21 Abril 2017
Para fugir do conflito histórico entre os cientistas e os fundamentalistas, no seu último livro (Leggere la Torà [Ler a Torá], Ed. Giuntina, 158 páginas), a filósofa francesa Catherine Chalier propõe uma terceira via na abordagem dos textos “revelados”.
O jornal Avvenire, 19-04-2017, publicou um trecho da introdução da obra. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A longa e conflituosa história da interpretação dos Livros sagrados das religiões monoteístas se perpetua ainda hoje, mas, nas sociedades secularizadas do século XXI, particularmente na Europa, muitas vezes, ela se radicaliza, simplificando-se em excesso e pretendendo contrapor os “espíritos livres” e os fundamentalistas.
Os primeiros se referem ao Iluminismo e pretendem estudar esses Livros com os instrumentos racionais e críticos de que dispõem. Querem subtrair o seu objeto de estudo de qualquer status particular, lutar contra a sua influência sobre as inteligências e contra as suas consequências nefastas em âmbito moral e político, desvalorizando, assim, de maneira decisiva, a própria fonte de onde provêm. Esses livros, na opinião deles, seriam obras humanas, nada mais do que humanas, a serem apreciadas como tais e a serem explicadas em função de um determinado contexto geográfico e histórico contingente e já passado.
Os segundos rejeitam essas intimidações, que consideram como expressão de malevolência em relação a eles e, acima de tudo, como uma ridicularização cheia de ódio por Aquele que, segundo eles, fala nesses Livros mediante a intermediação dos Seus escribas. Eles rejeitam o debate e a pluralidade interpretativa dos textos, a fim de rejeitar todo desejo de se afastar da “letra” daqueles Livros, considerando-os um desvio a ser combatido, até mesmo violentamente, se necessário. Muitas vezes, aqueles que, de uma forma ou de outra, referem-se àqueles mesmos Livros de maneira diferente, são o seu primeiro alvo. Impor uma “verdade” considerada imutável, porque, na sua ótica, é a do próprio Deus não admite nenhum compromisso com os correligionários prontos para “trair” a letra sob o pretexto do espírito.
Por mais que possa ser simplificadora da extrema complexidade do debate sobre os Livros sagrados, essa radicalização é, apesar de tudo, interessante, já que as duas partes buscam no passado uma legitimação das suas posições. Passado desconstruído, para os primeiros, a fim de minar definitivamente a visão que esses Livros dão e libertar o presente do seu peso; passado congelado em uma origem desembaraçada das escórias da história para os segundos, a fim de fazer com que nada mude mais.
Embora o confronto entre as duas posições ganhe amplitude a partir da energia posta pelos fundamentalismos na pretensão de trazer a resposta às inquietações e às angústias humanas, no entanto, ela evita o essencial e não abre nenhum horizonte portador de esperança nem para uns, nem para outros. Nas sociedades democráticas, certamente, cada um prefere se considerar um espírito aberto que foge dos preconceitos e do obscurantismo religioso, e, portanto, terá uma tendência a valorizar a primeira atitude. Isso explica por que muitos aprovam a denúncia da regressão intelectual e espiritual, não apenas nas suas expressões morais e políticas, representada pelo fundamentalismo.
Mas, a partir do momento em que deriva uma alternativa simplificadora mencionada acima, essa denúncia não tem nenhuma possibilidade de romper o impasse. Ao contrário, corre o risco de radicalizá-lo. Além disso, a maioria das pessoas ignoram quase tudo sobre o assunto. Ignoram o conteúdo dos Livros sagrados, ignoram a história da sua interpretação e dos debates ásperos, mas também iluminadores, que eles levantaram.
Uma ignorância, às vezes, dramaticamente encorajada, particularmente nas escolas, sob o pretexto de uma laicidade ansiosa para afastar toda possível influência daqueles Livros sobre os espíritos. Em troca, essa ignorância envolve também a simplificação dos elementos do debate que, embora concirna aos “espíritos livres”, desliza na condescendência intelectual e até mesmo em um animoso desprezo arrogante daqueles que ainda se dedicam a meditar sobre aqueles Livros de maneira diferente do método histórico-crítico.
Evidentemente, em relação com aqueles que apelam a um Livro sagrado, cujo conteúdo é considerado tão evidente a ponto de não precisar de nenhum esforço de interpretação, mas unicamente de uma submissão ao que diz ou, pelo menos, ao que as autoridades religiosas afirmam a seu propósito, é melhor preferir a liberdade de pensamento, de julgamento e de crítica.
A submissão pode não ser uma escolha auspiciosa! Embora considerada como uma opção pessoal, ela é sempre portadora de uma aura sinistra para as pessoas e para as sociedades humanas. O seu fardo de violência e de intolerância, lá onde ela é capaz de impô-lo, de fato, não pode senão empenhar a lutar contra ela.
No entanto, atendo-se ao método histórico-crítico, será possível vencer, algum dia, a tentação de uma submissão cega, mas também cheia de fervor, àquilo que tem a fama de ser a imediaticidade da letra dos Livros sagrados? Será possível se contrapor ao gosto da submissão entusiasta ou, ao contrário, repleta de terror, daqueles que se arrogam o direito exclusivo de falar em nome de Deus, se nos limitarmos a apelar à culta e racional vigilância desse método?
Nada é menos certo. A abordagem científica aos grandes Livros religiosos da humanidade abre perspectivas que certamente devem ser levadas em consideração, mas tendo em mente o quadro de conjunto, isto é, sem se deixar subjugar pelo veredito da “ciência”. Isso deixaria sem voz os menos academicamente cultos, que são quase todos os leitores daqueles Livros. (…)
No entanto, o ponto essencial é outro: ninguém jamais poderá vencer, ou simplesmente sacudir o fundamentalismo, opondo-lhe os argumentos de uma ciência supostamente objetiva, protegida dos malefícios da subjetividade humana, tanto dos indivíduos quanto das coletividades ou dos povos.
Existe outra via? Uma via que garanta a seriedade do estudo minucioso dos textos, das línguas em que os Livros foram escritos, do passado de que falam, sem, no entanto, considerar a “subjetividade” como “a louca da família”. Uma via que, ao contrário, considere que, embora não sejam necessariamente aquelas que o douto acadêmico requer, as perguntas “subjetivas”, privadas ou compartilhadas com outros, feitas aos textos, permitem descobrir neles novas possibilidades de significado que, longe de serem quimeras relativas à idiossincrasia dos indivíduos ou das comunidades, iluminam-nos com uma luz vívida, e, em troca, como veremos, o próprio sentido da “subjetividade” humana será aprofundado de maneira original, encontrará matéria para interpretar a si mesma.
De fato, não se trata mais, como na abordagem científica, de exercer a sagacidade intelectual a fim de “classificar” os Livros sagrados, entre inúmeros outros, “em uma esfera profana” para obter daí um saber relativo ao passado e, muitas vezes, para suportar uma tácita posição ideológica, mas de confrontar a própria vida com uma palavra que se ouve naqueles Livros. Palavra que vai além dos conceitos, que, pretendendo expressar de maneira firme e precisa o saber de tudo o que ela sugere, empobrecem-na sempre. Mas, para prestar atenção àquele “mais” da palavra em relação ao saber, é necessário escutá-la de novo, mantendo em alerta o próprio ser.
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Livros sagrados: verdade e interpretação. Artigo de Catherine Charlier - Instituto Humanitas Unisinos - IHU