07 Março 2017
De formação peronista, Bergoglio prega uma Igreja próxima ao povo. Tão próxima que há quem a queira fora de Roma, na América do Sul. Mas, para a ortodoxia eclesiástica, isso é uma heresia.
A reportagem é de Mario Margiocco, publicada no sítio Lettera43, 05-03-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Para os católicos observantes, praticantes e inseridos nas estruturas eclesiais, é um pouco como para os velhos ingleses que nunca falam mal do rei ou da rainha, muito menos com os não ingleses. Os católicos “de carteirinha” nunca falam mal do papa, senão intra moenia. Além disso, uma das mais velhas piadas do mundo eclesiástico diz que, quando dois padres confabulam, estão falando mal do bispo.
Mas como é possível falar mal do Papa Bergoglio? Para uma parte dos seus fiéis, ele é um semi-Messias, que veio do fim do mundo para expulsar os fariseus do templo. Ele defende os pequenos diante dos poderosos. Por isso, o seu traço humano encontra grandes favores até mesmo entre aqueles que, de vez em quando, o criticam. Ou um papa não deveria fazer isso?
Porém, de acordo com uma outra grande nada pequena do seu rebanho, especialmente na Europa e na América do Norte, mas também em outros lugares, Bergoglio se equivoca. O descontentamento doutrinal se coagulou em torno da exortação apostólica Amoris laetitia, de 2016, sobre a família, os divorciados, os homossexuais, para os quais, no entanto, é reiterado o “não” pleno ao casamento gay. Muito pouco para alguns, muito para outros. Os conservadores veem serem atacados pontos irrenunciáveis, na sua opinião, e, portanto, o risco de confusão.
Mais frequentemente, há uma crítica mais política. De fato, Bergoglio é um papa político, toma partido no debate sobre as coisas do mundo. O Papa Montini, por exemplo, estava ligado à cultura que, na Europa e em outros lugares, tinha levado a doutrina social da Igreja às cúpulas, através dos partidos democrata-cristãos. Para Bergoglio, os faróis principais não são Konrad Adenauer ou Alcide De Gasperi, aos quais se confiaram, embora arruinados pela guerra, os países do mundo dos “ricos”. Bergoglio se manteve fiel a uma tradição sul-americana e argentina em particular, ligada a uma interpretação cristã do peronismo (aliás, muitas vezes anticlerical) e do populismo latino-americano. Aquele populismo que Bergoglio condena hoje na Europa, por ser egoísta, contrário à imigração e aos excluídos (entrevista ao El País, de janeiro de 2016), mas aprova e defende em outras realidades, especialmente a latino-americana, por ser voz dos excluídos, portadores de uma riqueza salvífica.
“A palavra povo não é uma categoria lógica, é uma categoria mística”, dizia ele em fevereiro de 2016, no retorno da viagem ao México. Corrigindo, depois, “místico” em “mítico”, dizendo que “é preciso um mito para entender um povo”. O mito bergogliano tem cores argentinas e peronistas. Peronismo é a doutrina eclética feita de justiça social, nacionalismo e independência econômica, composta nos anos 1940 por Juan Domingo Perón com filões de autoritarismo nacional-socialista (mais do que Hitler, Perón admirava as políticas sociais de Mussolini) e distante, em função anti-Estados Unidos, do liberalismo e também do comunismo.
Para entender o peronismo, é preciso pensar na Argentina do início do século, país mais do que próspero e rico, um PIB per capita como o holandês, em crise depois de 1929, em retomada em 1940 (as guerras europeias foram a sorte argentina) e que sempre se considerou na vanguarda no subcontinente, um pedaço da Europa ao sul do istmo do Panamá. Um país que podia e devia dar bem-estar ao seu povo. O peronismo é um socialismo nacional, como bem explicou o próprio Perón, ou nacional-socialismo, usando a palavra purificada dos seus péssimos significados históricos europeus.
