em meados do século passado, pela teologia da libertação. Os termos da equação, agora, tornaram-se muito mais dramáticos: já não se trata da salvação neste mundo, mas da salvação deste mundo.
A encíclica Laudato Si’ deve ser compreendida nesse contexto. Procurando chegar às raízes da crise ecológica, o Papa Francisco combinou a denúncia da devastação planetária à crítica das forças econômicas e ideológicas que contribuem para a profanação da criação. Nesse contexto, já não se fala, genericamente, que “a humanidade” frustrou a expectativa divina. Com maior rigor sociológico, critica-se, por exemplo, o “paradigma tecnocrático”, sob cujas lentes o planeta Terra seria um mero depósito de recursos, infinitamente exploráveis. No interior desse paradigma, não se nega que a exploração em larga escala dos recursos terrestres possa gerar problemas. Supõe-se, no entanto, que para todos os problemas exista uma solução técnica, não havendo, portanto, necessidade, de soluções éticas ou políticas.
Uma analogia ajudará a compreender esse argumento: se uma pessoa não se alimenta bem, se consome gordura e açúcar em excesso e começa a sentir-se doente, o paradigma tecnocrático simplesmente lhe oferecerá remédios ou mesmo cirurgias. A idéia é poupá-la das conseqüências de sua inconsequência, como se o corpo pudesse ser maltratado indefinidamente. Essa política de mal-estar administrado, que ignora a busca da saúde e satisfaz-se em manter vivos, ainda que precariamente, organismos disfuncionais ou mesmo decrépitos, é o que o paradigma tecnocrático oferece ao planeta Terra.
Outra transformação notável introduzida na doutrina católica pela encíclica Laudato Si’ diz respeito à superação do humanismo estrito segundo o qual a proteção da natureza seria necessária apenas em função da importância do meio-ambiente para a sobrevivência da espécie humana. O seguinte trecho da encíclica, nesse sentido, pode ser considerado revolucionário:
“Ao mesmo tempo que podemos fazer um uso responsável das coisas, somos chamados a reconhecer que os outros seres vivos têm um valor próprio diante de Deus e, ‘pelo simples fato de existirem, eles O bendizem e Lhe dão glória’, porque ‘o Senhor Se alegra em suas obras’ (Sl 104/103, 31). Precisamente pela sua dignidade única e por ser dotado de inteligência, o ser humano é chamado a respeitar a criação com as suas leis internas, já que ‘o Senhor fundou a terra com sabedoria’ (Pr 3, 19). Hoje, a Igreja não diz, de forma simplista, que as outras criaturas estão totalmente subordinadas ao bem do ser humano, como se não tivessem um valor em si mesmas e fosse possível dispor delas à nossa vontade; mas ensina – como fizeram os bispos da Alemanha – que, nas outras criaturas, ‘se poderia falar da prioridade do ser sobre o ser úteis’”.ix
A redescoberta da terra, pela Igreja, ao longo das últimas décadas, desde a teologia da libertação até o pontificado de Francisco, parece articular um complexo conjunto de projetos salvacionistas: por um lado, diante da gravidade da crise ecológica, é impossível deixar de pensar em Noé, isto é, na possibilidade de uma catástrofe, contra a qual poderíamos nos salvar apenas buscando refúgio numa convivência íntima com o que resta da natureza, na expectativa de que Deus, no dia da revanche, venha em nosso socorro. O surgimento de vilas ecológicas, em parte de acordo com o modelo estabelecido pelos monastérios durante o período medieval, parece refletir esse exemplo. Trata-se de uma solução coletiva, porém parcial, mais centrada em não causar danos à terra do que em buscar soluções, em grande escala, para os problemas que enfrentamos. Em favor dessa abordagem podem ser evocadas as palavras do Papa Bento XVI: “é preciso não temer a humildade dos pequenos passos e confiar no fermento que se mistura com a massa e que, lentamente, a faz crescer".x
Pode ser recordado, simultaneamente, o exemplo de Moisés, que libertou os israelitas da escravidão e manteve o povo unido durante a dura travessia do deserto. O projeto salvacionista, aqui, não abrange alguns poucos: incluí todo o povo. Embora o tema dê margem a controvérsias, é importante recordar que não foi Moisés quem completou a travessia rumo à liberdade. Coube a Josué, líder dos guerreiros de Israel, organizar a campanha contra aqueles que vivam indevidamente na terra prometida, assim viabilizando a ocupação da área por parte dos descentes de Abraão. Recordar esse ponto não implica, necessariamente, fazer apologia da violência. É preciso, de qualquer forma, enfatizar um dado fundamental: o fato de Deus ter concedido ao povo de Israel um pedaço de terra não quer dizer que poderiam dispor dessa benção sem esforço. A profecia é muito mais convocação do que antevisão. Os israelitas, diante da terra prometida, foram chamados a tirar do papel a palavra de Deus, inscrevendo-a no solo com todas as forças de que dispunham.