A comunidade ítalo-argentina, húmus familiar de Bergoglio, foi e ainda é de maioria peronista. O problema é que o peronismo prometeu e tentou dar hoje não aquilo que tinha sido produzido ontem ou estava sendo produzido, mas aquilo que seria produzido amanhã, em um país mais rico de recursos potenciais do que de capacidade, e o resultado final foi, muitas vezes, a destruição da moeda nacional. O máximo do peronismo, se se quiser, foi o imposto sobre as exportações de carne, voz fundamental argentina nos mercados mundiais, que seria semelhante para a Itália, por exemplo, a um imposto sobre as exportações de vinho para conter os preços para a população interna, que tem direito ao seu asado assim como ao seu Chianti ou Barbera. O imposto é de 2006, decidido pelo peronista de esquerda Néstor Kirchner e removido agora pelo presidente liberal Mauricio Macri, primeiro presidente não radical e não peronista eleito desde 1916. Bergoglio não gosta muito dele.
Foi em um clima político-econômico de crescentes restrições, de perspectivas econômicas decadentes há 40-50 anos, incluindo a ditadura militar (1976-1983), que a Igreja produziu na Argentina uma versão da teologia da libertação chamada de “teologia do povo”. Seu teórico máximo é o padre Juan Carlos Scannone SJ, mestre de Bergoglio. Entre os exegetas católicos, logo se disse que Bergoglio era filho daquele clima e daquela sensibilidade, mas, no mundo secular, ele foi subestimado por muito tempo. A teologia do povo é uma valorização da fé popular em todas as suas manifestações em um subcontinente, diz a doutrina, caracterizado por duas realidades: cristianismo e pobres. E é a tentativa de transformar isso em uma força motriz para toda a cristandade e o mundo.
O arcebispo Víctor Manuel Fernández, cuja mão é evidente na Amoris laetitia, é hoje seu maior expoente e é o teólogo predileto do Papa Francisco, que o quis como reitor da Universidade Católica de Buenos Aires, contra o parecer das altas hierarquias vaticanas, e muitas vezes o quer ao seu lado no Vaticano.
Bergoglio vê a ascensão dos excluídos ao poder, porque eles têm uma “torrente de energia moral” a ser posta a serviço do planeta, e essa ascensão “transcende os procedimentos lógicos da democracia formal”. A nossa democracia, certamente, é formal, pois deixa as diferenças de riqueza, embora atenuando-as. O problema é que todas as outras formas de democracia, até agora, revelaram-se piores.
Em Roma, no Vaticano, muitas vezes se ouve dizer entre dois padres ou prelados que confabulam – e que, portanto, falam mal do papa – que Bergoglio sempre acredita ser ainda o arcebispo de Buenos Aires. Mas há um desígnio e uma estratégia, e é a de assumir a liderança moral das massas que a explosão demográfica jogou e jogará ainda mais no próximo meio século no cenário mundial, e assumi-la em nome de Cristo. Isso implica uma visão diferente do mundo dos “ricos”, e Bergoglio se perguntou várias vezes “onde estás, Europa?”, falando de um continente que já não vai mais à igreja e tem poucos filhos, deixando a explosão demográfica para os outros. Mas que continua sendo embebido, se poderia reiterar, da cultura cristã, até mesmo nos seus céticos e ateus.
Haverá uma Igreja Católica unida, sem fugas cismáticos, ou seja, sem Europa e América do Norte? O arcebispo Fernández não tem dúvidas. E Fernández também se perguntou que sentido tem Roma, e um papa em Roma, enquanto ele poderia estar na Bolívia ou em qualquer outro lugar da América Latina, perto do “pueblo” e falar com os bispos via teleconferência.
Se Bergoglio tem um plano global, assim como Donald Trump tem ou teria o de levar os Estados Unidos novamente para a centralidade através do nacionalismo econômico, o arcebispo Fernández é o Stephen Bannon papal, ou seja, o estrategista do nacionalismo que Trump levou para a Casa Branca, Bannon da direita e Fernández da esquerda, mas ambos em nome do “pueblo”.
“Sogar häretisch”, até mesmo uma heresia, comentou o cardeal alemão Gerhard Ludwig Müller, sucessor de Ratzinger no Santo Ofício, sobre o papa que poderia deixar Roma.
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Francisco, o papa populista que assusta a Cúria - Instituto Humanitas Unisinos - IHU