O exemplo estabelecido por Jesus, no que diz respeito à salvação, é muito complexo para ser resumido. Vale a pena, no entanto, destacar um ponto: “Ninguém pode servir a dois senhores: ou vai odiar o primeiro e amar o outro, ou aderir ao primeiro e desprezar o outro”. (Mt 6, 24) Isso quer dizer, com bastante clareza, que a salvação depende de uma escolha inequívoca. A história de Jesus serve como exemplo da aplicação desse princípio, não sob a ótica da conquista, como no caso de Josué, mas sob a ótica da resistência e do sacrifício. O filho de Deus procurou cumprir integralmente a missão que lhe foi confiada sem se importar com os riscos. Até as últimas conseqüências Jesus manteve-se fiel aos propósitos da encarnação.
Avançando no tempo, seria possível mencionar muitos outros exemplos. De São Bento a Santa Tereza d’Ávila, de Santo Inácio a São João XXIII: atentos, por um lado, às verdades eternas, e por outro, aos sinais dos tempos, os santos da Igreja fizeram frutificar a palavra de Deus ao longo dos séculos de muitas formas distintas. A diversidade dos carismas foi certeiramente celebrada por C. S. Lewis: “Quão monótona é a semelhança que une todos os grandes tiranos e conquistadores; quão gloriosa é a diferença dos santos!”xi
Nos limites desse texto, é suficiente, de qualquer forma, reiterar o exemplo de São Francisco. O maior dos “frades menores” ensina que a salvação, hoje mais do que nunca, depende de recuperarmos a harmonia perdida com as demais partes da criação, não apenas pelo respeito à natureza, mas também para honrar a vontade criadora de Deus.
A teologia da salvação, diante dos complexos desafios hoje enfrentados pela humanidade, assim como por todas as demais espécies com as quais compartilhamos este planeta, precisa colocar em relação diferentes carismas e abordagens, com autêntico espírito democrático. Pode-se aplicar a esse ponto o raciocínio formulado por São Tomás de Aquino para explicar a multiplicidade e a variedade. As palavras do Doutor Angélico foram incluídas pelo Papa Francisco na encíclica Laudato Si’:
“O conjunto do universo, com as suas múltiplas relações, mostra melhor a riqueza inesgotável de Deus. São Tomás de Aquino sublinhava, sabiamente, que a multiplicidade e a variedade ‘provêm da intenção do primeiro agente’, o Qual quis que ‘o que falta a cada coisa, para representar a bondade divina, seja suprido pelas outras’, pois a sua bondade ‘não pode ser convenientemente representada por uma só criatura’”.
É preciso agir, ademais, com espírito messiânico, isto é, como se fosse possível introduzir o “fim dos tempos” no tempo, ou ainda, como se fosse possível abandonar a marcha cansada do tempo cronológico, fazendo irromper no presente o Reino de Deus, sem mais demora. O messias, como notou Giorgio Agamben, não é aquele que virá, mas sim aquele que “não cessa de vir”. "Cada instante”, disse Walter Benjamin, “é a porta estreita através da qual o Messias pode passar".xii
Traduzir em ação a vontade de Deus requer, por um lado, discernimento, e por outro, experimentação. “Deus ao mar”, disse Fernando Pessoa, “o perigo e o abismo deu, mas nele é que espelhou o céu”.
Referências:
i Frei Raniero Cantalamessa, 1ª pregação no Advento, 5 de dezembro de 2014
ii Papa Bento XVI, Catequese sobre a obra de São Boaventura, 10 de março de 2010
iii Papa Francisco, Visita Apostólica ao Brasil, Vigília de oração com os jovens, Copacabana, Rio de Janeiro, 27 de julho de 2013
iv Frei Tomás de Celano, Primeira Vida de São Francisco, in: Fontes Franciscanas e Clarianas, Ed. Vozes, 2008, p. 238.
v Juliano de Espira, Vida de São Francisco, in: Fontes Franciscanas e Clarianas, Ed. Vozes, 2008, p. 530-529.
vi Papa João Paulo II, Mensagem para a Celebração do XXIII Dia Mundial da Paz: “Paz com Deus Criador, Paz com toda a Criação”, 1° de janeiro de 1990
vii Papa João Paulo II, Mensagem para a Quaresma de 1993
viii Papa João Paulo II, Audiência Geral, 17 de janeiro de 2001
ix Papa Francisco, Carta Encíclica Laudato Si’ sobre o cuidado da casa comum, 24 de maio de 2015
x Papa Bento XVI, Audiência Geral, 28 de novembro de 2012
xi C. S. Lewis, Cristianismo Puro e Simples, Ed. Martins Fontes, 2014, p. 299.
xii Cf. Giorgio Agamben, Cristianismo como religião: a vocação messiânica, 2009
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Da salvação neste mundo à salvação deste mundo: a redescoberta da terra no catolicismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU